Nos meses recentes, quem utiliza com certa frequência a internet deve ter se deparado com algum mashup musical bem esquisito. Dentre estas misturas estão canções de The Weeknd sendo cantadas por Michael Jackson, o rapper Kanye West cantando rock e até mesmo a diva pop Ariana Grande interpretando o clássico "No dia em que eu saí de casa”, de Zezé Di Camargo & Luciano.
A esquisitice musical que envolve até artistas que já morreram se trata de mais uma faceta da popularização das Inteligências Artificiais (IAs). As produções são feitas por espécies de “primos” do ChatGPT (que gera textos) e Midjourney (que gera imagens).
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Só que apesar da multiplicação destes conteúdos feitos por IA, há um debate ético bastante intenso sendo feito. Pesquisadores, desenvolvedores e os próprios artistas discutem os limites de trabalhos assim. Isso é plágio? Será que é preciso pagar royalties? Os criadores podem receber dinheiro pelas criações?
os melhores covers IA da Ariana Grande, segue o fio; pic.twitter.com/Nj5nbyexdx
— spidermano ??? (@ArlenDias00__) April 26, 2023
Recriaram a voz do Chorão e colocaram ele cantando “A Morte do Autotune” com o Matuê e o resultado ficou arrepiante ?? pic.twitter.com/198ZeuXxRZ
— rap forte (@portalrapforte) April 23, 2023
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E a "brincadeira" tem ido tão longe que até mesmo outras personalidades têm tido suas vozes utilizadas para criar canções a partir de IA.
Neste sentido, a criatividade fez com que alguém pegasse os rivais políticos Donald Trump, ex-presidente dos Estados Unidos, e Joe Biden, atual presidente dos EUA, para cantarem junto "Ni***as in Paris", uma produção originalmente entoada por Jay-Z e Kanye West. Confira, abaixo, o resultado:
Inteligências artificiais artistas?
São várias as formas de se produzir canções a partir de IA, sendo o Jukebox uma delas. A ferramenta foi criada pela OpenAI (criadora do ChatGPT), que desenvolveu essa rede neural que gera música a partir do zero.
O Jukebox foi treinado e por isso consegue produzir diferentes gêneros, do pop ao heavy metal, e ainda “imitar” o estilo de artistas como Elvis Presley, Katy Perry, Frank Sinatra, Celine Dion, Nas, Bruno Mars, Tupac e Disturbed.
“A OpenAI pegou amostras destes artistas para gerar o modelo que cria músicas. E o interessante é que ele gera letras também, fazendo com que o resultado seja muito bom, apesar do nível de ruído em um arquivo ou outro”, explica Marcos Barreto, pesquisador da área de robôs sociáveis há quase 20 anos e professor da Fundação Vanzolini.
Uma mapa da OpenAI mostra um pouco dos gêneros e artistas mapeados para a criação da OpenAI.
Barreto pontua que, assim como outras inteligências artificiais, o que o sistema faz é identificar padrões e transformar tudo em números. A partir deste processo, o sistema “aprende” as diferenças entre gêneros musicais e também como é o estilo de determinado artista.
A plataforma musical da OpenAI também utiliza um modelo de rede neural, o Transformer, para codificar os dados de entrada (no caso, as amostras de música) e depois decodificar.
“O Jukebox foi treinado com uma base de 1,2 milhão de músicas usando áudio no formato WAVE em 44 kHz. E já que ele mistura coisas que já conhecemos, neste aspecto ele é um pouco parecido com o Midjourney, que cria novas imagens a partir de imagens que já conhecemos”, argumenta.
Criando um cover de IA
O Jukebox é uma plataforma que utiliza referências mais difusas e, por isso, pode-se dizer que as criações são um pouco mais originais. A situação é diferente no caso de ferramentas como o DiffSVC.
O programa se baseia no conceito de SVC, que significa Singing Voice Conversion, que em tradução livre seria algo como “Conversão de voz cantada”. Diferente de softwares que simulam situações conversacionais humanas por texto, o SVC consegue transformar amostras de voz em canto de músicas.
Simplificando, o sistema pede que o criador forneça arquivos sonoros (o adequado são músicas cantadas a capella) de exemplo para entender o padrão de voz da pessoa. Depois que a IA realiza todo o mapeamento, ela consegue encaixar a voz em uma outra melodia, criando uma música que nunca foi cantada por aquele artista.
Além da adição no Github, há muito material sobre Singing Voice Conversion em canais do Discord.
O TecMundo conversou com um produtor de conteúdo brasileiro que utiliza a ferramenta em suas criações e também o recurso de clonagem de voz que está disponível no Google Colab ou em códigos baixáveis no Github. Ele preferiu não se identificar por causa da grande polêmica envolvendo canções covers (e até ameaças, como você verá mais abaixo).
Ele explica que até poucos meses atrás só tinha acesso a uma ferramenta que fazia clonagens de voz a partir de áudios e textos de referência. Ou seja, era preciso um arquivo com a voz da pessoa, um texto nomeando cada áudio e transcrições de cada palavra dita. O processo era trabalhoso e além de ficar pronto em até dez horas, o resultado nem sempre era satisfatório.
