Na última semana, clientes e mercado foram pegos de surpresa com o anúncio do Uber Eats de que deixará de entregar comidas no Brasil a partir de 8 de março deste ano. A companhia justificou a decisão dizendo que focará no delivery de compras de supermercados e lojas especializadas — pet shops e comércios de bebidas, por exemplo.
De acordo com a empresa, a atuação da marca será feita em duas frentes: pela Cornershop by Uber, para os serviços de intermediação de entrega de compras, e por meio de entrega de pacotes pelo Uber Flash.
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Outra promessa é que, após a saída do setor de entrega de restaurantes, o Uber Direct será expandido. A plataforma permite que empresas recebam pedidos ou façam vendas e peçam a um motorista parceiro da Uber que realize a entrega.
O informe da empresa marca mais uma desistência de uma companhia do setor de delivery de comidas no Brasil. Em fevereiro de 2019, foi a vez da espanhola Glovo comunicar que deixaria de atuar em nosso país. À época, a justificativa era de que o Brasil é “um mercado extremamente competitivo” e que “para obter sucesso [...] precisaríamos de mais investimento e tempo para penetrar, liderar e alcançar rentabilidade”.
A Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel) e até o Rappi (veja a nota ao final da matéria) lamentaram a saída do Uber Eats do mercado. Em entrevista ao TecMundo, Paulo Solmucci, presidente-executivo da Abrasel, afirma que recebeu a notícia do Uber Eats “com muita surpresa e tristeza”. Ele lembrou também do encerramento dos serviços do Delivery Center, que realizava entrega de marketplaces e lojistas.
“O maior prejuízo dessas saídas é que o mercado brasileiro vai ficando com poucas opções de plataformas full service, ou seja, que fazem da captação até a entrega dos pedidos”, disse Solmucci. Segundo dados do App Annie, o Uber Eats foi o segundo app de delivery de comida com mais usuários mensais no Brasil em 2021, ficando atrás apenas do iFood.
Com a saída de um player tão grande desse forte setor da economia, fica a dúvida sobre o que está acontecendo no segmento. Afinal, quais são as condições desse mercado, responsável pela movimentação de R$ 60 bilhões em 2021, que fazem as empresas do setor anunciarem sua saída?
O mercado de app de entregas
Atualmente, o mercado de apps de entrega de comida no Brasil é dominado basicamente por iFood, Rappi e Uber Eats. De acordo com pesquisa da Measurable AI, companhia de relatórios de mercado, o iFood “nada de braçadas”, dominando 83% do setor, segundo dados de junho de 2021. Enquanto isso, o aplicativo Uber Eats tem 13% do segmento, com o Rappi ficando apenas com 4%.
O infográfico produzido pela Measurable mostra que, entre janeiro de 2020 e junho do ano passado, o mínimo de fatia de mercado que o iFood conseguiu foi de 69%, um número impressionante.
Com parâmetros diferentes, um relatório produzido pela Statista, empresa de dados voltados para aplicativos, mostra que 68% dos pedidos de comida feitos via app em 2021, no Brasil, foram realizados no iFood.
Depois do iFood, aparecem outros (15%): Uber Eats (10%) e WhatsApp (7%).
A dominância do mercado brasileiro por parte do iFood tem chamado a atenção e incomodado outras marcas e entidades representativas. Foi esse sentimento que fez a Abrasel e a Rappi irem até o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) protocolar uma ação contra o líder do mercado em 2020.
Ação concorrencial
No processo público n° 08700.004588/2020-47, o Cade pondera que independente da métrica utilizada, o market share (fatia de mercado que a empresa domina) do iFood sempre ultrapassa (e muito) os 20%, que é exigido pela lei para que uma companhia seja considerada como tendo “posição dominante”.
A ação considera que o iFood desfruta da chamada “vantagem do pioneiro”, já que foi a primeira empresa a explorar o mercado de entrega e pedido de comidas online. “O iFood ‘criou’ o mercado, captando um portfólio de restaurantes considerável em um lado da plataforma, o que atraiu uma grande quantidade de consumidores do outro lado. São dois lados que se retroalimentam: quanto mais restaurantes a plataforma possui, mais consumidores têm interesse em fazer parte dela e, quanto mais consumidores utilizam a plataforma para fazer seus pedidos de delivery, mais restaurantes têm interesse em contratar os serviços da plataforma”, segundo trecho da ação.
