Os “adventures” e a Era de Ouro do desenvolvimento de games

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Em abril deste ano, o especialista em arquivos da web Jason Scott subiu no Github os códigos de três adventures textuais que mudaram a história da programação e do desenvolvimento de games. A trilogia de “Zork”, criada em 1977 por membros do laboratório de computação do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, agora tem todo seu corpo dissecado — uma boa oportunidade de compreender como a Infocom conseguiu levar o reconhecimento de sentenças complexas em um conjunto de palavras para outro nível.

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Para explicar toda essa história, o TecMundo então fala aqui um pouco mais sobre os “adventures”, que uniram linguagem e informática com literatura, jogos de tabuleiro e interpretação em uma forma interativa nunca antes vista na tecnologia.

O "Adventure" que começou tudo

Em 1975, Will Crowther, arrasado após passar por um difícil divórcio, tinha dificuldade de encontrar uma maneira de se aproximar de seus dois filhos. Para chamar atenção de ambos, o programador e espeleólogo amador escreveu uma narrativa simples que exigia tomada de decisões do participante em um labirinto dentro de uma caverna — bem aos moldes dos livros “Escolha sua própria aventura”, que viriam a se tornar febre alguns anos depois.

Os comandos eram todos feitos na forma de verbo-substantivo, como “Abrir porta”

Para quem nunca viu, a interface não poderia ser mais simples: são apenas textos com descrições de cenários, personagens e ações, com o final de cada sentença exigindo uma resposta do usuário. Por exemplo: “Você está na frente de uma porta, o que deseja fazer?”. Em seguida, era preciso definir alguma atividade no verbo infinitivo, como “Observar porta”, “Abrir porta” ou “Ir para leste” e coisas do tipo. Não havia nada gráfico na tela.

O “Adventure”, rebatizado para “Colossal Cave Adventure”, logo chamou a atenção dos amantes de jogos de tabuleiro e de interpretação (os RPGs). Dois anos depois, Don Woods, estudante da Universidade de Stanford, usou o material de Crowther — com a bênção do próprio — em uma criação própria, com elementos dos livros de J. R. R. Tolkien.

Já no final dos anos 70, “Adventure” chegava aos computadores com MS-DOS 1.0 e se tornava o grande responsável pela fundação da empresa Sierra Online — falaremos mais sobre ela logo abaixo.

Zork vem para mudar as coisas

Depois de passar por algumas outras linguagens, incluindo o BASIC, e encarnações, “Adventure” ganhou um grande upgrade com a chegada de “Zork”. Seus quatro pais — Tim Anderson, Marc Blank, Bruce Daniels e Dave Lebling — conseguiram ampliar as possibilidades dos “adventures textuais”, como começaram a ser chamados.

Com Zork os jogos passaram a "compreender" frases completas com mais de uma ação

Antes, as entradas de interatividade eram feitas apenas com duas palavras, normalmente na forma de verbo e substantivo. Além disso, era necessário ser bem preciso com os termos, o que limitava bastante as atividades durante o jogo e até mesmo causava certa confusão — embora “olhar” e “observar” sejam semelhantes, talvez a máquina não entendesse a ação se você não digitasse o verbo exato cadastrado na codificação do programa.

Com o “Zork” e sua própria linguagem ZIL (Zork Implementation Language), os computadores passaram a compreender sentenças e contextos mais complexos. Passou a ser possível emitir um comando como “Abra a porta com a chave amarela e vá para oeste”. A Infocom, empresa criada a partir desse título, popularizou essas regras de interatividade, que são padrão até hoje.

Voltando ao início do texto, é por isso que há um certo fascínio nos códigos publicados recentemente no GitHub. A ZIL, que também foi usada em uma adaptação de “Guia do Mochileiro das Galáxias” logo após do sucesso de “Zork”, virou motivo de estudo para os jovens codificadores dos dias de hoje.

Também, pudera: a ZIL foi praticamente utilizada por cerca de 15 pessoas e sequer foi usada comercialmente ao longo de 25 anos. A linguagem é baseada em uma outra anciã, a MIT Design Language, que é também inspirada em outra mais velha ainda, a Lisp. Seu “esqueleto” foi explicado pelos próprios autores em uma comunidade criada somente para isso no Facebook.

Os adventures textuais nacionais

Isso tudo chegou com força no Brasil a partir de meados dos anos 80, com a crescente popularidade de computadores pessoais de 8-bits, a exemplo do Sinclair ZX Spectrum, o Commodore 64, TRS-80, Apple II e, principalmente, o MSX — já falei bastante sobre essa máquina maravilhosa em outra matéria, clique aqui para ler.