"O que antes poderia levar horas, agora leva minutos".
“Hoje, ferramentas como o DiffSVC não exigem transcrição de áudio, o que torna tudo muito mais rápido e fácil. Além do processo de criação do modelo vocal mostrar prévias em tempo real, fazendo com que você tenha noção se os seus áudios de referência são bons. O que antes poderia levar horas, agora leva minutos”, cita.
Divulgado os áudios com IA na internet
O produtor de conteúdo que conversou com a reportagem revela que começou a engajar mais com clonagem de voz por causa de uma condição de saúde. Primeiro, ele divulgou trechos de canções feitas com inteligência artificial, até que decidiu criar músicas inteiras para testar.
Um vídeo que ele fez envolvendo artistas pop acabou viralizando na internet e tornou seu trabalho mais popular. Apesar da visibilidade, ele retirou o material do ar por causa de algumas críticas.
“Eu resolvi recuar e tentar entender um pouco mais das questões éticas frente a isso, antes de seguir criando conteúdos desenfreadamente. E resolvi então trabalhar em uma ‘reedição’ da discografia de um cantor, tudo sem utilizar a voz de outros artistas”, cita.
A fonte consultada pelo TecMundo se declara um entusiasta de novas tecnologias para criação musical.
A fonte diz que está repensando sua atuação e que atualmente chama suas criações de “audio concepts”, que são rascunhos e ideias. O objetivo é deixar claro que tudo não passa de projetos criativos que não estão finalizados e que nem mesmo serão monetizados.
“Não que eu não possa vir a errar e acabar fazendo algo que ultrapasse certo limite, mas tenho a segurança que estou disposto a recuar. Mas vou seguir compondo e me expressando, já que a intenção é tão importante quanto o produto que a gente está entregando”, argumenta.
Polêmicas na indústria fonográfica
Como citado pelo produtor de conteúdo, a popularização das músicas por IA tem causado controvérsia e até reclamações na indústria fonográfica. Ele, inclusive, revela ao TecMundo que recebeu recentemente uma mensagem da equipe jurídica de um artista brasileiro “solicitando educadamente” para que fosse feita a remoção de um material da internet.
“Eles me pediram para que nada do gênero seja feito novamente e deixaram claro que, caso a situação siga se repetindo, vão levar a contestação adiante de maneira legal”, disse o criador. Ele acatou o pedido e removeu o conteúdo da internet.
Apesar da ameaça de processo, a fonte pontua que a conversa foi bastante amigável, mesmo a equipe jurídica do artista tendo sido bem direta. “Eu diria que estão entrando em contato com os criadores para solicitar remoção imediata como um primeiro aviso. Mas dispostos a levar para a esfera jurídica caso as produções persistam. Eu aceitei o corretivo quieto, né. Mas vai saber se alguém resolve bater de frente”, acrescentou.
Ainda não se sabe se o caso foi parar na justiça, mas o cantor Drake foi um dos músicos que se mostrou publicamente contrário ao uso de sua voz em ferramentas de IA. No mês passado, ele criticou o fato de ter sua voz clonada para aparecer cantando a canção “Munch”, da rapper norte-americana Ice Spice. “Essa é a gota d'água”, escreveu Drake em seus stories no Instagram.
Na contramão das críticas e ameaças de processo, a cantora Grimes decidiu ser vanguardista deste movimento e liberou o uso de sua voz para músicas geradas por IA, só que com um porém.
“Vou dividir 50% dos royalties de qualquer música bem-sucedida gerada por IA que use minha voz. O mesmo acordo que faria com qualquer artista com quem colaboro. Sinta-se à vontade para usar minha voz sem penalidade. Não tenho rótulo e nem vínculos legais”, escreveu no Twitter a ex-esposa do bilionário Elon Musk.
I'll split 50% royalties on any successful AI generated song that uses my voice. Same deal as I would with any artist i collab with. Feel free to use my voice without penalty. I have no label and no legal bindings. pic.twitter.com/KIY60B5uqt
— ???????????? (@Grimezsz) April 24, 2023
Prejuízo para artistas?
Em entrevista ao TecMundo, Valéria Pessôa, que é gerente executiva de TI do Ecad, entidade brasileira responsável pela arrecadação e distribuição dos direitos autorais das músicas aos autores e demais titulares, garante que no Brasil não haverá prejuízos para os artistas. Por outro lado, acredita que nenhum produtor de conteúdo que utiliza obras que possuem direitos autorais será remunerado.
“As próprias plataformas digitais [Spotify, Deezer, Tidal e outras] têm mecanismos de claim [reivindicação] e funcionam como uma primeira barreira para derrubar essas músicas. Com essa derrubada rápida, principalmente do YouTube, a chance de essas pessoas monetizarem o trabalho é muito pequena. Muitas dessas produções não chegam nem a viralizar porque são retiradas do ar muito cedo”, defende.
Os artistas brasileiros não devem ser afetados pelo movimento de covers de IA, segundo o Ecad
Regulamentação da IA
A gerente executiva de TI do Ecad diz que a entidade tem acompanhado a popularização das IAs e que não há nenhum posicionamento contrário ou a favor das novas tecnologias. Ela salienta que as coisas estão evoluindo muito rápido e que é preciso acompanhar o desenrolar dos fatos.
