A pandemia reavivou um modelo de negócio nos setores voltados à propriedade intelectual (PI) que tinha perdido bastante força nos últimos anos. Trata-se da tática de algumas empresas de adquirir ou usar agressivamente direitos de propriedade intelectual para ameaçar terceiros de processos judiciais, conseguindo um retorno financeiro por meio de acordos.
Copyright, trolls e notificações duvidosas
Os praticantes dessa ação bastante questionável, que vai contra os objetivos do direito autoral sem ser formalmente ilegal, passaram a ser conhecidos internacionalmente como "trolls de direitos autorais" ou "trolls de patentes". Apesar de esse modelo de negócios ter sofrido derrotas monumentais entre 2009 e 2015, há alguns anos acompanhamos um ressurgimento dessa estratégia em vários países, incluindo o Brasil.
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Resumidamente, empresas como a Fallen Productions e a Copyright Management Services (CMS) passaram a contratar escritórios para enviar notificações extrajudiciais ameaçando indivíduos que teriam supostamente baixado filmes por torrent. Essas notificações sugeriam a realização de um acordo no valor de R$ 3 mil para evitar um processo judicial.
Vale notar a similaridade com a atuação de trolls de direitos autorais conhecidos. Entre outros pontos, são entidades relativamente obscuras, cujo nome aparece em mecanismos de busca quase exclusivamente para relacioná-las com os processos por direitos autorais.
A CMS, especialmente, é uma troll globalmente conhecida, inclusive por litigar sem ser a verdadeira titular do direito alegado, atuando há anos em outros países. Escritórios respeitados que trabalharam com ela chegaram até a ser acusados de fraude, possivelmente por não terem averiguado diligentemente a existência de um direito de seus clientes.
Críticas a trolls e respostas
À época, diversas entidades brasileiras ligadas à propriedade intelectual ou aos direitos digitais apontaram múltiplos problemas nessas notificações.
A lista relacionada na nota conjunta e em outras publicadas na mesma época é grande: erros técnicos, incoerências entre as diferentes cartas enviadas, contatos telefônicos e endereços eletrônicos desvinculados oficialmente dos escritórios notificantes, uso de ferramentas técnicas obscuras, possíveis meios ilícitos de obtenção de provas e violações de leis sobre proteção de dados brasileiros, entre outros.
Outro ponto questionável era a declaração sobre um suposto intuito pedagógico das notificações em relação ao público consumidor brasileiro, quando o propósito econômico se destacava com tanta intensidade.
Depois dessa nota, a estratégia dos trolls foi alterada. Vários dos elementos duvidosos das primeiras cartas foram corrigidos, inclusive com a redução do valor do acordo ou ocultando-o. Alguns artigos de opinião e reportagens apareceram para fundamentar a atuação dos copyright trolls, aprofundando o medo dos notificados.
Pelo menos uma chegou a divulgar informações que eram, no mínimo, ambíguas; como a afirmação de extensão do parágrafo único do art. 103 da Lei de Direitos Autorais para infrações que não eram edições de obras. Mais gravemente, na matéria citada, normaliza-se um tipo de colheita de prova vedada pelo ordenamento brasileiro por ser em geral proibida a indução ao cometimento do ato ilícito para obter material probatório tanto no âmbito penal quanto no cível.
O escritório Kasznar Leonardos, um dos mais conhecidos na área de propriedade intelectual do Brasil, parece ter reduzido sua atuação direta nas notificações. Representando as mesmas empresas, outros escritórios, cada vez menores e menos conhecidos, passaram a ser os principais notificantes, com estratégias de cobrança ainda mais agressivas, a exemplo de ligações constantes em horários não comerciais.
Essas cobranças continuavam mesmo quando os notificados se dispunham a apresentar provas de que não poderiam ter sido eles - como casos em que haviam comprado o filme alegadamente pirateado alguns dias antes, ou de pessoas com baixo conhecimento tecnológico, idosos, por exemplo, que não tem familiaridade suficiente com informática para cometer os atos dos quais foram acusados. Deve-se lembrar, ainda, que não é recomendado o simples uso do IP e outros dados de geolocalização para identificar um indivíduo na rede, sendo necessárias, para tanto, outras diligências
Fonte: Shutterstock
Panorama dos trolls pelo mundo
Em outros países onde essas mesmas empresas atuaram, as ameaças se mostraram o verdadeiro foco do modelo de negócio, evitando o protocolo de ações judiciais, presumivelmente pela probabilidade de derrota no Judiciário. O mesmo está acontecendo no Brasil, pelo menos por enquanto.
