A cena é clássica. O instalador do software inicia e, antes de começar a copiar os arquivos para o seu computador, exibe um texto enorme, em letras razoavelmente pequenas, que define o que pode ou não ser feito com aquela cópia do programa. Mas, sem se dar o trabalho de ler qualquer frase, o usuário clica logo em “Aceitar”.
A cena descrita acima deixaria nossos avós de cabelo em pé! Aceitar um termo de uso sem ler é o mesmo que assinar um contrato sem saber o que está sendo estipulado. Se, por acaso, naquele texto tiver algo que possa prejudicá-lo, pode ser tarde demais para reclamar depois que você concordar com o contrato.
Afinal, os termos de uso não passam de um contrato entre o fabricante do software e o usuário, que pagou por ele. Quando alguém compra a cópia de um software, a pessoa não está adquirindo o programa em si, mas o direito de usá-lo. E esse direito está regido sob regras estipuladas pelo fabricante. Caso o usuário não concorde com os termos apresentados, a instalação é logo cancelada.
Afinal, alguém lê aquele catatau?
A resposta é a que todo mundo esperava: quase ninguém. A maior parte das pessoas passa apenas alguns poucos segundos antes de clicar em “Aceitar”, tempo insuficiente para ler um parágrafo sequer.
Esse comportamento já foi comprovado. Rainer Böhme, da Universidade de Berkley, e Stefan Köpsell, da Universidade Técnica de Dresden, realizaram uma pesquisa com mais de 80 mil usuários. Em um serviço de proxy anônimo, os pesquisadores inseriram um aviso de mais ou menos 200 palavras, em inglês e alemão, convidando o usuário para participar de uma pesquisa sobre anonimato na internet. O texto era curto e dispensava até mesmo barra de rolagens.
Mais de 50% dos 81.920 usuários fecharam a janela em menos de oito segundos, o que demonstra claramente que eles não leram o texto todo. Além disso, os responsáveis pela pesquisa perceberam que o texto exibido nos botões da janela é que definem a atenção que o usuário dispensa a ela.
A influência dos botões
Se a janela exibe os botões “Accept” e “Decline”, por exemplo, as chances são grandes de que o usuário aceite os termos propostos pelo texto, já que a janela se parece, visualmente, com a de um contrato de licença.
Quando os textos dos botões foram alterados para “Eu desejo participar” e “Eu não desejo participar”, os pesquisadores perceberam uma queda muito grande no nível de aceitação dos usuários, porque esses botões faziam com que eles lessem o texto e pensassem melhor antes de responder.
Além disso, Böhme e Köpsell constataram que as chances de aceitação do termo diminuem à medida que o usuário passa tempo demais na tela do contrato. Ou seja, quando o usuário realmente lia o texto da janela, ele decidia não participar da pesquisa. Mas a grande maioria continuava clicando em “Aceitar”, sem ler.
O mais preocupante é o fato de que o teste foi realizado com pessoas que se preocupam com a privacidade online, ou seja, com usuários que já passaram do nível iniciante e que possuem um bom conhecimento sobre o uso de computadores ou de internet. Em um sistema de uso mais geral, talvez os resultados fossem ainda piores.
5% dos usuários leem o contrato
Jeff Sauro, fundador da empresa Measuring Usability, que tem como foco pesquisas e estatísticas referentes à usabilidade de softwares e sites, também afirma que pouquíssimas pessoas leem os termos de uso. De acordo com o profissional, ao analisar o registro de alguns softwares, ele percebeu que, em média, os usuários gastam apenas seis segundos na tela com o contrato de licença.
Ainda de acordo com Sauro, se a leitura do termo de uso demora em média 2 minutos para ser completada, pode-se afirmar que cerca de 95% dos usuário não leem o texto antes de clicar em aceitar.
Vendendo a própria alma, literalmente
Para comemorar o Dia da Mentira, a empresa Gamestation adicionou uma cláusula, no mínimo, divertida: o usuário que concordasse com a licença estaria vendendo sua alma para a fabricante do game. Porém, eles foram bonzinhos.
