Sandra Maria Feliciano da Silva tem 52 anos, trabalha como professora e mora em Porto Velho, capital do estado de Rondônia. Apaixonada por aquarismo, mantém uma página no Facebook — Aquariofilia da Sandra — onde expõe suas montagens de aquários profissionais. Como se não bastasse, é escritora e já redigiu uma série de cinco livros ambientados em um universo de ficção científica.
Até aqui, nada muito fora do comum. Sandra poderia ser só mais rondoniense, se não fosse por um fato bastante curioso: ela pode ser uma das primeiras pessoas a pisar no solo de Marte. Junto com outros 99 indivíduos oriundos de várias regiões do planeta, a nortista é uma das finalistas do programa Mars One, uma iniciativa privada que tem como objetivo final levar um grupo de seres humanos para o Planeta Vermelho — uma viagem sem volta.
O projeto, de natureza neerlandesa, foi revelado em 2011 e é administrado pelo empresário Bas Lansdorp. Na época, o Mars One foi alvo de críticas e causou polêmica por conta de sua proposta absurda: a companhia literalmente daria um ticket só de ida para os colonos se estabelecerem no astro alienígena, e qualquer pessoa interessada poderia se inscrever para ter a chance de participar. Mais de 4 mil indivíduos se mostraram interessados.
Representando o país
Sendo a única participante brasileira, a professora se tornou uma celebridade
Após passar por essa filtragem inicial e por mais um segundo processo seletivo — de natureza secreta, devemos observar —, Sandra acabou fazendo parte do Mars 100, um grupo de 100 selecionados para passar pelas provas mais complicadas do Mars One. Sendo a única participante brasileira, a professora logo se tornou uma verdadeira celebridade e deu entrevista para infinitos veículos de mídia do Brasil.
“Eu descobri o projeto durante uma pesquisa para um dos meus livros, e, a princípio, achei que era uma brincadeira. Nós sempre pensamos em viagens ao espaço associadas a agências governamentais”, afirmou Sandra, em uma conversa com a equipe do TecMundo. “Após ler sobre o projeto, ver a proposta técnica e descobrir quem eram as pessoas envolvidas, fiquei convencida da viabilidade”, explica.
Embora o anúncio dos 100 finalistas tenha ocorrido em 2014, foi só ontem (6) que a equipe por trás do Mars One anunciou a continuidade do processo. Na terceira etapa de seleção, os candidatos trabalharão em grupos de 10 indivíduos para encarar desafios diversos — tudo será filmado e, posteriormente, publicado na internet. A ideia é que, ao final dessa fase, restem apenas 40 participantes.
Sandra, em sua foto usada no perfil do site Mars One
Uma viagem sem volta
Se o cronograma oficial do programa for seguido à risca, poderemos ter nossa primeira colônia de humanos em Marte daqui a 11 anos, em 2027. Os candidatos serão limados até 2017, quando seis grupos de quatro astronautas serão treinados para sobreviver ao ambiente marciano. Em 2020, um satélite de comunicação será enviado ao planeta, seguido por um rover de transporte em 2022 e espaçonaves de carga em 2024.
Esses maquinários conseguem prover eletricidade, oxigênio e nitrogênio
Autossuficiente, o rover fará a montagem da estrutura básica de sobrevivência em 2025, deixando tudo pronto para que a primeira equipe de colonos aterrisse em 2027. Uma segunda leva de astronautas deve chegar ao astro já no ano seguinte. A sobrevivência dos humanos será teoricamente garantida graças às Unidades de Suporte Vital, que nada mais são do que estruturas capazes de gerar condições parecidas com as da vida terrestre.
Esses maquinários conseguem prover eletricidade (através de painéis solares fotovoltaicos), água potável (esquentando o gelo presente no solo marciano), oxigênio (evaporando parte da água) e nitrogênio (extraído da atmosfera de Marte e injetado na cápsula como gás inerte). Por outro lado, a comida, as ferramentas de manutenção e as peças de reserva são enviadas através das Unidades de Fornecimento.
