No Brasil, problemas fiscais representam um dos principais desafios com os quais precisamos lidar. Como equilibrar as contas públicas em um cenário de baixo crescimento econômico (ou recessão), máquina estatal pouco eficiente, envelhecimento da população e necessidade de investimentos significativos para reduzir a desigualdade social, é uma tarefa nada trivial. Recentemente, com o aumento dos gastos do governo em virtude da pandemia, a situação tornou-se ainda mais crítica.
Uma das alternativas apresentadas pelo Governo Federal está relacionada à criação de um novo tributo, chamado de “microimposto digital”. Os detalhes da proposta não estão claros, mas o imposto deve incidir sobre pagamentos e transferências entre contas de titularidades diferentes, via cartão de crédito/débito, boleto, TED/DOC etc. Ou seja, na prática, apenas pagamentos com dinheiro em espécie estariam isentos. Dadas as similaridades, esse tributo foi apelidado de “nova CPMF” ou “CPMF digital”, em referência à contribuição criada em 1996 e que vigorou até o final de 2007.
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A “CPMF digital” tem como grandes vantagens a facilidade de cálculo e arrecadação, além da impossibilidade de sonegação, pois o imposto seria cobrado quando a transação financeira for realizada. Por outro lado, possui uma série de desvantagens, como sua caraterística cumulativa. Ou seja, a cada etapa da cadeia de valor de um produto/serviço, é tributado o montante total da transação entre comprador e fornecedor, em vez de tarifar apenas o valor agregado. Como consequência, o preço final dos produtos tende a aumentar e pressionar a inflação.
Entretanto, o principal efeito colateral nocivo da “CPMF digital” é o incentivo ao uso de dinheiro em espécie para realizar pagamentos.
Sabemos que transações em dinheiro vivo representam o principal vetor para atividades ilícitas, corrupção e sonegação de outros impostos, inclusive.
No caso do PIX, rede de pagamentos instantâneos que não terá custo para as pessoas físicas, a “CPMF digital” acaba sendo a “kryptonita” desse novo arranjo, pois prejudica o processo de digitalização e bancarização da população brasileira.
Atualmente, no Brasil, existem cerca de 45 milhões de adultos sem conta bancária. Dado que há agências em praticamente todas as cidades do país, uma boa parte destas pessoas poderia abrir contas em bancos tradicionais, mas não o faz porque são mal atendidas pelos "bancões", que cobram tarifas caras (ex.: TED/DOC e saque) para movimentação do dinheiro.
O PIX, dada a sua abrangência e interoperabilidade, é capaz de causar uma disrupção no mercado financeiro justamente pelo fato de os novos entrantes (bancos digitais e fintechs) serem capazes de competir em maiores condições de igualdade com os bancos tradicionais e oferecer um serviço de melhor qualidade a um preço justo para os desbancarizados.
Entretanto, se a “CPMF digital” passar a vigorar, haverá uma força contrária, igualmente poderosa, para que os desbancarizados não mudem seu comportamento e continuem a utilizar numerário, justamente para fugir dessa nova taxa.
Perderemos uma oportunidade de ouro para levar serviços financeiros básicos a dezenas de milhões de brasileiros
CPMF digital é um contrassenso
Diversos economistas afirmam que dois dos principais fatores que impulsionam o desenvolvimento econômico são a disponibilidade de dinheiro e a velocidade/facilidade com que esse dinheiro se “move” entre pessoas e empresas.
Com o PIX, será tão fácil pagar e transferir dinheiro quanto mandar um e-mail, ou fotos via WhatsApp. Em um evento no início deste ano, ouvi de um especialista que esse novo nível de “fluidez” do dinheiro pode causar um impacto positivo de até 1 ponto percentual no PIB brasileiro. Ou seja, criar um imposto como a “CPMF digital”, que desestimula o uso do PIX, pode inclusive levar a uma arrecadação menor! Em suma, o novo imposto é um absoluto contrassenso.
Não tenho conhecimento suficiente muito menos a pretensão de propor uma solução para nosso grave problema fiscal, mas claramente a “CPMF digital” não nos ajudará a resolver essa questão — e ainda vai atrapalhar o esforço realizado até agora pelo Banco Central a favor da democratização do acesso a serviços financeiros no Brasil.
A “CPMF digital” é aquele tiro que sai pela culatra
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Alexandre Pinto, colunista quinzenal do TecMundo, é Diretor de Inovação e Novos Negócios da Matera e especialista em Open Innovation. Na empresa desde 2001, foi responsável pela criação da área de P&D e do seu ecossistema de parceiros.