Caso o usuário não acreditasse que possuía uma alma, já tivesse vendido a alma para outra pessoa ou simplesmente não concordasse, ele poderia discordar da cláusula por meio de uma caixa de opção.
Mesmo assim, 7,5 mil pessoas venderam suas almas à empresa. É possível que boa parte desses usuários tenha entendido a piada e resolveu participar dela, mas também é muito provável que a maioria nem sequer leu os termos com os quais estava concordando.
Termos mais comuns nas licenças
Famosa por defender os direitos civis nas questões relacionadas à internet ou à tecnologia, a Electronic Frontier Foundation (EFF) preparou até mesmo um guia sobre os termos mais comuns presentes nos contratos de licença. De acordo com a fundação, há inúmeras cláusulas que podem restringir a liberdade dos usuários ou diminuir a sua privacidade.
Não fale mal de mim
Para começar, muitas delas estipulam que o usuário não pode criticar publicamente o software que está usando. Mas precisamente, essa licença costuma dizer que os resultados obtidos por testes de performance não podem ser divulgados ou comparados publicamente com o de produtos concorrentes. Empresas como a McAfee, Microsoft e VMware são algumas das que já apelaram para esse termo, que além de violar o seu direito de expressão também favorece uma prática de mercado desleal, já que elas poderiam, por exemplo, publicar relatórios de comparação dos próprios produtos em relação ao dos concorrentes.
Sorria, você está sendo observado
Parece mentira, mas o fato é que algumas empresas sabem o que está acontecendo em seu computador. O termo de uso de alguns softwares estipula que a fabricante pode instalar, automaticamente e sem a sua confirmação, softwares em seu computador, em nome da “segurança”.
O editor de vídeo Studio 9, por exemplo, trazia uma cláusula em sua licença alegando que esses softwares instalados por eles poderiam fazer com que o editor ou qualquer outro programa do seu computador parasse de copiar ou de reproduzir conteúdo protegido por direitos autorais.
Ou seja, a Pinnacle, fabricante do Studio 9, declarava que poderia estragar o sistema do usuário com essas instalações automáticas. E, mesmo assim, muitos devem ter clicado em “Aceitar”.
A licença de muitos softwares também estipula que o usuário concorda com a instalação de spywares em sua máquina.
Não estude este software
A maior parte das licenças também traz uma cláusula dizendo que o usuário não pode aplicar engenharia reversa ao software ou tentar “descompilá-lo”, ou seja, revertê-lo para o estágio de código-fonte. A razão é óbvia: proteger a propriedade intelectual do fabricante e evitar que outras pessoas possam lucrar em cima da criação da empresa.
Não use outro software
Outro termo que aparece com frequência é o que estipula quais softwares não devem ser usados junto com o produto do contrato de licença em questão. Alguns programas não permitem que você use maneiras “não oficiais” para removê-los, como softwares que possam desinstalar o programa de seu computador.
Concorde com o que ainda não existe
Não raros os contratos de licença avisam ao usuário que ele está concordando, automaticamente, com todas as implementações, modificações e atualizações do software que possam ocorrer no futuro. Algumas vão além e dizem que o usuário também concorda com qualquer alteração que o termo de uso possa ter.
Cláusulas nem tão comuns assim
Algumas licenças trazem cláusulas tão estranhas que até chegam a ser engraçadas. Outras acabam usando o senso de humor como forma de fisgar o usuário e fazer com que ele continue a ler o texto do contrato.
iTunes
Quem compra joguinhos e outros aplicativos pela loja do player de música da Apple nunca deve ter pensado em usar o software licenciado para cometer algum crime. Mesmo assim, a licença da iTunes Store estipula que o usuário está ciente de que não deve usar os softwares “comprados” para desenvolver ou produzir mísseis, armas químicas, nucleares ou biológicas.
O mesmo vale para o player de música em si. Quem usar o programa se compromete a não usar o iTunes para construir ameaças nucleares ou químicas. Além disso, a Apple estipula que, se por acaso ela precisar pagar alguma indenização ao usuário, esse valor não ultrapassará o valor de US$ 50.