Contudo, Pessôa é taxativa na defesa da regulamentação destas inovações. Dentre os pontos, argumenta que é preciso definir quem receberá o dinheiro pela reprodução de uma música original 100% feita por IA, por exemplo.
“A nossa posição será o cumprimento da lei. Hoje, eu não consigo dizer que toda criação com ajuda de IA é ilegal porque não temos nenhuma legislação dizendo isso. Nós temos mecanismos para saber se alguém está dizendo que é dono de uma música do Roberto Carlos, por exemplo. Então utilizar música de outra pessoa é irregular, sim. Agora, e no caso de uma canção inédita feita por IA?”, questiona.
A popularização do ChatGPT estimulou o debate sobre regularização de Inteligências Artificiais
Para identificar canções cadastradas nas outras sete entidades da gestão coletiva da música brasileira, o Ecad utiliza ferramentas como o Ecad.Tec CIA Audiovisual. Ela é uma tecnologia que reconhece códigos individualizados — uma espécie de DNA — das canções e distingue características como autor, tempo de execução, intérprete e outros detalhes.
A representante do setor fonográfico dá outro argumento para garantir que os artistas brasileiros não serão prejudicados financeiramente. O Ecad cuida da distribuição dos direitos autorais nas reproduções públicas, ou seja, quando a canção é reproduzida em segmentos como TV aberta, cinema, rádios e streaming. E este último segmento, que é onde estão sendo divulgados os covers por IA, representa somente pouco mais de um quarto da monetização dos músicos.
“A internet é com certeza onde temos nossas maiores estruturas e maior volumetria. Só que ao mesmo tempo, temos uma forte parceria com as plataformas e um controle muito grande. Por causa disso tudo, é muito difícil que alguém tenha prejuízo”, finaliza Pessôa.
Debate Ético
Barreto, o pesquisador da área de robôs sociáveis, diz que não entende o trabalho feito por ferramentas como o Jukebox como uma cópia. Apesar de utilizar coisas que já existem, ele defende que se basear no estilo de um artista ou mesmo em um gênero musical específico não fere o direito de ninguém.
Por outro lado, ele reforça que os populares covers de IA podem ser questionados eticamente porque utilizam basicamente os direitos de um artista.
“No caso do Drake, foram utilizados o mesmo estilo e timbre. Aquilo é nível de cópia. Aí começa a entrar em uma questão que invade a propriedade intelectual porque fica idêntico. Aí sim temos um enorme problema e estas questões provavelmente serão julgadas como infração quando forem parar na justiça”, defende.
O pesquisador acredita que marcadores podem ser uma solução para diferenciar obras de inteligência artificial de obras humanas. Pensando que a tecnologia atual já assusta pelos bons resultados, não é de se considerar impossível que em algum ponto dos próximos anos será praticamente impossível diferenciar se alguém falou ou cantou mesmo aquilo que estaremos ouvindo.
“Por enquanto, este não é um movimento forte, mas temos alguns defensores e propostas para que isso [marcadores em obras feitas por IA] aconteça. Eu acho que precisamos de algo assim porque não é porque algo é parecido com um Picasso, que é necessariamente um Picasso. Não podemos deixar que as coisas causem confusão ou má interpretação”, finaliza Barreto.
Por que os vídeos estão sumindo do YouTube?
Como dito anteriormente, o YouTube é uma das principais plataformas onde as pessoas estão subindo os covers feitos com IA. Só que, como alertado pela gerente executiva de TI do Ecad, a maioria das produções não estão prosperando muito tempo por lá. Além de os próprios criadores estarem retirando o conteúdo com receio de processos, o site do Google está atento à questão.
Várias das músicas que a reportagem assistiu no site há três ou mais semanas já não estão mais ou no ar ou pelo menos foram republicadas em outros canais por outras pessoas. Em nota enviada ao TecMundo, o YouTube salienta que a atividade pode contrariar as regras e diretrizes da comunidade em relação a direitos autorais.
“Orientamos criadores de conteúdo a enviar vídeos que eles tenham produzido ou para os quais tenham autorização de uso. Não é permitido utilizar conteúdo de propriedade de terceiros nos vídeos na plataforma”, diz trecho do comunicado.
Enquanto alguns vídeos de cover de IA estão durando meses, outros estão sendo banidos em dias no YouTube.
Apesar de a Central de Ajuda do YouTube não especificar covers por IA como produções que ferem as regras, um trecho da norma cita que é preciso “permissão do detentor de direitos autorais para criar obras com base no conteúdo original”. São citados como exemplo “fanfics, sequências, traduções, spin-offs, adaptações etc”, dando a entender que as músicas de IA poderiam se encaixar nestes termos.
“Reivindicações relacionadas a direitos autorais cabem aos proprietários do material, e o YouTube oferece várias ferramentas para ajudar os detentores desses direitos a proteger e gerenciar o próprio conteúdo na plataforma”, explica ainda a nota do YouTube.
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