A última segunda-feira (2) foi especial para o mundo do futebol: o Leicester City, coadjuvante durante quase toda a sua história centenária na Inglaterra, foi campeão da Premier League — a primeira divisão de lá. Vencendo equipes com muito mais tradição, dinheiro, craques e estrutura, as Raposas de azul e branco tiveram a torcida de fãs do mundo inteiro e levaram o título em uma das façanhas mais incríveis do esporte atual.
Para quem não é chegado ao futebol, comparar com o Brasil ajuda, mas é complicado: o sistema esportivo inteiro é diferente, e o abismo financeiro entre os clubes varia bastante de um país para o outro. Porém, imagine um time que está sempre na parte de baixo da tabela, como o novato Chapecoense (14ª e 15ª nos dois últimos Brasileirões), simplesmente desbancando Corinthians, Flamengo, Cruzeiro e demais. É um paralelo supersimplório, mas que pode dar uma ideia da dimensão do feito.
Só que o milagre de Leicester não foi só um acaso ou resultado do futebol jogado pela equipe, que era bastante defensivo e às vezes baseado no "chutão", mas cheio de lances individuais incríveis e muita vontade em campo. O time também se apoiou bastante na tecnologia, mais precisamente em análise de dados para saber em que podia melhorar e como vencer algumas das melhores equipes do mundo. Como tudo isso aconteceu é o que você confere a seguir.
Por que se impressionar
A primeira divisão do futebol da Inglaterra é chamada de Premier League desde 1992, quando clubes se desvincularam da federação oficial por, entre outros motivos, rever os valores dos contratos de transmissão da televisão. Hoje, pelos craques e graças ao dinheiro movimentado, é o campeonato nacional mais assistido em todo o mundo.
Para a atual temporada, levar o caneco não era nada fácil. O Chelsea defendia o título com praticamente o mesmo time titular. O Manchester City e o Manchester United vinham embalados e cheios de expectativas. O Liverpool ganhou no meio da temporada o reforço do treinador alemão Jurgen Klopp. O Arsenal sempre desponta entre os favoritos. Entretanto, nenhum deles conseguiu fazer frente ao Leicester — e as bizarrices continuam porque o grande rival nessa reta final foi outro time que surpreendeu, o Tottenham.
Jamie Vardy: de bater ponto em fábrica à glória.
Fazendo um rápido resumo: o Leicester escapou raspando do rebaixamento na temporada passada e não tinha muitas pretensões neste ano. Trouxe um treinador contestado, o italiano veterano Claudio Ranieri, e montou um elenco relativamente barato nos últimos anos cheio de atletas renegados ou que custaram troco de bala (para os padrões da liga). Um exemplo? Jamie Vardy, artilheiro do time no ano e agora jogador de seleção, jogava no futebol amador e era funcionário de uma fábrica em 2012.
Riyad Mahrez, craque do meio de campo, foi comprado de um time da segunda divisão francesa por 500 mil libras (um valor módico para o futebol milionário da Inglaterra). O argelino hoje é disputado pelos maiores clubes do mundo, podendo ser vendido por até 20 milhões de libras.
A glória do Leicester é um trabalho em equipe, mas Mahrez (centro) foi um dos destaques.
E essas são só algumas das muitas histórias incríveis envolvendo o clube. Nesse compilado feito pelo Trivela, você fica sabendo como uma pizza pode ter melhorado o time e como um torcedor driblou a morte na tentativa de ver a equipe levantando o caneco.
O futebol no computador
Muitos fãs mais tradicionais criticam a abordagem de dados no esporte. "O jogo é no campo", dizem, e é bem verdade que os status de um jogador e seu desempenho prévio podem não fazer a diferença se o goleiro adversário pegar um pênalti ou o se atleta tiver exagerado na noitada do dia anterior.
Só que esse estilo de estudo é realmente levado a sério em muitos clubes, incluindo o Leicester. O site Opta Sports Pro passou o dia no departamento de análise de dados de lá e tirou conclusões bem curiosas sobre como a tecnologia ajudou o azarão.
Os analistas ficam próximos da comissão técnica nos bastidores.
São dois integrantes que trabalham juntos, mas com tarefas diferentes: Peter Clark e Andy Blake. Um funcionário cuida de toda a análise pré-jogo, enquanto o outro é responsável pelos relatórios após a partida e a avaliação do desempenho. Eles lidam mais com os membros da comissão técnica do que com os jogadores, fazendo um trabalho de bastidores que quase não é conhecido (nem reconhecido), mas pode fazer a diferença em mínimos detalhes.