Apesar de considerar esse movimento natural na economia, o Cade explica que o fato criou uma barreira para a entrada de novos concorrentes, já que, para brigar com o iFood, os “novatos” precisam conquistar uma boa rede de restaurantes para atrair os consumidores.
Desse modo, foi justamente nesse ponto que o Cade considerou que o iFood utiliza práticas que dificultam a concorrência. O aplicativo tem um programa de exclusividade com restaurantes, ou seja, ao se tornar parceiro do app, o restaurante recebe benefícios como taxas menores de cobrança para utilizar os serviços, mas não pode colocar seu cardápio disponível nos apps concorrentes.
Mesmo lembrando que a tática não é ilícita no Brasil e muito menos exclusiva do iFood, o Cade pontua que a “adoção de cláusulas de exclusividade por agentes com posição dominante tem o potencial de (i) provocar fechamento de mercado, (ii) aumentar barreiras à entrada, (iii) elevar os custos dos rivais ao restringir sua atuação naquele mercado ou relegá-los a fornecedores (no caso, restaurantes) menos atrativos”.
Além da exclusividade com restaurantes menores, o iFood também tem parcerias com grandes redes do país. Esse é o caso das marcas Coco Bambu, Habib’s, China in Box, The Fifties, Oakberry e Si Señor, que, pelo menos até 2020, só vendiam seus alimentos no app vermelho.
O Outback é uma das redes que ainda tem contrato de exclusividade com o iFood.
Por meio desses e de outros argumentos, o Cade ordenou, de forma liminar, em 11 de março de 2021, que o iFood parasse de celebrar contratos de exclusividade com restaurantes. A instituição pública determinou que, ao término dos atuais contratos vigentes, o aplicativo e o restaurante só podem renová-los por até 1 ano.
O iFood é um monopólio?
O advogado Eduardo de Avelar Lamy, especialista em compliance concorrencial, explica ao TecMundo que um monopólio significa um controle exclusivo de um único fornecedor em relação a um mercado, produto ou serviço. No Brasil, a legislação concorrencial proíbe os monopólios, excetuando situações excepcionais. Tendo isso em mente, ele argumenta que o iFood não constitui um monopólio em nosso país.
“O que existe, isso sim, é um controle bastante significativo do mercado por parte do iFood. Contudo, é preciso separar e entender que controlar um mercado não é o mesmo que monopolizá-lo”, disse Lamy.
O advogado defende, inclusive, que não há falta de concorrentes ao iFood no mercado. De acordo com ele, a empresa tem vários competidores e que inclusive acabam sendo prejudicados por decisões como a exclusividade dos restaurantes e contratos de longa duração.
Lamy argumenta que a decisão do Cade é importante para equalizar a competição entre aplicativos de entrega. Apesar disso, a liminar, sozinha, não deve ser suficiente para equilibrar o setor.
“O Cade ainda poderá, por exemplo, instituir programa de acompanhamento da conduta do iFood no mercado, por meio de práticas de monitoramento, inclusive mediante a apresentação de esforços de compliance concorrencial e a apresentação de relatórios periódicos, os quais influenciarão a empresa a competir por meio de qualidade e preço, e não por meio de práticas que possam ser consideradas anticoncorrenciais”, disse o advogado.
Luta contra exclusividades
Paulo Solmucci, presidente-executivo da Abrasel, faz questão de elogiar o iFood e diz que o app tem “excelência operacional” e que foi “fundamental durante a pandemia”. Porém, ele alerta que o crescimento da plataforma trouxe preocupações.
“O iFood declara que apenas 10% dos restaurantes cadastrados têm contratos de exclusividade, defendendo que o número é baixo, mas não é, porque estamos falando de uma parcela de elite que está nas mãos deles. Esses negócios acabam recebendo recursos, condições financeiras, serviços melhores e tudo isso gera bastante distorção”, explicou Solmucci.