WordWeb
O dicionário WordWeb possui uma versão paga e outra gratuita. Mas, atenção: não são todas as pessoas que podem instalar a versão gratuita. De acordo com a licença, o software só pode ser instalado apenas por “quem faz, no máximo, dois voos comerciais (e não mais do que um voo de retorno) em um período de 12 meses”.
O texto ainda complementa, dizendo que as pessoas que mais do que isso precisam comprar a versão “Pro” caso queiram continuar a usar o software depois do período de avaliação.
A empresa alega que esse modelo de licença é usado para incentivar o uso da versão gratuita por pessoas menos favorecidas, além de fazer com que os outros usuários possam pensar sobre o impacto ambiental causado por tantos voos.
Opera
Pode parecer esquisito, mas a licença do Opera define como você pode ou não usá-lo na internet. O contrato proíbe, por exemplo, que o usuário envie ou disponibilize, por meio do navegador web, imagens, códigos e outros tipos de material obscenos, vulgares, ameaçadores ou com mensagens de ódio, assim como conteúdo que desobedeça a leis ou infrinja os direitos de terceiros.
Além disso, a empresa também se dá o direito de bloquear certos sites ou domínios e redirecionar o usuário para outras páginas. Ao clicar em “Aceitar”, você está concordando com isso.
Feelin
O framework de desenvolvimento Feelin também possui uma licença curiosa. Logo no início, antes de começar as cláusulas do termo de uso, os desenvolvedores avisam que o usuário do framework promete comer apenas vegetais em pelo menos um dia da semana, ajudar ou falar com pessoas que estão passando necessidades, respeitar pessoas diferentes, reciclar o lixo, praticar sexo seguro e não invadir países pensando que é o dono do mundo.
Cuidado com os termos de uso do Twitpic!
Os termos de uso do Twitpic, serviço de compartilhamento de imagens pelo Twitter, acabaram levantando uma discussão muito relevante sobre direitos autorais. Basicamente, o contrato de licença do site dizia que a foto enviada por um usuário não podia ser reutilizada por jornais, blogs e outras pessoas, mesmo que o dono da foto autorizasse.
Depois de algumas críticas, os responsáveis pelos termos de uso voltaram atrás, garantindo os direitos completos de quem enviou a imagem para o site. Porém, o contrato de licença do Twitpic ainda esconde uma pegadinha: ao enviar uma imagem para o site, o usuário está concedendo, automaticamente, permissão para que o Twipic possa usar a fotografia como bem entender, até mesmo licenciando a foto que você tirou para outras empresas.
E, recentemente, a empresa responsável pelo Twitpic, WENN, anunciou que passará mesmo a licenciar o conteúdo disponibilizado por meio do site. Portanto, se você não concorda com esses termos, talvez seja bom procurar uma alternativa, como o Yfrog, que deixa claro nos termos de uso que não venderá ou licenciará as imagens enviadas pelos usuários.
Validade legal das licenças de software
O Tecmundo entrou em contato com o advogado Iwerson Luiz Wronski, que explicou que a legislação brasileira encara os termos de uso de um software como uma transação comum de consumo.
“O contrato de licença de uso de software se caracteriza como um contrato de consumo, sujeitando-se ao regime jurídico do Código de Defesa do Consumidor. O adquirente ou cessionário de software é sempre consumidor, sem qualquer distinção. Toda vez que o usuário adquire bens e serviços de informática, tornando-se ou proprietário ou cessionário, está protegido pelo Código de Defesa do Consumidor”, explica Iwerson.
“O artigo 2º da mesma norma legal é claro ao conceituar consumidor como ‘toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final’”, complementa.
Outra questão que pode ser pertinente é o fato de que, no Brasil, ao contrário dos Estados Unidos, a proibição de engenharia reversa de softwares não pode ser contestada. De acordo com Iwerson, isso se deve ao fato de que o usuário não está comprando o produto, mas apenas a licença de uso dele. O usuário só pode estudar ou modificar um software caso o detentor dos direitos do produto o autorize a fazê-lo.
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