Existe uma certa aura de expectativa e mistério quando você não sabe com quem vai conversar. Faz quase uma década que passo por sensações assim, mas como a maioria delas acontece online, você acaba se acostumando. O cenário muda de figura quando esse encontro é ao vivo e você não sabe o que esperar: principalmente quando sua conversa é com alguém que carrega um estigma social de crime online, do desconhecido, daquele que não tem um rosto.
Na quinta-feira (12), o TecMundo recebeu em seus estúdios a célula EterSec, um braço do grupo ciberativista Anonymous no Brasil, representada por um ponto físico e mais seis virtuais. A entrevista com cerca de uma hora e quinze minutos revela um grupo que pode ditar os parâmetros para um novo ativismo digital brasileiro.
Usar a máscara é um equilíbrio entre proteção e unidade de ideal
Pragmático, conciso e focado em disseminar suas ideias de um jeito mais próximo e amigável ao público, a EterSec atua com mais ações políticas orquestradas, mais revelação e exposição de dados, menos ações encaradas como atos de script-kiddies — são deixados de lado os ataques de deface e XSS, por exemplo. A célula é grande, mais de 20 pessoas espalhadas pelo Brasil: e eles querem crescer ainda mais.
É interessante notar que seu interlocutor foge do padrão que encontrei ao longo dos anos, principalmente em grupos cibercriminosos pequenos, as chamadas teams na internet. Não é um garoto com seus 15 anos que acabou de aprender um ou dois truques de programação, a presença é de uma pessoa com bastante estudo, eloquente, com argumentos fundamentados e que sabe o que busca.
Seu vulgo, ou nick, é Nicolay. Com ele, acompanharam a entrevista nomes de integrantes como Sense, Muriel, Proc Yon, Lumen, Reverse e Luna.
A entrevista
O representante, ao longo de nossa conversa, também deixa claro um ponto que costuma incomodar a comunidade de cibersegurança na internet — talvez por desconhecimento, talvez por birra, talvez por erros de células anteriores: a EterSec não é formada por hackers. Mas isso não significa, também, que não sejam encontradas pessoas com esse conhecimento dentro do grupo.
Ele chegou aos estúdios do TecMundo, tomou uma água, foi “lapelado” pela nossa produção, vestiu um agasalho para facilitar o nosso trabalho de censurar sua imagem e iniciou um discurso entre as respostas que mostra um conhecimento amplo sobre formas de se passar uma mensagem.
O ideal Anonymous, como citam, não é de esquerda nem de direita
“No momento atual, há muitas células”, diz o representante da EterSec. É preciso entender os ideais do Anonymous para averiguar a veracidade de uma célula, adiciona. “Transparência, informação de qualidade e apoio popular. Todas as ações Anonymous são voltadas para o propósito social, justiça social. Não é para interesse particular. É importante checar também o apoio de coletivos antigos”.
A EterSec preza pela filosofia Anonymous e indica que esse é um dos principais pontos para se entender se um grupo está ali para fazer um trabalho alinhado ou está se utilizando do nome para bem pessoal.
O ideal Anonymous, como citam, não é de esquerda nem de direita no espectro político: é anarquista. Não há predileção por governo A ou B. “Viver em sociedade, você já é um ser social, um ser político”, complementa Nicolay.
Acredita-se que a educação básica é a chave para alcançar o resultado de uma utopia de mundo sem leis, aquele em que o próprio ser humano, educado o suficiente, consegue discernir entre o certo e o errado. “A desinformação é o maior mal que a gente vive hoje”.
Declaração
História
Com três anos de história, desde 2020, a EterSec nasceu após um hiato de células Anonymous no Brasil. Eles explicam que não existe célula melhor que a outra, por vezes, um grupo pode nascer para realizar apenas uma operação em específico e ser dissolvido logo em seguida.
É preciso notar que, entre os participantes virtuais da EterSec, foi possível perceber algumas vozes femininas. De acordo com o grupo, a diversidade é uma bandeira que eles carregam. Por isso, a EterSec acabou se tornando a primeira célula a divulgar o clássico vídeo Anonymous de máscara, porém com voz de uma mulher.
Anonymous pauta a diversidade de gênero, cultural e regional
“Isso revolucionou. Até então, a imagem do Anonymous era o quê? Era um homem lá... Camuflado. E isso é muito ruim. Anonymous pauta a diversidade de gênero, cultural e regional. Isso para nós é muito importante”.