Conceito da estrutura de suporte vital do projeto Mars One
Uma breve história do sonho espacial
É difícil apurar com exatidão quando o ser humano começou a sonhar em colonizar outros planetas, tampouco quais foram as razões que o incentivaram a buscar formas de sobreviver fora da Terra. Um dos argumentos mais aceitos — não somente pela comunidade científica internacional, mas também por autores, roteiristas e outros artistas que usam o conceito em suas obras de entretenimento — é o de que nosso planeta não suportará vida por muito tempo, o que obrigaria a população mundial a migrar para outra casa capaz de acolhê-la da forma apropriada.
Ao longo dos anos seguintes, a literatura continou incentivando o sonho de viver nas estrelas
A primeira vez que a ideia de montar uma colônia no espaço fez sucesso entre as massas foi em 1869, quando o escritor norte-americano Edward Everett Hale publicou um conto denominado “Brick Moon”. No texto, Hale descreveu a história de um grupo de trabalhadores que acabaram sendo catapultados para a órbita terrestre, e, após perceberem que não seria tão ruim assim morar no espaço, resolveram ficar por lá mesmo e contatar a Terra de vez em quando usando código Morse.
Improvável? Sim. Promissor? Com certeza. Por mais que não se apegasse muito à realidade, “Brick Moon” foi a faísca que o mundo precisava para começar uma fogueira. Ao longo dos anos seguintes, a literatura continou incentivando o sonho de viver nas estrelas: o francês Jules Verne, o alemão Kurd Lasswitz e o russo Konstantin Tsiolkovsky são considerados precursores em desenvolver uma noção mais aguçada de colônias no espaço.
A literatura sempre incentivou o sonho de colonizar o espaço
Por que Marte?
Verdade seja dita: os programas espaciais mantidos atualmente têm como único objetivo final fazer com que o homem coloque seus pés em solo alienígena. Em 2005, Michael D. Griffin, até então presidente da Administração Nacional da Aeronáutica e Espaço (NASA), declarou publicamente que os esforços científicos da agência buscavam estender o habitat da raça humana para outros astros do Sistema Solar.
“Se nós quisermos sobreviver por centenas de milhares ou milhões de anos, definitivamente precisamos colonizar outros planetas”, afirmou, em entrevista ao The Washington Post.
Não é difícil entender por que Marte foi o escolhido como principal candidato à segunda casa da raça humana. O planeta avermelhado — localizado a 225,3 milhões de quilômetros de nós — possui várias características parecidas com as da Terra. Seu solo contém água, sua temperatura não é tão extrema (cerca de 55 ºC), há energia solar suficiente para gerar uma boa quantidade de energia elétrica, e o ciclo de dia e noite é semelhante ao nosso.
Entre todos os outros astros, Marte é o que mais se assemelha ao planeta Terra
Os riscos envolvidos
Obviamente, uma viagem para Marte não é exatamente tranquila — especialmente se tratando do programa Mars One. A iniciativa vem sendo alvo de críticas por conta de aparentes falhas na estrutura do projeto. Afinal, US$ 6 bilhões são mesmo suficientes para colocar humanos em outro planeta? Temos tecnologia capaz de mantê-los vivos e seguros por um bom tempo?
De acordo com o relatório, os colonos devem morrer a partir do 68º dia da missão
Em 2014, cinco estudantes do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) publicaram um estudo que aponta uma baixíssima expectativa de vida para os participantes do programa. De acordo com o relatório, os colonos devem morrer a partir do 68º dia da missão por asfixia, visto que as plantas, teoricamente usadas para alimentação, produzirão oxigênio demais e não existirá um equipamento capaz de balancear a atmosfera.
Sandra afirma que leu o relatório e o considerou “bastante honesto”, mas não acredita muito nessa fatalidade. “Ele [o estudo] afirma que não possui os dados técnicos do Mars One, então traçou suposições e trabalhou em quatro cenários diferentes. Esses cenários são restritos a uma realidade que não condiz com o projeto, portanto não se aplicaria ao caso de Mars One”, explicou a professora.
Bas Lansdorp, responsável pelo projeto Mars One
A cultura marciana
Independentemente disso, não há como negar que a tal viagem será bem divertida de assistir — caso ela realmente aconteça. Estima-se que os colonos levarão sete meses para chegar ao Planeta Vermelho. Uma vez estabelecidos em solo alienígena, eles passarão a construir suas próprias estruturas para tornar a vida lá mais confortável, além de realizar manutenções e pesquisas científicas.
