O transporte coletivo vai ter que se transformar para sobreviver. Mas você já parou para pensar nas formas de se transportar sem tecnologia? Pois é, a boa e velha caminhada tem atraído cada vez mais adeptos em muitas cidades pelo mundo. Aliados aos movimentos de cicloativistas e usuários de patinetes, ou veículos não motorizados, os pedestres compõem a chamada mobilidade ativa – aquela que depende única e exclusivamente dos nossos pés.
O assunto vem ocupando cada vez mais o debate público acerca das estratégias de mobilidade para as cidades na renovação de seu Plano Diretor, com tendência de expansão após a pandemia. A criação de associações e ONGs de pedestres e ciclistas, que exaltam as formas saudáveis e ativas de mobilidade, também pressionam o poder público a criar formas de se viabilizar o tráfego de tais modais, como a revisão da situação das calçadas.
Lançado em 2017, o livro "Cidade de Pedestres", de Victor Andrade e Clarisse Cunha Linke, reúne relatos e experiências, brasileiras e estrangeiras, sobre a "caminhabilidade" (medida dos espaços para a circulação de pedestres) promovendo o debate sociocultural, ambiental, econômico e até de saúde sobre essa forma de se locomover. A obra foi viabilizada pelo Instituto de Políticas de Transporte & Desenvolvimento (ITDP Brasil) e justifica a relevância dessa prática no trecho a seguir:
“Caminhar é a forma mais democrática de se locomover. A liberdade de movimento é inerente ao pedestre e seu caminhar. O pedestre (...) propicia vitalidade às cidades, tornando os espaços mais democráticos. No caminhar cotidiano, o pedestre se apropria do espaço construído e tem a percepção ampliada para os detalhes da paisagem.”
Segundo plano
As perspectivas são animadoras, mas o trabalho nessa esfera ainda é árduo: as cidades foram historicamente pensadas sob o prisma dos automóveis, com pedestres e ciclistas ocupando o segundo plano. Prova disso são os locais destinados aos pedestres desproporcionalmente menores do que aqueles ocupados pelos carros, apesar de um em cada três deslocamentos ser feito a pé nas cidades.
Locais destinados aos pedestres desproporcionalmente menores do que aqueles ocupados pelos carros
A “caminhabilidade” mostra que a avaliação média dos equipamentos necessários a uma jornada confortável e segura nas capitais brasileiras é de 5,71, quando deveria ser de pelo menos 8. Mas se para os pedestres é ruim, parapessoas com deficiências é ainda pior.
De acordo com o Censo 2010 apenas 4,7% das vias urbanas contam com rampas para cadeirantes. No Norte e no Nordeste do Brasil, este índice cai para 1,6 %. Já o patamar mais alto foi encontrado no Centro-Oeste e no Sul, com 7,8%. A análise do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) foi feita no entorno das residências, levantando se uma calçada tinha rampa específica para dar acesso a cadeira de rodas.
Lei da Mobilidade
Em janeiro de 2012 foi criada aLei 12.587, que estabelece as diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana. Segundo esta legislação, cidades com mais de 250 mil moradores deveriam criar um Plano de Mobilidade Urbana até abril de 2022. Já os municípios menos populosos têm um prazo maior, até o ano seguinte.
Existem também capitais como Natal (RN), que estão elaborando neste momento seu novo Plano Diretor, feito a cada dez anos, e que inclui a mobilidade. Ou seja, a obrigação jurídica já existe para que os governos municipais tenham de pensar (e agir) sobre essa questão.
Há decretos e leis municipais que regulamentam especificamente a padronização de calçadas. Eles têm diferenças, mas o comum a todos é a determinação de que o passeio público deve oferecer trafegabilidade, manutenção fácil, qualidade urbana e acessibilidade para deficientes. Caso a calçada esteja irregular, o proprietário e até mesmo o inquilino podem ser multados.
Revitalização em Curitiba
Um exemplo recente de readequação urbana pensando na mobilidade ativa vem da região central de Curitiba, com a revitalização feita pela prefeitura da tradicional Rua Voluntários da Pátria, no início de 2020. Esse exemplo integra o calçadão de pedestres (Rua XV de Novembro, o primeiro do Brasil) à Praça Rui Barbosa, com um dos terminais mais movimentados da capital paranaense.
Todo o trecho de 340 metros da via foi transformado em uma rua inteligente, que gera uma sensação de segurança para os transeuntes, já que os veículos que trafegam naquele trecho têm velocidade limitada. Com calçada ampliadas e mais acessibilidade, sem desnível no meio fio, pisos históricos em paralelepípedos instalados em todo trecho e de forma contínua, a rua dá mais conforto e garantia de uma pisada segura.
A iluminação modernizada, com lâmpadas de LED, também traz mais luminosidade e segurança para os espaços compartilhados, além de bancos para descanso e canteiros de flores que embelezam ainda mais essa região central da cidade.
Equipe do iCities na Voluntários da Pátria. No detalhe, a calçada ampliada da rua. Fotos: Divulgação
Case de São Paulo
Voluntários da campanha Calçadas do Brasil 2019 fizeram um levantamento sobre quatro aspectos principais: acessibilidade, sinalização, conforto e segurança em passeios sob responsabilidade direta do setor público. Apesar de a capital paulista aparecer com a melhor classificação da pesquisa, na maior cidade do Brasil 41% das calçadas não cumprem o requisito mínimo da largura de 1,90 m. Isso sem falar de obstáculos que transformam o trajeto dos pedestres em um desafio arriscado.
Mas São Paulo tem o Plano Emergencial de Calçadas, da hoje senadora Mara Gabrilli, que milita pela acessibilidade; e o case daRua Joel Carlos Borges, criada em 2017. Ponto de acesso à estação Berrini, uma das mais movimentadas do metrô, o espaço de circulação de pedestres foi ampliado de 29% para 70% da via, duas faixas foram pintadas nos dois lados da via, a pintura das faixas de segurança foi reforçada e a sinalização foi melhorada com a ajuda de balizadores e de placas, além da inclusão de mobiliário urbano e de vasos de plantas.
Vale lembrar que São Paulo trabalha com a metodologia do Laboratório de Mobilidade Sustentável (LABMOB) da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que também é aplicada em Porto Alegre (RS) e Juiz de Fora (MG), em fase inicial.
A mobilidade ativa pode ser preliminar em muitas cidades brasileiras, mas é bastante promissora se levarmos em consideração o “novo normal” aplicado aos transportes. Suas vantagens podem superar os desafios urbanísticos envolvidos, e deveriam ser levadas em conta pelos mandatários municipais que elegeremos em 2020.
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Beto Marcelino é engenheiro agrônomo, colunista do TecMundo, sócio fundador e diretor de relações governamentais do iCities, empresa que organiza o Smart City Expo Curitiba, maior evento do Brasil sobre cidades inteligentes com a chancela da FIRA Barcelona.
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