O presidente-executivo da Abrasel, Paulo Solmucci. (Crédito: Paulo PSilva)
Solmucci diz que a Abrasel tem, como um dos princípios, lutar contra ações de exclusividade. Ele lembra, por exemplo, que a entidade atuou contra a expansão de medidas da Ambev nesse sentido. A empresa brasileira produtora de bebidas também realiza contratos de exclusividade com bares e restaurantes, e o representante disse que a Abrasel conseguiu equalizar a questão para não tornar essa “dinâmica negativa” uma regra no setor de bebidas.
Uma fonte que conhece o mercado de apps de delivery de comida e preferiu não ser identificada conversou com o TecMundo e levantou outras questões sobre a dominância do iFood. Foi lembrado, por exemplo, que esse setor da economia oferece boas condições de atuação e está, inclusive, atraindo investimentos de outras empresas, a despeito da saída de outros.
Movimentações do mercado
Esse é o caso da Shipp, companhia de delivery que foi criada em 2017 e que no ano passado foi adquirida pela B2W (dona de marcas como Americanas e Submarino). O Magazine Luiza, outra gigante do varejo nacional, adquiriu também nos últimos 2 anos os empreendimentos de delivery de comidas ToNoLucro, GrandChef e AiQFome.
A fonte ouvida pela reportagem também pontua que outros players do mercado, como o próprio Rappi, adotam a estratégia de parceiros exclusivos e que a comparação do market share do iFood desconsidera importantes variáveis. “O iFood está em mais de 1,5 mil cidades brasileiras, enquanto os outros apps atuam em, no máximo, 300 cidades”, disse a fonte.
Entregador do iFood em Curitiba (PR).
Além disso, a fonte lembra que o Uber Eats — que é uma empresa norte-americana — finalizou recentemente a operação em vários países, como Índia, Uruguai, Argentina, Colômbia e Egito. Os fechamentos fazem parte da nova política comercial da marca de encerrar escritórios em países em que o app de delivery não é líder.
Donos de restaurantes buscam alternativas
O TecMundo conversou com donos de restaurantes em São Paulo que utilizam os aplicativos de entrega. Igor Lima administra uma hamburgueria no bairro da Penha, na Zona Leste da capital paulista, e confessa que não sentirá tanta falta do Uber Eats porque sempre considerou o app ruim. Ele comenta que o serviço prestado pela empresa é mais caro do que do iFood, por exemplo, o que o obrigava a elevar o preço dos hambúrgueres.
“O cliente entra no Uber Eats e vê que o preço dos hambúrgueres está muito mais alto do que no iFood. Então ele acaba optando por pedir no iFood mesmo. O consumidor basicamente vê o valor final, não quer saber a plataforma”, explicou Lima.
Apesar de praticamente não fazer mais uso do Uber Eats, o dono da hamburgueria está receoso com a saída do aplicativo do mercado. “Quanto menos concorrência, melhor para o iFood. Se um dia eles quiserem aumentar a taxa dos restaurantes, eles poderão fazer isso, já que estarão sozinhos no mercado”, disse Lima.
A hamburgueria do empresário Igor Lima vende basicamente por iFood.
Lima diz que o iFood sozinho corresponde a mais de 80% dos pedidos realizados no local. A dependência do app o preocupa e faz com que ele busque alternativas.
Outro exemplo é de Alex Sandro Dias, que é dono de restaurante de comida caseira e utiliza somente o iFood em relação a apps. Porém, ele resolveu adotar uma estratégia de privilegiar pedidos que chegam pelo WhatsApp e telefone. "As taxas que são cobradas [pelos apps] são muito altas para o restaurante e, com o Whats e o telefone, eu não tenho que arcar com esses valores", afirmou Dias.
O empreendedor também conta que o planejamento fez que seus clientes se acostumassem a pedir no local por mensagem ou pela tradicional ligação. Hoje, as duas abordagens representam a maior demanda de pedidos do restaurante. "Quem investiu somente nos apps vai acabar ficando muito dependente deles", ele finalizou.
Como melhorar a concorrência do setor?
Com tantas discussões que levam diversos fatores e variáveis em consideração, o fato é que uma alternativa é praticamente unanimidade no setor de apps de comida: o Open Delivery. Apesar do nome emprestado do Open Banking, a inspiração surgiu de outro local.
