Charlie Kaufman não é conhecido por fazer filmes convencionais. Os roteiros de Quero Ser John Malkovich (1999), Adaptação (2002) ou Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças (2004) são testemunhas evidentes de sua inventividade estético-narrativa. Ainda assim, essas produções parecem conservadoras diante de suas aventuras pela direção em Sinédoque, Nova York (2008) e Anomalisa (2015).
Menciono os filmes anteriores para preparar o eventual leitor ou leitora destas breves linhas, para ele(a) saber o que esperar diante de seu mais novo trabalho: Estou Pensando em Acabar com Tudo. Este chegou nesta sexta (4) na Netflix e, caso conheça alguma de suas obras pregressas, são menores as chances de se estranhar o labirinto narrativo de memória e identidade que marca essa obra nova.
As famílias felizes são diferentes.Fonte: Divulgação / Netflix
Na superfície, Estou Pensando em Acabar com Tudo trata do que seria um dia banal de um casal recém-iniciado (Jessie Buckley e Jesse Plemmons), no qual eles vão conhecer os pais de Jake (Tony Collette e David Thewlis). Rapidamente temos acesso ao universo interno da jovem, que não possui um único nome, o que rapidamente se revela uma dica para nos ajudar a decifrar o quebra-cabeças desenhado por Kaufman a partir do livro homônimo de Iain Read.
“Estou pensando em acabar com tudo”, pensa a jovem enquanto questiona se deveria mesmo seguir em frente com essa viagem. Jake tenta puxar papo, mas ela vai se perdendo nos próprios pensamentos.
Aos poucos o surrealismo típico de Kaufman começa a vazar para dentro do filme, quando percebemos que não estamos diante dos mesmos personagens o tempo todo.
Thewlis e Collette são tão adoráveis quanto assustadores.Fonte: Divulgação / Netflix
Os penteados, roupas, profissões, nomes (apenas dela) e, principalmente, a personalidade e o humor vão se alterando a cada nova sequência. Os quatro personagens centrais são os mesmos e radicalmente diferentes simultaneamente. Não demora para percebermos – ao menos quem é mais atento – que estamos mergulhados na cabeça (como em Quero Ser John Malkovich) de uma pessoa (que aparece em pequenas cenas espremidas entre os diálogos do elenco principal).
O resultado final é uma espécie de versão adulta de DivertidaMente (2015), da Pixar. Entenda o “adulta”, aqui, menos como demérito para a animação e mais como a diferença central entre o universo simbólico de Estou Pensando em Acabar com Tudo.
Kaufman está interessado em discutir gênero, sexualidade, relações humanas e, claro, a identidade (como em Adaptação). Para isso, ele usa a memória (como em Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças) como fio condutor, transitando entre a comédia romântica e o horror, com um resultado que não poderia deixar de ser surrealista.
Buckley e Plemmons nos guiam pelo filme.Fonte: Divulgação / Netflix
O início da carreira como roteirista pode ser enganoso, fazendo com que o público atente-se mais ao roteiro do que à construção das imagens construídas por Kaufman. Desde a opção pelo enquadramento clássico – 4:3, mais para quadrado do que retangular – até o jogo entre a representação teatral e a “vida real” (como em Sinédoque), Estou Pensando em Acabar com Tudo é estruturado a partir das imagens e não dos diálogos. O que é curioso, considerando que existem, a rigor, 4 cenários em todo o filme, um esforço de restrição que vai lembrar a montagem teatral.
Portanto, diferente dos outros dois grandes expoentes do surrealismo cinematográfico (Luis Buñuel e David Lynch), em que a realidade é distorcida para potencializar o olhar desconfiado e crítico diante da sociedade moderna, Kaufman está interessado no universo interno de seus personagens. Mais até do que isso, ele está interessado em demonstrar como seus personagens representam o universo interno de alguém – daí a comparação com DivertidaMente. Infelizmente, se dissermos mais sobre o filme, isso nos colocará no campo do famigerado spoiler.
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