As células Anonymous recaem muitas vezes em uma zona jurídica que indica crime: ao divulgar dados sensíveis e realizar invasões em sites, o ativismo acaba entrando no campo fora da lei. Segundo a EterSec, contudo, há uma diferença entre eles e os cibercriminosos.
“Nós temos aquela justificativa persistente (...) Mas é aquilo, nós não temos medo. Corrupção, casos de injustiça, não podem ficar embaixo dos panos. Isso é transparência, a população tem que ficar sabendo. E nós não temos medo das consequências”.
Nicolay
Nascimento
Entre as operações realizadas pelo grupo, o primeiro trabalho envolveu ações sobre o golpe militar em Mianmar (antiga Birmânia), uma nação do sudeste asiático. Depois, partiram para ativismo sobre a TepCo, empresa japonesa que despejaria água radioativa no mar. Também fizeram a OpColômbia, contra a violência policial local.
- Isso levanta uma questão interessante: por que a célula tão combativa nasceu para atacar problemas internacionais?
Segundo Nicolay, foi importante para atrair hackers que não são ativistas. “Normalmente, hackers vão para o mundo empresarial. Há uma carência de hackers ativistas não só no Brasil, como no mundo. Mas logo depois voltamos a olhar para o Brasil (...) Fizemos a operação Anhangá, voltada para os povos originários, com vazamentos sobre a Funai e ações contra o ex-ministro Ricardo Salles”.
Em outra célula, o interlocutor afirma que em 2014 também foram realizadas operações contra o governo Dilma Rousseff, principalmente nas questões do uso do “dinheiro desenfreado”.
Atos antidemocráticos
Antes de a EterSec sentar-se em nosso estúdio, estava mergulhada em revelar os supostos financiadores dos atos antidemocráticos que aconteceram no domingo, dia 08 de janeiro, na praça dos Três Poderes, em Brasília.
Dias antes, uma lista com 50 nomes levada ao público. Nela, eram encontradas informações como nome completo, CPF, data de nascimento, nome de familiares, endereços residenciais, RG, CNH, score do Serasa, empresas registradas, faturamento, título de eleitor, dados de imposto de renda, emails registrados e serviços online diversos.
“Tudo começa com o GSI (Gabinete de Segurança Institucional). No final do ano passado, o General Heleno junto com o GSI começou a ter algumas movimentações financeiras e de ligações, solicitações de ordem. E nós temos acessos em alguns serviços e sistemas, então acompanhamos várias situações acontecendo que para nós foram suspeitas. Segundo, recebemos denúncias também e apuramos essas denúncias por meio de ferramentas e documentação. O GSI da era Bolsonaro é mais complexo do que imaginam, com possíveis ligações com o caso Marielle (...) Eles não só financiaram, como estimularam”.
Sobre a acusação feita no final da fala, o grupo não quis ir além no momento, mas comentou que resolver essa história e descobrir quem foi o mandante do assassinato da vereadora é o foco em próximas ações.
O grupo também afirma que pode ser visto como um fiscalizador do governo Bolsonaro, algo que todo cidadão deveria ser — e que esse trabalho continua agora com o governo Lula.
Supostos financiadores
Futuro da EterSec
A célula, como disse, não tem medo das consequências e não pretende encerrar suas atividades tão cedo. Saindo do âmbito “apenas ataques cibernéticos”, a EterSec claramente busca se firmar como um ponto de ativismo na internet que reúne todo o tipo de profissionais da sociedade.
Para tanto, está iniciando a Operação New Blood para captar mais pessoas. De acordo com Nicolay, poucos integrantes da EterSec saberão a verdadeira identidade dos interessados e a célula segue protocolos duros sobre isso.
A defesa cibernética do Brasil também é olhada pelo grupo, que afirmou ter relações próximas tanto com grandes grupos de defesa quanto pontos de contato dentro de todos os governos, seja o anterior de Bolsonaro quanto o novo, de Lula.
Essa história será contada pelos próximos anos
Se a EterSec vai alcançar o que busca como célula e resolver casos que até hoje perduram sem solução — como o mandante do assassinato de Marielle Franco — não sabemos. Essa história será contada pelos próximos anos. Por outro lado, o cenário Anonymous no Brasil vem crescendo exponencialmente: podemos estar diante de um modo novo e inclusivo de atacar problemas sociais brasileiros por meio do ativismo cibernético.
Para você que chegou até aqui e leu ou assistiu esta entrevista, consegue acreditar em um grupo que não tem um rosto? Quão consistente e alinhado um grupo anônimo precisa ser para receber crédito? Ou melhor: para ser ouvido por você?
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