Eles também terão um tempinho para relaxar, assistindo a programas de TV, lendo livros, jogando games, escrevendo, pintando e assim por diante. Obviamente, os recursos multimídia remotos terão um pouco de atraso graças a distância entre a Terra e Marte — acessar uma única página da web, por exemplo, é uma atividade que deve levar de 6 a 45 minutos.
Cabe aqui um pequeno devaneio: é muito divertido pensar que, mais cedo ou mais tarde, os “marcianos” terão uma cultura própria, fruto de sua vivência em um ambiente completamente novo e cujas características mal podemos imaginar. Assim como cada país possui seus próprios costumes, não é absurdo imaginar que os habitantes de outro planeta — por mais que eles tenham nascidos aqui — também desenvolverão seus próprios padrões de comportamento.
Mesmo sendo humanos, os marcianos poderão ter uma cultura própria com o passar do tempo
Inglês (US), Inglês (UK), Inglês (MR)
Também é certo que, com o passar do tempo, os marcianos desenvolvam um idioma ou padrão de comunicação próprio. De acordo com Gustavo Martins, linguista da Universidade de São Paulo (USP), o mais provável é que, em curto prazo, observaremos o surgimento de um novo dialeto do inglês, que certamente será a lingua mais utilizada pelos colonizadores durante os primeiros anos no planeta.
"Como será preciso dar nomes para coisas novas, teremos um grande aumento léxico em pouquíssimo tempo. Além disso, poderão surgir interlínguas para facilitar a comunicação rápida", afirma Gustavo. Ou seja: assim como existe o inglês americano e o inglês britânico, poderemos ter no futuro o inglês marciano, com fonética e vocábulos característicos.
Vale observar que, no programa Mars One, os astronautas selecionados serão oriundos de diversos países ao redor do globo, gerando uma mistura intercultural jamais observada cientificamente até então. Esse fenômeno pode, sim, criar uma linguagem completamente inédita com o passar de séculos. "O curioso é o que pode acontecer com a junção dos vários idiomas em contato próximo; é uma situação bem única", finaliza.
Confira a entrevista completa
TecMundo: Olá, Sandra. Você pode nos contar um pouco sobre como foi o processo seletivo para o programa Mars One e o que você precisou fazer para ser uma das finalistas?
Sandra: Infelizmente, eu não posso lhe fornecer informações a respeito desse assunto, pois temos um contrato com cláusula NDA — ou seja, de não divulgação — sobre o processo seletivo.
TecMundo: Nós pesquisamos um pouco sobre você e percebemos que você é apaixonada por ciência e ficção científica. Pressupomos então que você possui um vasto conhecimento sobre projetos de exploração espacial. Sendo assim, quais motivos levaram você a se interessar pelo Mars One em específico? Você enxergou algum diferencial no projeto?
Sandra: Realmente, eu escrevo ficção e parte do que escrevo aborda teorias cientificas de vanguarda; depois de um tempo lendo e tentando entender — acredite, não é fácil entender a teoria das cordas ou do multiverso —, você acaba se acostumando com o inusitado. Eu descobri o projeto durante uma pesquisa para um dos meus livros, e, a princípio, achei que fosse uma brincadeira. Nós sempre pensamos em viagens ao espaço associadas a agências governamentais.
Após ler sobre o projeto, ver a proposta técnica e descobrir quem eram as pessoas envolvidas, fiquei convencida da viabilidade. O que Mars One fez foi mostrar que a iniciativa privada possui uma estrutura mais dinâmica para tratar do assunto e cedo ou tarde a exploração do espaço acabaria sendo feita por grupos empresariais. Mas a ação do projeto não é só uma consequência natural da exploração espacial, ela é muito mais ampla — e foi isso que me impressionou, pois ela deu a mais ampla acessibilidade para as viagens espaciais.