“Antigamente, um lojista precisava ter seis, sete máquinas de cartão porque cada bandeira tinha um sistema diferente. O Open Delivery funciona como a padronização dos softwares de cartão, ou seja, vai permitir que todos os apps de entrega de comida sejam unificados e funcionem em uma mesma plataforma, permitindo que o comerciante não precise ter todos os apps diferentes instalados”, explicou o presidente-executivo da Abrasel.
Solmucci afirma que os donos dos restaurantes serão beneficiados porque saberão, dentre outras informações, qual é o pedido que chegou primeiro, terão cardápios uniformizados, dados sobre entregas em um mesmo ambiente e mais. A redução da complexidade diminuirá o custo de operação para os empreendedores, segundo a entidade de bares e restaurantes.
“É uma revolução do setor que beneficiará também o cliente. A partir do momento que reduz o custo para o restaurante, os preços menores são geralmente repassados para o consumidor, já que o setor de alimentação no Brasil tem uma concorrência muito alta. E os motoqueiros e entregadores também serão bastante beneficiados, já que, quando essa relação entre cliente e plataforma melhorar, eles também serão impactados com condições melhores de trabalho e salários”, falou Solmucci.
O primeiro pedido a partir da plataforma do Open Delivery foi realizado nos últimos dias de dezembro de 2021, no Rio de Janeiro, em uma confeitaria. Apesar de os grandes apps do setor não terem aderido ainda ao sistema, a expectativa é que isso aconteça em breve. “Estamos trabalhando para que essa integração seja feita ainda neste ano e acredito que ela vai, sim, acontecer”, finalizou o presidente-executivo da Abrasel.
O que dizem as empresas de delivery
O TecMundo entrou em contato com as principais empresas de delivery do mercado brasileiro em busca de esclarecimentos. Confira a resposta de cada um dos aplicativos.
Rappi
Em resposta ao TecMundo, o Rappi comentou que acompanha as notícias do mercado e lamenta a saída do Uber Eats do setor de entrega de comidas. “O Rappi acredita em um mercado justo, de livre concorrência, onde haja oportunidades para que todos os players exerçam seu papel e conquistem seu espaço”, pontuou a empresa por meio de um comunicado.
Ainda sobre isso, a companhia lembrou da ação que abriu junto ao Cade contra o iFood. O Rappi informou que o assunto segue tramitando e a decisão do Cade de impedir novos contratos de exclusividade é liminar (temporária).
“A decisão trouxe inegáveis impactos positivos ao mercado. Apesar disso, diante de mudanças relevantes, como a que presenciamos, o Rappi deposita sua total confiança e expectativa na melhor avaliação concorrencial do órgão a favor do mercado como um todo, a fim de garantir a eficácia e efetividade de suas decisões frente a eventos como a saída do segundo mais relevante player em termos de participação de mercado”, de acordo com o Rappi.
A marca não respondeu, porém, sobre o Open Delivery e quando deve aderir à plataforma.
Uber Eats
O Uber Eats se recusou a comentar com mais detalhes a sua futura saída do setor de entrega de comidas e a sua relação com os outros players do mercado de delivery no Brasil.
Cade
O Cade explicou, por nota, que “acompanha os mercados, mas não emite manifestação fora de processos públicos em tramitação na autarquia”.
iFood
Sobre o caso do Uber Eats, o iFood disse que “não comenta decisões de negócio de outras empresas”.
“Com relação ao mercado de entrega de refeições, o iFood esclarece que o setor de delivery online segue em constante evolução com a entrada frequente de novos competidores e o surgimento de novos modelos de negócios. Essa competição intensa favorece restaurantes, entregadores e consumidores, promovendo mais inovação para todo o ecossistema”, complementou a empresa.
Sobre o Open Delivery, o iFood informou que é apoiador do projeto desde o começo, inclusive financiando a implantação da plataforma. A empresa diz que a novidade trará “padronização e transparência” e, apesar de não falar quando vai aderir ao sistema, diz que o futuro do setor de apps de entregas é o Open Delivery.
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