De acordo com autoridades chinesas da Comissão Nacional de Saúde, entre 8 de dezembro de 2022 e 12 de janeiro de 2023, ocorreram 59.938 óbitos por covid-19, maioria em pessoas idosas com comorbidades. O pico de óbitos superou os 4 mil/dia e o número de atendimentos às clínicas ambulatoriais chegou próximo de 3 milhões/dia.
Muitas dúvidas chegaram a mim a respeito desse cenário:
1. Quão grave está a situação na China?
2. Por que a China vive o pior momento da pandemia tanto tempo depois do resto do
mundo?
3. As vacinas utilizadas na China não funcionam?
4. A situação vai piorar?
Quão grave está a situação na China?
Respondendo à primeira pergunta: claro que é grave! Semelhante à realidade vivida em vários países, foram necessárias adaptações para ampliar a capacidade de atendimento. Em imagem que circula pela internet, é possível ver uma UTI montada em uma sala de conferências.
O pico de óbitos em números absolutos é equivalente ao registrado pelos países mais acometidos como a Índia com 4.500/dia e EUA com 4.400/dia. O pico brasileiro foi de 4.150 óbitos/dia. Todos ocorreram no primeiro semestre de 2021, o que nos leva à segunda pergunta. Mas, antes disso, vamos contextualizar melhor a gravidade atual da situação chinesa.
Hospital voltado para atendimento de pacientes com covid-19 na China (Getty Images)
Considerando que a população da China é de 1,4 bilhão de habitantes, o pico de óbitos/habitantes fica em torno de 2,85 por milhão de habitantes, bem abaixo do pico de 20/milhão de habitantes enfrentado pelo Reino Unido, República Tcheca e Romênia. A título de comparação, o pico de óbitos chegou a 15/milhão de habitantes no Brasil e 10/milhão de habitantes nos EUA. Mesmo assim não podemos menosprezar o atual momento da China, que é alarmante considerando o histórico do país durante a pandemia e pelo fato de ser o mais populoso do mundo.
Ainda que aparentemente a China não tenha atingido níveis tão altos de óbitos/habitantes, há de se considerar a fragilidade dos dados, que carecem de transparência. Os dados chineses têm sido criticados pela comunidade internacional por estratificar os óbitos de indivíduos com comorbidades. Além disso, os dados divulgados são provavelmente subestimados dada a grande probabilidade de não inclusão de óbitos domiciliares ou que ocorreram nas regiões rurais.
Por que a China vive o pior momento da pandemia tanto tempo depois do resto do mundo?
A explosão de casos, que culminaram nos internamentos e óbitos atuais na China, ocorreu devido a alguns fatores:
Relaxamento abrupto das medidas de restrição - A China adotou a política de "covid zero" desde o início da pandemia. Defendida por boa parte da comunidade científica mundial, já é consenso que não é a melhor estratégia a longo prazo. Outro consenso é o de desmame gradual nas situações em que se adota alguma estratégia de restrição à medida que se aumentava a imunidade coletiva gerada pela
vacinação e a própria circulação viral. China não fez isso. Manteve restrições severas durante praticamente três anos, intensificando-as em períodos de escape do vírus. Além de não ser a melhor forma de lidar com a pandemia sob o aspecto epidemiológico, se mostrou não ser também no aspecto social. A população deixou de apoiar o governo a partir de certo ponto devido aos malefícios psicológicos e sociais dessa política a longo prazo, inclusive gerando revoltas populares.
Com isso, a China simplesmente virou a chave, aumentando rapidamente a taxa de reprodução efetiva de uma cepa ainda mais transmissível que as originais.
Baixa adesão vacinal de idosos - As primeiras vacinas na China não foram liberadas para os idosos, mas para adultos. Sob a justificativa de não haver dados suficientes para comprovar eficácia e segurança nesse subgrupo, esse fato gerou descrédito das vacinas justamente pela fatia da população mais vulnerável à covid. Apesar da progressão na proporção de idosos com esquema completo durante o ano de 2022, um terço ainda não tinha realizado a dose de reforço até novembro do ano passado. No caso da população acima de 80 anos, a situação é ainda mais preocupante. A proporção dos que ainda não haviam recebido o reforço vacinal estava em 60%.
Baixa imunidade coletiva - Já é sabido que a vacinação proporciona redução drástica na gravidade da doença ao se adquirir a infecção, mas baixa eficácia na contenção da circulação viral. Com o vírus circulando e causando infecções, há uma potencialização do efeito protetor imunológico. Uma imunidade coletiva robusta, no caso do SARS-CoV-2, até o momento, é construída através do combo entre vacinação e circulação viral.