"Sabemos que jogadores diferentes aprendem de formas diferentes, então os relatórios tentam focar nisso. Nas últimas três temporadas, aumentamos a ênfase no aprendizado dos atletas a partir da interação com nosso conteúdo no iPad. Os relatórios interativos antes e depois dos jogos que combinam estatísticas, comentários subjetivos e material do jogo se provaram particularmente populares", disse um dos analistas ao site.
Nigel Pearson, que treinou o Leicester antes de Ranieri, consultava sempre os analistas no estádio.
O material feito por esses profissionais é um relatório com estatísticas, padrões de jogo, desempenho individual e coletivo. Ele inclui gráficos, tabelas, planilhas, tópicos e até vídeo, tudo complexo e "mastigado" na medida certa para a compreensão do técnico. Há sugestões de táticas, dados sobre o estilo de jogo de cada atleta e a forma atual.
Na pegada do Football Manager
Um dos analistas assiste ainda às três partidas anteriores do próximo adversário e coloca todas as anotações no iBook. Nesse caso, ele analisa como o time se organiza quando está com a bola, o que eles fazem na transição defesa-ataque, a organização da linha de trás e o esquema tático. Tudo isso vira mais uma coletânea de gráficos, vídeos e relatórios. O próprio treinador pode "encomendar" alguma análise especíica.
No King Power Stadium, em Leicester, o setor de análise de dados tem uma mesa própria com boa vista para o campo, além de um escritório diretamente conectado com o vestiário (veja no tweet abaixo). Lá, TVs e PCs com diferentes ângulos da partida e softwares de análises de dados — um modesto paraíso desse "futebol nerd". No intervalo, eles precisam ser rápidos e usar menos de 15 minutos para analisar o que aconteceu no primeiro tempo e repassar um resumo à equipe.
The #LCFC Analysis room ready to provide multi-angle HT/FT feedback to players and staff! ???? #LeiTot pic.twitter.com/8g7yui0XU7
— Peter Clark (@Peter_Clark23) 22 de agosto de 2015
No pós-jogo, informações dos próprios funcionários são coletadas junto com a empresa Opta, a maior do ramo de análise de dados esportivos. Resumir tudo é complicado, ainda mais porque o próximo jogo sempre é no máximo em sete dias. O prazo corrido complica até a inovação no setor de um clube menor, como o Leicester, já que só há tempo para fazer o trabalho-padrão.
As análises podem ser bem pontuais: os jogadores do meio do Leicester podem analisar a si mesmos em comparação com o mesmo setor do outro time, por exemplo. A equipe ainda pode fazer comparações para ver se o desempenho do primeiro para o segundo cai ou melhora — e o porquê disso acontecer.
O atacante argentino Leonardo Ulloa é um dos que verifica os relatórios de jogo.
Jogadores têm acesso a qualquer momento e são incentivados a ver os resumos, mas eles se envolvem em níveis diferentes. Danny Drinkwater, que ficou famoso por grandes lançamentos nas partidas, se interessa bastante por dados de distribuição de bola, por exemplo. Os dados podem ser apresentados no tablet ou em uma boa e velha folha de papel — tudo bem ilustrado para facilitar a compreensão.
Assim não tem como não ficar informado sobre o desempenho do Leicester City.
O que era mais provável?
Em agosto de 2015, quatro meses depois do início da Premier League, a probabilidade de uma vitória na liga do Leicester City era de 5.000/1 — traduzido como uma chance de título em cada 5 mil possibilidades de disputa do campeonato. Isso também indicava que quem colocasse R$ 1 no feito sairia hoje com R$ 5 mil. O dado é da empresa de agenciamento de apostas William Hill, que também listou eventos que, na matemática, eram mais prováveis de acontecer do que o título.
- Simon Cowell, do American Idol, virar primeiro-ministro britânico (500/1)
- O Monstro do Lago Ness ser descoberto (500/1)
- Príncipe William e Kate Middleton terem trigêmeos (1.000/1)
- Sir Alex Ferguson, ex-treinador do Manchester United, vencer a "Dança dos Famosos" (1.000/1)
- Elvis estar vivo (2.000/1)
...
O Leicester City não é o único time a fazer análise de dados e muito menos o mais bem equipado, mas é um bom estudo de caso e, principalmente, um que deu resultado. Com estatísticas e probabilidades ou não, o título histórico da Premier League se deu por uma combinação de resultados que não sabemos quando vai acontecer de novo — futebol bem jogado, elenco em sintonia, treinador com sorte e juízo e até concorrentes vacilando, tudo ao mesmo tempo. Mas não é justamente isso o que torna o futebol algo tão incrível?