Era quase meia-noite de um dia comum quando Robin resolveu que era hora de sair suavemente da cama e, sem acordar o marido Terence, ir até o quarto de seu filho de 15 anos para verificar se ele estava dormindo. Ao chegar lá, ela confirmou – como esperado –, que o jovem Byrne ainda estava acordado encarando a tela de seu notebook e assistindo a vídeos de pessoas jogando video games, algo que fazia ritualisticamente todas as noites depois de passar horas ele mesmo com um controle nas mãos.
O que começou com um pedido leve para que ele desligasse a máquina e uma resposta de “eu preciso terminar de ver” logo tomou a forma de uma intensa troca de gritos até que, por algum motivo hoje esquecido, o garoto subitamente arremessou com força um copo que estava na cabeceira de sua cama. O vidro se espatifou contra a porta do armário de Byrne, deixando lá uma marca de 5 cm.
A casa da família foi palco para muitas explosões do garoto
Na época, a casa da família já estava repleta de cicatrizes do tipo, todas frutos de alguma das explosões do garoto – que se tornaram mais e mais intensas com o passar dos anos – e frequentemente iniciadas por pedidos para que ele desligasse seu console ou computador. A atitude violenta do filho não assustou a mãe, que àquela altura já se sentia apenas atordoada pelo problema fora de controle.
O começo foi sutil
Já fazia 5 anos desde que Robin e Terence começaram a sentir que estavam perdendo seu filho, cada vez mais consumido por um mundo virtual repleto de pessoas e atividades que eles não conheciam ou conseguiam compreender. Os pais nunca foram do tipo que larga os filhos na frente da TV e dos jogos e sempre valorizaram o tempo em família, jantando todos os dias com Byrne e seu irmão e fazendo sessões rotineiras de leitura e passeios com os dois.
Os primeiros sinais do comportamento ansioso e obsessivo de Byrne começaram aos 4 anos de idade, na hora de escolher o livro “perfeito” para a leitura antes de dormir. Na primeira série, quando tinha 6 anos, ele empolgadamente trouxe a lista de alunos da sua turma para casa e passou a ligar insistentemente para marcar dias de brincadeiras. A frequência das ligações era tanta que assustava os pais dos colegas, que acabavam recusando os convites.
Os primeiros sinais do comportamento obsessivo de Byrne apareceram cedo
Foi nessa época que ele foi levado a um terapeuta pela primeira vez. Aos 10 anos, o garoto chegou a ser hospitalizado em uma unidade psiquiátrica pediátrica. Os médicos do local informaram aos pais que seu filho sofria de ansiedade severa. Pouco tempo depois, Byrne também foi diagnosticado com síndrome de déficit de atenção. Por seu comportamento obsessivo e opiniões fortes, o jovem tinha dificuldade de fazer amigos – e passou a sofrer bullying.
A descoberta do refúgio eletrônico
Quando estava na quarta-série, Byrne e seu irmão ganharam seu primeiro console de video game de um parente. Inicialmente, poder jogar era algo que os pais dos garotos classificaram como um privilégio que poderia ser perdido caso eles se comportassem mal, mas não levou muito tempo para que isso se mostrasse difícil de manter.
Tentar proibir o garoto de jogar era algo que acabou se mostrando impraticável
“Ele era incansável ao perguntar sobre quando seria liberado. Era uma negociação contínua”, explica Robin, que afirma que os games eram como um refúgio para o filho. A rotina de insistência foi se tornando cansativa e, de vez em quando, os pais acabavam cedendo aos pedidos de Byrne. Até que o quadro começou a piorar.
“Na sétima série começou a espiral rumo ao fundo. Depois de manter [meu nome] na lista de honra [da escola] por um trimestre, eu ganhei um laptop. Foi aqui que começou meu vício por telas. Na oitava série, minhas notas se mantiveram altas, mas meus pais começaram a notar a piora na minha dependência ao Xbox e notebook”, escreveu Byrne, anos depois, durante um programa de terapia.