Os trolls de direitos autorais e seus advogados já sofreram derrotas e sanções judiciais de diferentes tipos. Perderam gravemente até em países conhecidos pela forte proteção dos direitos intelectuais, como a Dinamarca e os Estados Unidos (EUA), no início da década passada e recentemente.
A Suprema Corte canadense há alguns meses levantou barreiras processuais para esse tipo de judicialização massiva, no mesmo sentido dos Judiciários britânico, australiano e cingapuriano. Mesmo jurisdições mais lenientes com trolls, como a União Europeia, vedaram notificações que fossem abusivas, desproporcionais ou injustificadas.
Download individual é crime?
O receio de um revés caso as ações sejam ajuizadas, como já ocorreu em outras jurisdições, é justificado. Além das possíveis infrações à LGPD e dos potenciais meios ilícitos de colheita de prova, o download para finalidades individuais sem intuitos lucrativos não é crime na legislação brasileira, pelo menos na interpretação mais direta da lei. Consultando o Código Penal:
Art. 184. Violar direitos de autor e os que lhe são conexos: [Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa].
§ 1° Se a violação consistir em reprodução total ou parcial, com intuito de lucro direto ou indireto, por qualquer meio ou processo, de obra intelectual, interpretação, execução ou fonograma, sem autorização expressa do autor, do artista intérprete ou executante, do produtor, conforme o caso, ou de quem os represente: [Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa].
[…] § 4° O disposto nos §§ 1°, 2° e 3° não se aplica quando se tratar de exceção ou limitação ao direito de autor ou os que lhe são conexos, em conformidade com o previsto na Lei n° 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, nem a cópia de obra intelectual ou fonograma, em um só exemplar, para uso privado do copista, sem intuito de lucro direto ou indireto.
O parágrafo primeiro determina que é necessário que haja intuito de lucro direto ou indireto no caso específico de reproduções totais ou parciais, categoria em que estão enquadrados os downloads de obras digitais para o direito autoral.
O caput do art. 184 parece existir para enquadrar violações não descritas nos parágrafos que o seguem, como as de direito morais. Para essa categoria de direitos autorais, o intuito lucrativo é quase irrelevante pela sua natureza de direitos da personalidade (não patrimoniais).
Isso não é uma mera opinião: consta expressamente das justificativas do PL 2681/1996, convertido posteriormente na Lei n. 10.695/2003, que dá a redação atual dos dispositivos do Código Penal aqui analisados. O ponto 12 da Exposição de Motivos declara que "Além disso, o caput deste artigo [art. 184] cogita das violações de ordem moral, não daquelas que trazem reflexo econômico."
Olhar para o §4 sugere ainda outra interpretação excludente de tipicidade. Ao interpretar a última frase desse dispositivo como algo que se refere apenas ao §1, §2 e §3, o intérprete necessariamente caíria em redundância. A reiteração da frase "intuito de lucro direto ou indireto" poderia ser justificada, teleologicamente, por dois caminhos: ou seria um erro do legislador, ou estaria ali para cumprir uma função que ultrapassa o disposto nos parágrafos anteriores e passar a englobar também o caput, devendo ser lido como um dispositivo separado da primeira metade do §4.
A afirmação categórica das primeiras levas de notificações extrajudiciais, de que os downloads seriam crimes, parece ser, acima de tudo, uma forma de aterrorizar os notificados para estimular os acordos em valores elevados.
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Argumentos contra o enquadramento como crime
É importante destacar que é comum encontrar posições de que esses downloads seriam um crime, e que elas não são infundadas. Existe uma disputa interpretativa no sentido de que o download individual se enquadraria no caput do art. 184, que seria uma norma penal em branco, e os parágrafos seguintes seriam meras qualificadoras. De forma um pouco mais forçada, alguns argumentam que "lucro indireto" poderia abarcar a intenção de não gastar na apreciação do bem original.
A extensão do conceito de "lucro indireto" não merece muita atenção, mas a outra sim, por ter alguns bons fundamentos. No entanto, ela permanece sendo provavelmente equivocada por diversas razões.
Em primeiro, porque desconsidera o direito penal como ultima ratio, tirando o caráter de sanção excepcional, uma natureza já apontada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) diversas vezes, como no habeas corpus. Embora o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tenha firmado tese de que não se aplica o princípio da adequação social ou da insignificância aos casos de violação de direitos autorais com intuito lucrativo, tal enquadramento não foi firmado para os downloads individuais para uso privado.
Em segundo, porque parece pressupor que o "sem intuito de lucro direto ou indireto" do parágrafo 4º seria um erro de técnica legislativa, uma mera repetição dos parágrafos anteriores, adicionando um elemento novo (cópia de um exemplar para uso privado) que na prática em nada afeta os parágrafos a que se refere.
