Em uma das casas de shows mais badaladas de São Paulo, um rapper californiano leva um público de quase três mil ouvintes à loucura. Seus expectadores? Programadores, hackers, analistas de segurança da informação e entusiastas da cultura geek. Quem está no palco é int eighty, que, ao lado de seu produtor c64, forma a dupla batizada como Dual Core.
Durante o encerramento da edição 2016 do Roadsec São Paulo — evento sobre tecnologia e cultura hacker que contou inclusive com uma palestra de jornalistas do TecMundo —, o show da banda foi, de certo, a atração que mais impressionou os visitantes. Com uma habilidade natural para envolver e animar seu público, os músicos do Dual Core fizeram a molecada pirar com “All the Things”, canção que homenageia os hackers.
“Não prove que somos humanos a menos que realmente precisemos; meu time construiu esquemas que destroem recaptchas”, canta int eighty. Ele é um dos maiores representantes de um movimento artístico que começou no início da decada passada, mas que só agora vem ganhando popularidade dentro e fora da internet. Seja bem-vindo ao nerdcore, o hip hop feito para representar o estilo de vida nerd.
YTCracker, um dos principais representantes do movimento nerdcore
Rap para geeks
Como quase todo gênero musical, é difícil identificar qual foi exatamente a origem do nerdcore. O termo foi usado pela primeira vez em 2000 pelo norte-americano MC Frontalont; ao longo dos anos seguintes, o movimento foi ganhando forma e um número cada vez maior de adeptos, recebendo subgêneros e sendo representado por artistas com nomes explícitos como Commodore 64 e Optimus Rhyme.
As músicas trazem letras que abordam tecnologias atuais, falam sobre ficção científica e citam ícones da cultura geek
O nerdcore é um ritmo definido sobretudo pelo estilo lírico — as músicas trazem letras que abordam tecnologias atuais, falam sobre ficção científica e citam ícones da cultura geek (incluindo filmes e quadrinhos famosos). Outra característica em comum é o emprego de samples de trilha sonora de jogos da era 8 bits, geralmente remixados, o que concede às canções um estilo eletrônico que ao mesmo tempo é agressivo e saudosista.
A postura do nerdcore costuma seguir a ética do-it-yourself (DIY), com produções caseiras e informais, sendo que os álbuns geralmente são lançados em plataformas de hospedagem de música (SoundCloud e Bandcamp, por exemplo) e distribuidos gratuitamente sem fins lucrativos. Por não ser um gênero comercialmente atraente, os artistas costumam seguir carreira independente, sem depender de grandes produtoras e gravadoras.
MC Router, a representação feminina do gênero musical
História de sucesso
“Antes de fundar o Dual Core, eu era um desenvolvedor que trabalhava construindo banco de dados e aplicativos web. Agora eu trabalho em um Time Vermelho onde eu programo malwares. c64 era e continua sendo um designer gráfico”, afirma int eighty, em uma entrevista exclusiva concedida ao TecMundo. Mesmo estando em plena viagem ao longo da Europa, o artista teve um tempinho para conversar com a nossa equipe.
“Eu conheci o c64 em um fórum underground de hip hop. Ele tinha uns instrumentais no site soundlick.com e havia concluído um álbum com outro rapper que eu tinha gostado bastante. Eu estava começando a cantar rap e tentava melhorar a todo custo. Naquele tempo, meu objetivo era ser bom o suficiente para fazer uma música com ele”, relembra o cantor. A dupla só se encontrou em 2007; até então, produziram canções remotamente, pela web.
O universo hacker esteve presente na maior parte da minha vida, então ele costuma me dar inspiração para bastante conteúdo musical
Foi nesse ano que a banda, então batizada de Dual Core, lançou seu primeiro álbum, Zero One. Várias músicas do CD fazem apologia à franquia Star Wars — a primeira melodia, por exemplo, tem seu título retirado do quarto capítulo da série de longa-metragens, “A New Hope” (“Uma Nova Esperança”). O trabalho mais recente da dupla é “All the Things”, disponibilizado em 2012 através de plataformas como Bandcamp e iTunes.