O vício de Byrne começou a se tornar perceptível na sétima série
Embora no passado Byrne e seu irmão mais velho costumassem se divertir jogando juntos, as brigas entre os dois se tornaram frequentes, fazendo com que começassem a passar menos tempo juntos. Pouco a pouco, o caçula começou a abandonar a prática de esportes que antes amava, como futebol americano, baseball, basquete, lacrosse e vela. Ele se queixava sempre que a família fazia planos fora de casa, chamando tudo de “perda de tempo” – menos os games.
O fundo do poço
Quando chegou ao ápice da sua obsessão, Byrne costumava passar horas e mais horas jogando títulos da série Call of Duty, que transporta o jogador em primeira pessoa para intensos conflitos armados. Pesquisadores ainda tentam entender exatamente como e por quais motivos a interação com video games afeta o cérebro, mas é fato que a imersão nos games é acompanhada por respostas físicas e neurológicas no mundo real.
Um estudo feito publicado em 1998 mostrou que partidas de jogos eletrônicos podem aumentar em até 100% os níveis cerebrais de dopamina, um neurotransmissor que desempenha vários papéis importantes no nosso corpo e cérebro – e que tem aumentos similares durante o sexo ou o uso de drogas viciantes. E isso já faz quase 20 anos, quando os games não eram tão desenvolvidos e imersivos quanto os que temos hoje.
A franquia de FPS Call of Duty era uma das favoritas de Byrne
Estudos mais recentes mostraram mudanças nas funções cognitivas e controle emocional de pessoas que jogaram títulos violentos por uma semana. Depois das longas jogatinas de Byrne, seus pais passaram a notar que seu temperamento sofria oscilações anormais. Os músculos do pescoço e costas do garoto pareciam tensos e seus olhos sofriam espasmos.
Quando realidade e ficção se misturam
A situação se aprofundou ao ponto em que frases de diálogos dos jogos passaram a surgir espontaneamente na mente do jovem e ele chegava a confundir o sinal que tocava na escola com o toque que avisa quando um amigo entrou em um jogo online. Esse tipo de alucinação em que os limites entre a realidade e os games se tornam pouco claro é conhecido pelos médicos como Fenômeno de Transferência de Jogo – ou, menos formalmente, como “efeito Tetris”.
Um exemplo mais grave desse tipo de aflição é encontrado no relato de Nicholas Kardaras, um psicoterapeuta nova-iorquino e autor especializado em vícios. Falando sobre o primeiro gamer que tratou, a descrição é a de um adolescente vestido com uma camiseta da banda Metallica que parecia assustado e confuso ao sentar no consultório.
O chamado "efeito Tetris" faz sua mente misturar os jogos e a realidade
Ao ver que o garoto piscava ao olha do teto ao chão, o médico perguntou se ele sabia onde estava no momento. Depois de uma curta hesitação, veio uma resposta em forma de dúvida: “ainda estamos no jogo?”. No caso de Byrne, a manifestação a doença era mais suave, mas nem por isso menos preocupante.
O raio de esperança e seu preço
“Quando a nona série chegou, eu comecei a ignorar minhas responsabilidades de estudante por causa das telas. Passei a [fazer] mais amigos, mas não percebia que essas pessoas ficavam caçoando de mim sem parar”, escreveu Byrne. Tanto na escolha quanto nos jogos, o bullying se tornou mais intenso e o garoto frequentemente encerrava suas partidas irritado – mas acabava voltando por sentir que não tinha mais para onde ir.
Foi quando o filho começou a ser reprovado em várias disciplinas e a se recusar a ir para a escola que caiu a ficha para Robin e Terence perceberem o quão grave a situação havia se tornado. Médicos e terapeutas não surtiam mais muito efeito. Eles então contrataram um consultor educacional, que os ajudou a bolar um plano duro tanto para os pais quanto para o garoto.
