*Este texto foi escrito por um colunista do TecMundo; saiba mais no final.
De tempos em tempos, aspectos fundamentais da natureza precisam ser reafirmados: a Terra não é um disco plano, porém, tampouco é uma esfera. Em termos mais rigorosos, a representação geométrica que melhor aproxima o formato do nosso planeta é um esferoide oblato, isto é, uma superfície cujo eixo polar é menor que o diâmetro do círculo do equador. Trocando em miúdos: a Terra é uma “quase” esfera achatada em seus polos.
Um dos primeiros registros conhecidos da determinação do formato da Terra por meio de uma demonstração empírica foi feito no século III a.C. por Eratóstenes de Cirene, polímata grego, que calculou o raio da Terra. Eratóstenes fez isso por meio de relações geométricas simples obtidas com as sombras projetadas por estacas em duas cidades, Siena (atual Assuão) e Alexandria, em um mesmo dia e horário no ano. Como a distância entre essas duas cidades era conhecida e foi possível determinar os ângulos formados pelas sombras, Eratóstenes pôde determinar o tamanho da Terra.
Esquema geométrico da determinação do Raio da Terra feito por Eratóstenes.Fonte: Faculdade de Ciências da Universidade do Porto.
Com o passar do tempo, não apenas o formato do nosso planeta, mas também a forma aproximada das outras estruturas em que estamos inseridos (como o Sistema Solar e Via Láctea) foi sendo aprimorada e atualizada de acordo com os avanços científicos e tecnológicos. Contudo, dentre os muitos mistérios que intrigaram astrônomos e cosmólogos nos últimos 100 anos, há um em particular que é enganosamente simples, mas, contudo, atua no ápice da nossa ignorância cósmica: qual é a forma do Universo?
Se tivéssemos vivido em qualquer época anterior ao século XX, essa pergunta sequer faria sentido: provavelmente nunca teria nos ocorrido que o Universo poderia ter uma forma, uma vez que, como todo mundo, teríamos aprendido geometria euclidiana simples na escola e imaginaríamos o Cosmos como uma simples expansão do espaço tridimensional. Felizmente, a humanidade percorreu um longo caminho na compreensão da natureza física e da matemática desde então e, sabendo hoje que o espaço pode ser curvado pela presença de matéria e energia, essa pergunta não apenas faz sentido como é de fundamental importância para a cosmologia moderna.
A melhor resposta que há para ela hoje é: até onde sabemos, o Universo é tridimensionalmente plano. Nossa intuição que tende a pensar o Cosmos com um formato de uma esfera de dimensão superior está de acordo com o modelo teórico favorito dos físicos e astrônomos do século passado: o Universo partiu de um ponto, expandiu para fora em todas as direções de forma equivalente e, eventualmente, atingirá um tamanho máximo.
As linhas de longitude se encontram nos polos.Fonte: Domínio Público
Entretanto, como a ciência é feita também de experimentos e observações, um Universo “plano” é a resposta que obtemos. Para entender bem isso, é necessário relembrar dos conceitos simples de geometria euclidiana que aprendemos nas aulas de matemática na escola: duas linhas paralelas nunca se encontram e a soma dos ângulos internos de um triângulo é sempre 180 graus. Embora tudo o que podemos desenhar em um papel sempre obedecerá a essas regras, esses postulados não são válidos para todas as situações. Por exemplo, as linhas de longitudes terrestres são paralelas na altura da linha do Equador, mas se intersectam nos polos norte e Sul da Terra.
Isso ocorre porque há, na realidade, três tipos de superfícies espaciais fundamentalmente diferentes: superfícies de curvatura positiva, como uma esfera; superfícies de curvatura negativa, como a sela de um cavalo; e superfícies de curvatura zero, como uma folha plana de papel. Se queremos saber então qual é a curvatura do Universo, tudo o que precisamos fazer é “desenhar” um triângulo nele e somar os valores dos seus três ângulos internos. Se o resultado for 180 graus, adivinha?
Na prática, a geometria cósmica é estimada a partir das propriedades dos constituintes do Universo: a radiação eletromagnética, a matéria ordinária (bariônica), a matéria escura e a energia escura. Se a soma de todas as densidades dessas componentes corresponder a um número preciso, chamado de densidade crítica, o universo resulta plano. Se este valor for menor ou maior que a densidade crítica, o universo terá geometria aberta ou fechada, respectivamente.
Geometrias possíveis para o Universo de acordo com os valores da densidade crítica.Fonte: WMAP/NASA
Nos últimos anos e por meio de testes diferentes, as observações dos componentes do universo indicam que ele está realmente muito próximo da densidade crítica, sendo, portanto, muito provavelmente plano. Como não sabemos exatamente o que é a matéria escura e a energia escura, essas medidas estão sendo constantemente recalculadas e é possível que no futuro próximo o nosso entendimento da geometria cósmica tenha mudado.
Seja como for, seguindo o nosso progresso científico, continuaremos buscando mais informações sobre o Cosmos e os aspectos elementares que o tornam único.
Nícolas Oliveira, colunista do TecMundo, é licenciado em Física e mestre em Astrofísica. É professor e atualmente faz doutorado no Observatório Nacional, trabalhando com aglomerados de galáxias. Tem experiência com Ensino de Física e Astronomia e com pesquisa em Astrofísica Extragaláctica e Cosmologia. Atua como divulgador e comunicador científico, buscando a popularização e a democratização da ciência. Nícolas está presente nas redes sociais como @nicooliveira_.
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