O ano é 2017. Em São Paulo, próximo à estação Pinheiros, o especialista em segurança da informação, Raul Candido, entra por um corredor de paredes grafitadas e anúncios em neon. Embaixo dos braços ele leva uma caixa com um raio-X estampado. Ele está no Garoa Hacker Space, e vai ter o seu primeiro chip implantado.
Raul faz parte de uma comunidade crescente de brasileiros que estão fazendo experimentos com o próprio corpo. O biohacking é um movimento que mistura a biologia com a cultura hacker de experimentação e busca de novas funcionalidades.
O biohacking nasce do encontro da filosofia hacker com a biologia (Fonte: Pexels/Mati Mango)Fonte: Pexels
No Garoa, Raul Candido entra por uma sala com um arcade e atravessa uma cozinha. Existem adesivos por todos os lados. Na porta da geladeira, um aviso: "Se for colocar suas experiências aqui dentro, etiquete bem para que ninguém confunda com um lanche."
Ali dentro algumas impressoras 3D e bancadas com várias ferramentas dividem espaço com uma roda de biohackers, entre eles Clarissa Hack, antropóloga, Rita Wu, jornalista e artista visual, Eduardo Padilha, especialista em biologia sintética.
Mas Raul anda na direção de Gutemberg Nunes, profissional de segurança da informação e bodypiercing. O procedimento é rápido e tudo o que eles precisam vem dentro do próprio kit, que é importado do exterior: material para esterilização do ambiente, uma seringa e um chip protegido por uma cápsula de vidro biocompatível.
A busca de novas funções para o corpo humano
Adesivos por todos os lados: o Garoa Hacker Clube é o espaço de experimentação hacker do país (Fonte: Wikimedia Commons/Felipe Sanches)Fonte: Wikimedia Commons
Um implante, tecnicamente, é qualquer peça estranha introduzida no corpo humano. Eles podem ser usados para repor, modificar ou adicionar uma função ao organismo, muitas vezes com fins estéticos ou médicos.
Mas biohackers estão mesmo interessados em encontrar usos mais criativos, como chave criptográfica, para ativar luzes ou disparar ligações de emergência, arquivar dados de saúde, o número da carteira de bitcoins, contato do Tinder ou até mesmo fazer o pagamento do bilhete de transporte da STW, empresa de trem da Suécia, que já se adaptou à tendência.
Raul usa um implante com radiofrequência e protocolo de comunicação por proximidade, da empresa Dangerous Things. Da primeira vez ele usou o dispositivo para guardar um poema. Em outra, colocou um trecho do livro Os Dias da Peste, escrito pelo amigo Fábio Fernandes.
Implantados entre o polegar e o indicador, os biochips de radiofrequência estão entre os mais populares (Fonte: Wikimedia Commons/WCusr2019)Fonte: Wikimedia Commons
Ele conta que a primeira vez que ouviu falar em implantes foi durante a BSides, um evento hacker que acontece em São Paulo. Logo se interessou pelo assunto e, poucos meses depois, foi ao Garoa Hacker Space para receber o implante.
Desde então, vem acompanhando a cena do biohacking crescer no país. "O biohacking vai muito além do que é tomar um medicamento ou injetar um determinado implante, mas compreender como é a nossa relação com a tecnologia e com os nossos corpos", explica.
O movimento biohacker tupiniquim
Juliano Sanches é pesquisador da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e estuda a comunidade biohacker brasileira. Segundo ele, o movimento é composto por pessoas interessadas em alterar o desempenho do corpo humano, guiado por princípio éticos como o open-source e o free software aplicados aos princípios das ciências biológicas.
O grupo é associado a outros termos, como o Medicina de Garagem ou Biologia DIY (Do-It-Yourself), e começou a se popularizar nos Estados Unidos em 2005. Hoje é uma iniciativa mundial que engaja cientistas e leigos.
No Brasil, os biohackers são antropólogos, biólogos, físicos, cientistas da computação e, em muitos casos, pacientes de doenças crônicas buscando soluções que a medicina estabelecida não foi capaz de oferecer.
A comunidade biohacker brasileira combina pesquisadores universitários e pacientes buscando novas soluções (Fonte: Unplash/Scott Graham)Fonte: Unplash
Raul Candido é um entre esses brasileiros que começaram a olhar para o próprio corpo e fazer perguntas inusitadas. O movimento biohacker está se espalhando aos poucos no país, e, segundo Raul, tem crescido de forma orgânica nos últimos anos.
Um dos fatores que levam a essa popularização é a internet. Hoje não é preciso mais ir ao Garoa, em São Paulo, para encontrar uma roda de conversa sobre o assunto.
Grupos no Telegram, blogs, como o Hacker Culture, ou eventos, como o BSides e o H2HC reúnem informação para quem quer aprender mais sobre o assunto. E quem sabe, tentar hackear o próprio organismo.