Em terceiro, e talvez mais importante, porque é uma interpretação em prejuízo do réu, contrariando o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, incorporado ao ordenamento brasileiro pelo Decreto n. 4388/2002. Em seu art. 22.2, o estatuto determina que "a previsão de um crime será estabelecida de forma precisa e não será permitido o recurso à analogia. Em caso de ambiguidade, será interpretada a favor da pessoa objeto de inquérito, acusada ou condenada".
Em quarto, ignorar que os parágrafos do art. 184 já tratam especificamente algumas categorias de violações seria uma interpretação extensiva que, ao menos aparentemente, desvirtua a mens legis (vontade da lei), o que foi proibido pelo STF em 2011 no Recurso Ordinário em Habeas Corpus (RHC) 106481.
Essa interpretação criminalizadora ainda encontra obstáculos no posicionamento de tribunais brasileiros que já decidiram sobre o tema, mais de uma vez, mesmo em casos de centenas de produtos piratas. Vale ressaltar, por outro lado, que eles não analisaram explicitamente o crime a partir do caput do art. 184. Segundo um dos acórdãos que exige o intuito lucrativo, é possível afirmar que não seria possível a desclassificação para o tipo que não exige esse intuito, mencionando a existência de algumas implicações contrárias, mas citando só a necessidade de proceder por meio de queixa.
Barreiras para outros tipos de sanção
Não ser crime não impede que os titulares de direitos tentem o caminho judicial da indenização cível. Entretanto, por motivos que poderemos abordar em outra coluna, há chances razoáveis de as indenizações serem concedidas pelos tribunais em valores inferiores ao que é pedido nas notificações extrajudiciais ou que existam dificuldades para executar. Possivelmente, em quantias que mal paguem o trabalho dos advogados contratados, assim como as custas judiciais em situações nas quais a pessoa processada seja hipossuficiente.
Efeitos nos sistemas de direitos autorais
De qualquer forma, o grande problema com os trolls de direitos autorais não é a legalidade estrita de suas ações ou ameaças, e sim os efeitos que eles têm no sistema de direito autoral, em especial nos incentivos para criatividade.
Enquanto há argumentos honestos de que essas ações são justamente uma forma de proteger as finalidades da propriedade intelectual e um ambiente cultural pujante, estudos sérios sobre a atuação dos trolls, publicados em algumas das mais relevantes revistas do mundo, asseveram que o contrário é verdade.
Esses estudos apontam como os trolls se utilizam dos institutos de direitos autorais de maneira formalmente correta, mas materialmente abusiva, focando tanto os esforços quanto os investimentos envolvidos e a economia criativa principalmente em litigância em vez da criação de novas obras.
Há uma corrupção dos fins do direito autoral enquanto se invoca sua proteção. O potencial de danos ao sistema é grave e faz pouco sentido combater um elemento danoso (a violação das normas jusautorais) com outro.
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Ilicitude da atuação dos trolls
Aprofundar a discussão na esfera jurídica sobre a questão é fundamental, inclusive para orientação dos tribunais em futuros julgamentos. A atuação dos trolls é questionável mesmo sob as lentes mais estreitas do Direito, e é preciso ter a maior clareza possível sobre isso.
Não é necessário argumentar moralmente sobre os efeitos da pirataria em um país de baixa renda como o Brasil. Apesar de estar se consolidando o entendimento sobre o que diminui a pirataria (não são normas mais duras de direito autoral, mas sim mercados mais acessíveis e eficientes), não é preciso chegar a esse ponto.
A defesa da propriedade intelectual por meio do terror já se mostrou falha inúmeras vezes no passado, gerando medo e raiva, impedindo que a população média a valorize pela razão correta, que seria: seu papel fundamental no fortalecimento de um ambiente cultural fértil e de inovações tecnológicas, com o sistema equilibrado e bem-planejado.
A atuação dos trolls de direitos autorais não raramente ultrapassa a zona cinzenta da licitude. Isso já foi demonstrado em outros países no passado e parece se repetir no Brasil agora. Para evitar um aprofundamento dos danos causados e impedir que a imagem da propriedade intelectual em nosso país continue manchada por ações predatórias, devemos nos dedicar a manter o debate vivo sobre informações imprecisas ou equivocadas, sejam elas de boa-fé, sejam intencionais.
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Pedro de Perdigão Lana é professor e advogado. Mestre pela Universidade de Coimbra, pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Autoral e Industrial (GEDAI), membro do conselho do Creative Commons Brasil, do YODA e do Youth SIG (ISOC).