Pense no projeto de uma megacidade criada do zero. Nele, há uma linha reta de 170 quilômetros, livre de ruas e carros, com as principais instalações de infraestrutura urbana (água, luz, gás e cabeamentos) alocadas no subterrâneo, como também de transportes (metrô e hyperloop).
Isso permitiria que a superfície fosse ocupada apenas por casas, edifícios, praças e espaços de convivência, levando o conceito de “cidade de 15 minutos” para o extremo de apenas 5 minutos, tempo para que o cidadão encontre tudo o que precisa em seu dia a dia. Esse é o projeto The Line, recém-anunciado pelo príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Mohammed bin Salman. Mas:
Uma cidade livre de carros pode ser considerada smart e inclusiva?
Como ressalta a notícia do TecMundo sobre o The Line, a região na qual se pretende construir “A Linha” é ocupada pela tribo Huwaitat, que solicitou à ONU “ajuda para frear despejos forçados e abusos de autoridades sauditas”. O alerta foi feito pelo jornal inglês The Guardian. Vale lembrar o longo histórico de violações a direitos humanos na Arábia Saudita, que incluem restrições aos direitos das mulheres e comunidade LGBTQIA+.
Outro aspecto fundamental é o caráter elitista dessa megacidade erguida praticamente do nada destinada a futuros moradores de forma pouco inclusiva, sem respeitar a diversidade étnica e cultural da região. Além disso, o fato de ser “livre de carros” não necessariamente a tornará smart, já que, como os metrôs, existem vários modelos de veículos e outros modais que não poluem o meio ambiente e otimizam a mobilidade urbana.
Por outro lado, é inegável o caráter ambicioso da iniciativa. Segundo avaliação do expert em smart cities e nosso parceiro no iCities, Renato de Castro, em sua coluna no UOL, esse é provavelmente o maior projeto urbano em desenvolvimento no mundo. “As construções do projeto estimado em 0,5 trilhão de dólares tiveram início em janeiro de 2019 e seguem a linha de outros projetos da região do Oriente Médio, como Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, e Lusail, a cidade inteligente do Catar, construída para a Copa do Mundo de futebol do próximo ano.”
Smart City Laguna
No Brasil, temos alguns exemplos interessantes (e já avançados) de smart cities e bairros inteligentes. Um dos pioneiros, e talvez um dos mais conhecidos, é a Smart City Laguna, em São Gonçalo do Amarante, na Região Metropolitana de Fortaleza (CE), considerada a primeira Cidade Inteligente Inclusiva do Mundo. Desenvolvida pelo Grupo Planet, formado por empresas inglesas, italianas e brasileiras, essa cidade une inovação, tecnologia, sustentabilidade, planejamento urbano moderno e soluções de mobilidade com preços acessíveis a uma escala maior de moradores.
Smart City Laguna, no CE (Divulgação/planetsmartcity)Fonte: planetsmartcity
Em Santa Catarina, um case que inspira o ambiente de cidades inteligentes é o de Pedra Branca, em Palhoça, na Grande Florianópolis. Mesclando moradias, comércio, serviços, lazer, trabalho e educação a “distâncias confortáveis para serem percorridas a pé ou de bicicleta”, esse “bairro-cidade” foi projetado para 40 mil moradores, 10 mil estudantes e com geração de até 30 mil empregos. O caráter universitário do local se deve à Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul), âncora do movimento na região.
Cidade da Saúde
Ainda falando em bairros inteligentes, Minas Gerais traz sua contribuição na cidade de Passos, onde o iCities está desenvolvendo um projeto inovador em parceria com a Santa Casa, que fará do núcleo de capacitação na área de saúde local um ambiente high tech, um verdadeiro cluster de ciências ligado à saúde e ao ecossistema. Em uma área aproximada de 140 mil m², a Cidade da Saúde e do Saber vai incorporar soluções tecnológicas e inovadoras, com custos e recursos otimizados.
Por meio desse polo tecnológico e seu living lab de fomento à pesquisa e desenvolvimento, o projeto impulsionará Passos tanto na retomada econômica pós-Covid-19 quanto no desenvolvimento social e ambiental da cidade, ampliando investimentos na capacitação de pessoas da comunidade e na transformação digital, preparando-a para uma nova escala de qualidade de vida de seus cidadãos.
Cidade da Saúde e do Saber (Divulgação)Fonte: cidadesaudesaber
Cidades planejadas e bairros inteligentes são cada vez mais uma realidade no mundo, dentro dos cenários de cada país e região, mas é preciso que agentes públicos e privados envolvidos não se esqueçam de que o objetivo final de uma smart city é sempre o mesmo: o bem-estar e a qualidade de vida do cidadão, de forma ampla e inclusiva, com serviços que atendam de forma eficiente a suas necessidades. Nisso incluímos a mobilidade urbana, com todos os modais existentes, não apenas aqueles no subterrâneo, pois, do contrário, corremos o risco de estar falando de condomínios fechados em larga escala, algo que sinceramente não desejamos para projetos da magnitude de uma “The Line” saudita.
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*Beto Marcelino, colunista quinzenal do TecMundo, é engenheiro agrônomo e sócio-fundador e diretor de relações governamentais do iCities, empresa de projetos e soluções em cidades inteligentes que organiza o Smart City Expo Curitiba, maior evento do Brasil sobre a temática com a chancela da FIRA Barcelona.
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