De acordo com int eighty, suas primeiras composições falavam sobre as ferramentas de hacking que ele costumava programar para a America Online (AOL). “Eu era um hacker antes de virar um rapper, então escrever músicas sobre o Linux, engenharia reversa etc. veio naturalmente para mim”, revela. “O universo hacker esteve presente na maior parte da minha vida, então ele costuma me dar inspiração para bastante conteúdo musical”.
Nerdcore no Brasil
Ao ser questionado se ele acredita que suas composições podem ajudar a sociedade a entender melhor o mundo hacker e destruir tabus da cultura nerd, int eighty afirma que sua missão pessoal é fazer músicas que sejam divertidas. “A comunidade hacker é bastante diversificada, mas um princípio comum é a liberdade individual. Seria um bônus se outras pessoas se identificassem com nossas músicas e aprendessem algo com isso”, responde.
Foi a primeira vez que eu estive no Brasil e mal posso esperar para voltar ao país
Além disso, o artista afirma ter gostado muito de se apresentar em nosso país e pretende retornar para a Roadsec do ano que vem. “Foi a primeira vez que eu estive no Brasil e mal posso esperar para voltar ao país. A Roadsec foi uma conferência fantástica e todo mundo foi muito amigável. Espero ter a chance de me apresentar novamente no ano que vem e fazer outro show divertido”, comenta.
Por fim, o rapper avisa que o próximo álbum da dupla, “Downtime”, será lançado em 2017 durante a DEF CON, evento organizado pelo hacker Jeff Moss e marcado para ocorrer no mês de julho, em Las Vegas. “Nós também temos outras músicas e projetos em andamento com bandas parceiras. Muito obrigado a todos no Brasil”, finaliza.
int eighty durante uma apresentação em uma DEF CON
Gângster digital
“Você sabe que rappers gostam de vender drogas; mas você vende nas ruas, e então está mais morto que o Google Buzz ou o Google Plus; existe uma estrada feita de seda se você precisa garantir seu espaço nessa disputa química sem conflitar com a lei”, canta Bryce Case Jr., conhecido pelo nome artístico YTCracker (lê-se whitey cracker). Nesse trecho, o rapper cita o Silk Road, famoso site de venda de drogas que era hospedado na deep web.
A passagem faz parte da música “Bitcoin Baron” — ou “Barão do Bitcoin”, em português. Como o título sugere, a canção conta a vida de um hacker que ostenta altas quantidades da criptomoeda. “Sou um barão do bitcoin, estou abalando o status quo [...] e o algoritmo não vai pegá-los até que o PRISM coloque todos nós na cadeia, e essa é a vida de um nerd”, canta o estadunidense.
Antes de virar rapper, Bryce se divertia como cracker fora-da-lei, tendo ficado famoso na internet sobretudo por realizar ataques constantes a sites governamentais dos EUA e modificar o conteúdo das páginas — uma prática que, no universo hacker, é conhecida como deface. Começou a trabalhar com música em 1998, um ano antes de realizar um deface no site oficial da NASA e participar de ataques de negação de serviço (DDoS) contra o Yahoo.
Desde o início de sua carreira, o rapper já lançou 21 álbuns
Em maio de 2015, YTCracker chegou a ser processado por invadir os servidores da cidade de Colorado Springs, acusado de causar um prejuízo de US$ 25 mil ao governo local — porém, esse grande “prejúizo” foi logo divulgado como sendo custos do “tempo perdido” de seus usuários e funcionários. Desde o início de sua carreira, o rapper já lançou 21 álbuns, entre trabalhos solo e parcerias com outros artistas.
YTCracker, infelizmente, não respondeu o nosso pedido de entrevista até a finalização desta reportagem. Por atualmente ser um dos principais representantes da cena nerdcore, é bem provável que o artista marque presença em eventos da cultura hacker ao longo de 2017 — incluindo a DEF CON e, quem sabe, alguma conferência brasileira sobre segurança da informação.
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