Para muitos o conceito de eternidade engloba não apenas a imortalidade, mas a capacidade de deixar "pedaços" de si para as próximas gerações, como na hereditariedade genética. Contudo, no caso de Henrietta Lacks, de certo modo, ela foi capaz de contribuir nas duas frentes de perpetuidade do eu biológico.
Além de seus descentes, Lacks deixou, mesmo que involuntariamente, uma coleção de células imortais que há 73 anos contribuem em todas as frentes de pesquisa científica. Essas linhagens celulares já foram ao espaço, ao fundo do mar, expostas à radiação extrema, e testadas de todas as maneiras.
Ademais, a contribuição não fica apenas no campo das ciências. Devido à história de Lacks, políticas sobre experimentação e regras de consentimento para utilização de material biológico, entre outros conceitos de bioética, tem sido pensados e reformulados no campo da ética de pesquisa.
Com isso em mente, conheça um pouco sobre a história de Henrietta Lacks, a imortalidade celular e as principais contribuições de seus células para a ciência moderna.
Graças a Henrietta, a medicina pode evoluir na prevenção e no tratamento de cânceres cervicais.Fonte: Getty Images
A mulher de pseudônimo HeLa
Henrietta Lacks foi uma mulher negra, nascida em Roanoke, Estados Unidos, em 1920. Segundo relatos, era uma mulher alegre e vaidosa e possuía cinco filhos. Aos 31 anos, ela começou a notar alguns sintomas da doença que marcaria o final de sua vida e o início de uma saga familiar.
Em 1950, uma época marcada pela segregação racial, o Hospital Johns Hopkins era uma das únicas instituições de saúde que realizavam o atendimento da população negra. Lacks buscou atendimento no hospital e logo foi diagnosticada com um câncer cervical, também chamado câncer do colo de útero.
Ela foi submetida a intervenção com medicamentos radioterápicos, no entanto, seu câncer foi bastante agressivo e não respondia a nenhuma das frentes de tratamento disponíveis e experimentados realizados para tentar destruir as células cancerígenas.
Gey tentava há algum tempo cultivar linhas celulares humanas para estudo, no entanto, sem sucesso.Fonte: Getty Images
Devido a essas características, os médicos coletaram uma amostra do tumor, sem que Lacks soubesse, e enviaram para o laboratório do pesquisador George Otto Gey, biólogo celular e pesquisador na área de virologia e oncologia do Johns Hopkins. Essa foi a descoberta da sua vida.
As células do tumor possuíam um comportamento único e cresciam e se multiplicavam sem problemas. As amostras retiradas foram capazes de se multiplicar e sobreviver de forma tão eficiente que Gey as considerou imortais.
Mas a imortalidade celular do tumor de Lacks não era recíproca nas demais células de seu organismo. Em outubro de 1951, Henrietta veio a óbito, sem nunca ter conhecimento de que havia deixado um legado sem precedentes para a ciência e a medicina.
Mas afinal, o que são e, por que é tão estimada a linhagem HeLa?
As células HeLa são linhagens celulares reproduzidas laboratorialmente a partir das amostras retiradas do tumor de Lacks em 1950. Elas não são de fato imortais, mas possuem uma surpreendente capacidade de se duplicar a cada 24h, dentro dos processos de cultivo celular.
Além disso, elas são resistentes o suficiente para sobreviverem a longos períodos e há anos não sofrem mutações extras, de forma natural. Sendo assim, são clones perfeitos da mutação original que gerou o câncer de Lacks, e por isso, são consideradas imortais.
Depois que Gey isolou e cultivou as células tumorais de Henrietta, elas cresceram e se multiplicaram a ponto de poderem ser vendidas, doadas e utilizadas de todos os modos possíveis, visto que o seu cultivo era simples e barato.
Por serem geneticamente idênticas à amostra inicial, são consideradas imortais.Fonte: Getty Images
Seu primeiro uso de destaque foi no desenvolvimento da vacina contra poliomielite, como explica a Professora Doutora Dulci Vagenas, bióloga, coordenadora auxiliar do curso de Ciências Biológicas e professora de medicina do Campus Alphaville da Universidade Paulista (UNIP), em entrevista para a TecMundo.
As células HeLa eram facilmente infectadas com o poliovírus e morriam. Assim, elas foram os alvos de teste perfeitos para o desenvolvimento de uma medicação que fosse capaz de impedir sua infecção e morte. Os primeiros testes foram realizados por Jonas Salk, em 1953, e logo no ano seguinte o produto estava pronto para testes em humanos.
Em um passado mais recente, ela contribuiu para o desenvolvimento das vacinas contra Covid-19, e ainda tem sido amplamente usadas no campo de pesquisa para desenvolvimento e testes dos mais diversos.
Em 1950 houve uma epidemia de poliomielite, deixando a vigilância em saúde preocupada com as sequelas deixadas na população infantil.Fonte: Getty Images
As células HeLa já foram enviadas para o espaço em missões tripuladas, irradiadas, infectadas com os mais diversos patógenos, e serviu como protagonista para o estudo e desenvolvimento de tratamentos e formas de prevenção contra o Vírus do Papiloma Humano (HPV), além disso, são amplamente estudadas para se conhecer como elas são capazes de se perpetuar. A tecnologia de Fertilização in vitro também é oriunda dos testes com HeLa.
Conforme explica Vagenas, a capacidade de manter-se jovem dessas células pode estar ligada a uma hiper telomerase, presentes em todas as HeLa, que fazem com que as multiplicações não percam qualidade e não envelheçam.
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Além disso, a configuração mutagênica da HeLa ocorreu de tal modo que ela não possui inibição de replicação, assim, as células não têm a capacidade de realizar apoptose, que é uma morte programada da célula, quando a replicação ocorre de maneira anômala, define a Professora Doutora. Todo esse conjunto de fatores faz com que essas células sejam muito valiosas para a ciência e o desenvolvimento de tecnologia.
Ainda que exista um movimento para o fim dos experimentos com HeLa, ao que parece, isso não ocorrerá em um futuro próximo.Fonte: Getty Images
Atualmente existem outras linhagens celulares que emulam o comportamento das células de Lacks, no entanto, elas vieram para compor o hall de possibilidades de experimentação e não para substituí-las em trabalho.
Aliás, a cessação de experimentação com as HeLa fazem parte de uma ampla discussão no campo bioético, visto que Henrietta foi uma "doadora involuntária" e nem ao menos sua família foi consultada ou soube sobre o cultivo celular.
Essa discussão abre portas para o desenvolvimento de políticas mais assertivas e menos permissivas em relação ao campo de experimentação nos Estados Unidos, impedindo que novas "doações involuntárias" ocorram e concedendo aos indivíduos o pleno exercício de direitos sobre seus corpos, material genético, dentre outros fatores relevantes ao que concerne a causa.
Mas até que esse momento chegue, Henrietta ainda tem um longo caminho de contribuição pela frente.
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