Estamos vivendo uma 'democratização' de acesso ao espaço
Vamos dizer que estamos vivendo uma "democratização" de acesso ao espaço. Se você quer ir para outro planeta, não precisa mais estar atrelado a uma estrutura governamental: apenas se candidate. Indo além, ele [Mars One] reintroduziu a humanidade em um assunto meio esquecido: a corrida espacial. Hoje em dia, vemos diversas agências e companhias retomando o assunto com seriedade, e o Mars One expôs e reabriu o debate sobre Marte de uma forma muito ampla.
Se ainda não bastasse, o projeto revitaliza a sociedade de forma inusitada. Quando você coloca pessoas comuns, treinando-as para fazer coisas tão incomuns, a mensagem é que nós podemos transcender nossas diferenças, podemos reunir esforços, podemos ser muito mais do que somos agora, podemos fazer da ficção a nossa realidade.
TecMundo: Alguns especialistas norte-americanos afirmam que os colonos do Mars One morrerão em pouco mais de dois meses terrestres após o pouso em Marte. Essa possibilidade não te assusta?
Sandra: Eu li o relatório e o achei bastante honesto. Ele afirma que não possui os dados técnicos do Mars One, então traçou suposições e trabalhou em quatro cenários diferentes. Esses cenários são restritos a uma realidade que não condiz com o projeto, portanto não se aplicaria ao caso de Mars One. Mas devemos ressaltar que, dos quatros cenários propostos, somente em um desses é que ocorre a fatalidade. Então, não há com que se preocupar.
As pessoas envolvidas no projeto são cuidadosas, éticas e muito competentes. As empresas que trabalham com o Mars One no desenvolvimento das unidades de vida são as mesmas que desenvolveram o projeto da Estação Internacional Espacial (ISS). Ninguém morreu na ISS até hoje por conta de problemas nas unidades de suporte de vida, e o Mars One não vai colocar vidas humanas em riscos desnecessários. Eu estou tranquila e confiante nisso.
Conceito de uma "casa" em Marte
TecMundo: Você chegou a interagir com outros candidatos finalistas do programa, seja por telefone, email, videoconferência ou derivados?
Sandra: Sim, desde a primeira fase do processo de seleção as pessoas interagem. Atualmente, temos um grupo fechado no Facebook através do qual conversamos, e já bati um papo por Skype com alguns dos atuais candidatos. Também temos um grupo de trabalho, desenvolvendo algumas ideias para o projeto. Virão coisas interessantes por aí. O grupo é excepcional, diversificado, criativo e muito lúcido. Particularmente, a experiência está sendo incrível.
TecMundo: Ficamos sabendo que é necessário ter certos requerimentos médicos para ser um astronauta do Mars One. Em outras entrevistas, você disse estar se adaptando a esses requisitos. Como anda essa adaptação?
Sandra: Na verdade, eu não tenho que me adaptar. Os meus atributos físicos e os requerimentos médicos estão dentro dos parâmetros exigidos. Eu mesma resolvi que deveria diminuir o peso e melhorar minha massa muscular, então estou trabalhando nisso de forma gradual e saudável. Em relação aos requerimentos médicos, são os mesmos exigidos em qualquer programa espacial.
Conceito de uma horta marciana
TecMundo: Na sua opinião, qual será o maior desafio da vida em Marte? O que mais assusta você dentro da ideia de viver no Planeta Vermelho?
Sandra: Os desafios são imensos. O planeta é inóspito, de forma que teremos que produzir tudo com recursos mínimos. Mas acredito que o maior desafio seja o psicológico. Viver em um ambiente fechado, pelo resto da vida, vendo um grupo reduzido de pessoas, não convivendo mais diretamente com seus familiares, nunca mais ver uma floresta, um gato, ou até mesmo sentir o cheiro de terra molhada. Não percebemos a falta disso tudo porque crescemos com tudo em volta, mas essas coisas são extremamente importantes para a manutenção do equilíbrio mental.
Parte do processo de treinamento será a simulação dessa situação para que possamos nos adaptar. Mas eu acredito que posso vencer esse desafio também. De qualquer forma, o processo de seleção continua, ainda não estou no grupo final e há muito a ser feito. Marte vai nos trazer desafios inimagináveis, mas eu gosto de surpresas.
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