Os títulos passaram a ser mais sofisticados, com uso de teclas de acesso para escolher as ações, animações e gráficos. “O Hobbit”, “Viagem ao Centro da Terra”, “Prisoner”, entre outros, foram um salto enorme em vários sentidos. Os games passaram a se tornar experiências bem mais complexas, incluindo a densidade da literatura e a imersão da interatividade com uma inteligência artificial muito mais esperta que os modelos anteriores disponíveis para o consumidor final.

No Brasil, Renato Degiovani é um dos nomes mais importantes para o crescimento desse gênero. Depois de publicar códigos completos em Assembler na revista Micro Sistemas, no começo dos anos 80, ele passou a distribuir seus próprios jogos, como “Amazônia”, “Serra Pelada”, “Angra-I”, entre outros.

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A qualidade dessas produções era alta para a época, com bons gráficos (gerados até mesmo em softwares do próprio Degiovani, como o “Graphos III”), e quebra-cabeças e labirintos que até mesmo exigiam ações em determinado período de tempo — uma novidade nesse cenário. Outros títulos, como “Avenida Paulista” — e a hilária “Bruxa do MASP” — e  “Alcatraz” também foram grandes destaques da safra tupiniquim.

Sierra Entertainment e LucasArts

Duas empresas foram especialmente importantes para o desenvolvimento dos adventures. A Sierra Online, que mais tarde se tornaria a Sierra Entertainment, começou mais cedo, no auge dos textuais — início dos anos 80. A empresa nasceu com Ken e Roberta Williams, que criaram seu próprio título depois “Adventure” (lembra dele ali atrás?).

O primeiro adventure gráfico, Mistery House, vendeu 15 mil cópias e gerou US$ 167 mil

“Mistery House” foi um sucesso absoluto, o primeiro a trazer a experiência dos adventures textuais com a presença de gráficos, que, mesmo bastante modestos e monocromáticos, ajudaram a vender 15 mil cópias do jogo e a gerar algo em torno de US$ 167 mil. Depois de hits como “Time Zone” e “Dark Crystal”, a companhia chegou à sua icônica série “King’s Quest”, em 1984.

Mais ou menos na mesma época, nasceu a era dos “adventures gráficos”, com a entrada da LucasArts no mercado. Ela introduziu uma nova linguagem/motor de jogo SCUMM (Script Creation Utility for Maniac Mansion). Como dá para notar, foi criada justamente para o clássico “Maniac Mansion”, que estreou o estilo “point-and-click” que faz sucesso até atualmente.

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Ambas as empresas não pararam de lançar um sucesso atrás do outro: “Leisure Suit Larry”, “Police Quest”, “Zak McKracken and the Alien Mindbenders”, “Secret of Monkey Island”, “Indiana Jones and the Fate of Atlantis”, “Grim Fandango”, entre outros. Posteriormente, nos anos 90, elas também emplacaram “King’s Quest IV”, “Sam & Max: Hit the Road”, “Full Throttle” e “The Dig”.

O retorno nas mãos da Telltale e os remakes

Do final dos anos 90 até o final dos anos 2000, os adventures foram deixados de lado, especialmente por conta da invasão dos consoles. Sem teclado ou mouse, as ações que antes exigiam certa complexidade na interatividade, foram simplificadas para poucos botões dos joypads.

Embora alguns títulos tenham herdado muitos dos conceitos dos adventures, a exemplo de games como “Unreal”, “Flashback” e “Out of This World”, a plataforma com uso de verbo e substantivo e “point-and-click” foi substituída por outros tipos de interfaces.

Infelizmente, a Telltale não conseguiu se manter no mercado e fechou as portas em 2018

Ainda assim, algumas iniciativas mantiveram o estilo “old school” vivo e designers que trabalharam na LucasArts chegaram a fundar uma empresa com esse conceito, mas revigorado para os novos tempos. Assim nascia a Telltale Games, em 2004. A companhia trouxe de volta versões repaginadas de “Sam & Max” e “Monkey Island” e conseguiu até mesmo adaptar a jogabilidade para os controles, de forma satisfatória.

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A Telltale chegou a fazer trabalhos excelentes em adaptações de “De Volta para o Futuro”, “The Walking Dead”, “Game of Thrones”, “The Wolf Among Us” (dos quadrinhos “Fábulas”), “Batman: A Telltale Game Series”, entre outras. Infelizmente, ela faliu em 2018.

E agora?

Bem, não dá para dizer que os adventures textuais e gráficos vão voltar, até porque a indústria tem buscado experiências mais sofisticadas e ultrarrealistas, que evitam barreiras de acessibilidade — teclado e mouse, por exemplo, são usados de formas muito diferentes do que na época das frases e “point-and-click”.

Mas o que é interessante e sempre vai acontecer é essa constante visita ao passado para processar o presente e revigorar as coisas para o futuro. É exatamente isso o que os jovens programadores estão fazendo ao estudar como funciona a linguagem de nosso saudoso Zork.

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Fontes

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