A ideia original seria imunizar a maior parte da população com a vacina para, ao se expor ao vírus, ter menor chance de complicações e ainda adquirir mais imunidade. A maior parte dos países foram mais
agressivos nas medidas restritivas na era pré-vacinação e no início da vacinação, até que os grupos prioritários tivessem recebido o imunizante. Na medida que a população era vacinada, aumentava a tolerância à circulação viral. Claro que esse nível de tolerância era variado, de país para país, e de acordo com o tempo e a forma das mudanças de intervenções restritivas, mas a maioria adotou o
relaxamento gradual, com alguns retrocessos pontuais.
Profissional de saúde em posto de atendimento de pacientes com covid-19 na rua em cidade chinesa (Getty Images)
O plano da China era vacinar todos antes de proceder o relaxamento das medidas. É um bom plano, mas não foi bem executado. Primeiro, há bolsões de não vacinados entre os mais idosos. Entre os 80+, ¼ não recebeu sequer a primeira dose, ? não recebeu a segunda e mais da metade não recebeu reforço. Nesse contexto, com histórico de baixa circulação viral em seu território e bolsões de não vacinados entre os mais idosos, era altamente previsível que problemas iriam surgir. Em segundo lugar, com a liberação abrupta a curva de casos/internações e óbitos seria mais intensa, apesar de durar menos tempo. Esse ponto é passível de discussão, pois se há condições de atender a demanda adequadamente, que seja com mais agilidade. Mas creio não ser ideal adaptar uma UTI em uma sala de convenções. Além de a estrutura não ser a indicada, provavelmente não houve equipe com experiência suficiente para atendimento desses casos. Inclusive, na fase crítica da pandemia, vários países sofreram com esses fatores.
As vacinas utilizadas na China não funcionam?
Funcionam sim. Mas é importante contextualizar as diferenças em relação ao resto do mundo. As principais plataformas vacinais utilizadas foram baseadas em vírus inativado. Há outras plataformas aprovadas no país como as de proteínas e vetor viral, mas foram usadas em menor escala. Sabe-se que a eficácia das vacinas baseadas em RNAm é superior quando comparadas às vacinas de vírus inativados, inclusive para as variantes atualmente circulantes. Portanto, uma forma de incrementar a proteção populacional seria pela integração de outras plataformas vacinais, que agiriam de forma complementar ao esquema realizado até então. Algo semelhante ao realizado no Brasil, que apostou acertadamente nos esquemas heterólogos.
O que esperar do futuro?
A boa notícia é que o pior aparentemente já passou. Relatórios chineses demonstram que o pico de casos ocorreu no final de dezembro de 2022 e, em um mês, a demanda em clínicas específicas para Covid já foi reduzida em mais de 90%. O pico de óbitos ocorreu no início de janeiro deste ano, com redução de 79% em relação ao pico. Houve também redução de 72% nos casos graves. A estimativa, divulgada em 25 de janeiro deste ano, segundo os autores do relatório, é que 80% da população já foi infectada pelo SARS-CoV-2. Apesar do ceticismo necessário ao analisar esses dados, eles fazem sentido.
Um ponto que merece cautela é que essa exposição ao vírus não é homogênea e áreas rurais mais afastadas dos grandes centros, por exemplo, provavelmente não foram tão intensamente expostas. Devemos lembrar também que, devido às festividades do ano novo chinês – iniciadas em 21 de janeiro –, há um incremento das viagens domésticas no período, com familiares se reunindo em suas cidades de origem. Isso já gera certa preocupação sobre um possível repique após essa onda inicial desde a abertura total da China.
Conhecer as variáveis que influenciam a transmissão do SARS-CoV-2 é fundamental para entender o que se passa atualmente na China e no resto do mundo.
De modo geral, o nível de susceptibilidade da população é de longe o que influencia a dinâmica epidemiológica atual. Os fatores que a influenciam, por sua vez, são a resposta imunológica após vacinação, a infecção, ou ambas, e as variantes que surgem de tempos em tempos. Essas variáveis justificam as novas ondas de casos e a redução na gravidade, que felizmente ocorreu ao longo dos anos.
A tendência a longo prazo, talvez em anos, é que haja uma confluência imunológica global na medida em que as interações sociais e viagens estejam uniformemente normalizadas. Será quando poderemos afirmar categoricamente que passamos de pandemia para endemia.
E endemia é algo bom? Não necessariamente.