O plano para o tratamento era duro e custaria caro, porém os pais se sentiram esperançosos
Byrne teria que ir para longe. A princípio, ele participaria de um programa de terapia durante o verão, em meio à vida selvagem, para se reconectar com si mesmo e com o mundo real ao seu redor – foi lá que ele escreveu os relatos citados neste artigo. Depois, ele passaria a estudar em um internato particular, onde ele teria que seguir uma estrutura educacional rígida e não teria como passar os dias nos video games.
Para os pais, a ideia era ao mesmo tempo triste e esperançosa. “Finalmente possuíamos um caminho, só tivemos que pensar em como pagar por isso”. A terapia de verão custaria US$ 25 mil, enquanto a escola sairia por US$ 50 mil por ano. Para pagar, Robin e Terence fizeram uma segunda hipoteca para sua casa, esgotaram suas economias, estouraram cartões de crédito e se inscreveram em programas de auxílio financeiro.
Uma das cartas com desenhos que representa uma boa memória de Byrne na infância
“Sabíamos que se mesmo assim isso não funcionasse, pelo menos teríamos tentado o que era possível. E você faz de tudo pelos seus filhos”, pontuou Robin. Byrne, por sua vez, viu no internato a chance de começar do zero e ficou feliz por partir. Ao ir, em meados de 2015, ele deixou seu celular com os pais e foi embora. O casal voltou para sua casa e, um por um, queimou papéis e relatórios associados às memorias ruins da infância do garoto.
Uma luta sem fim
Hoje, Byrne tem 17 anos e demonstra uma natureza agradável e amigável. Ele vive a maior parte do ano em um campus no nordeste dos Estados Unidos, onde seus dias são cheios de classes e passeios organizados. Prestes a ir para seu último ano antes da faculdade, ele costuma receber nota A ou B em nas disciplinas e conta com um círculo de amigos e com um colega de quarto que descreve com termos como “hilários” e “acolhedores”.
O garoto ainda se permite jogar um ou duas vezes por semana, mas mantém um relacionamento saudável com os games
Aos sábados, ele pratica vela com o time da escola. Aos domingos, faz sua lição de casa e janta pizza com os colegas. Além disso, Byrne se permite jogar video games uma ou duas vezes por semana, o que preocupa seus pais – sempre temerosos que seus esforços para se distanciar do vício não tenham chegado ao fim e ele acabe sofrendo uma recaída. O rapaz, por sua vez, sente que seu relacionamento com os jogos é mais saudável.
“Primeiro tenho que fazer meu trabalho, depois posso jogar. É como seu eu pensasse que ‘posso fazer isso como um prêmio’”, diz o jovem, ressaltando que sabe que sempre terá que se policiar com cuidado. Seu objetivo é ir para a universidade e se tornar um conselheiro, ajudando outras crianças a superar as dificuldades pelas quais passou.
Em Overwatch, uma das personagens com as quais Byrne gosta de jogar é a cientista Mei
Nos últimos tempos, Byrne tem se divertido com Overwatch, um game online de tiro com vários jogadores controlando heróis com habilidades especiais. Ele joga em um canto bagunçado de seu quarto, usando um notebook gamer, e gosta de uma personagem chamada Mei. O rapaz diz que uma das frases da personagem, “Vale a pena lutar pelo nosso mundo!”, ocasionalmente surge dentro de sua cabeça.
Pela janela, o dia avança até o fim da tarde enquanto ele joga por horas e seus amigos logo devem pedir a pizza, antes de se arrumarem para a sessão de estudos. No corredor, eles riem e conversam. A tela do notebook exibe uma contagem regressiva, informando que a próxima partida começa em breve. Byrne desliza sua mão pelo teclado e, por fim, desliga a tela.
*Para proteger a privacidade da família, a reportagem original do Washington Post se limitou a utilizar apenas os nomes do meio de cada um deles.
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