Recentemente, foi noticiado mais um caso de cura da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (Aids). É o quarto caso já documentado após transplante de células-tronco hematopoiéticas (TCTH), também conhecido como transplante de medula óssea.
Mas antes de comemorar, é necessário entender que esses casos são “pontos fora da curva”, por não serem aplicáveis dentro de uma rotina padrão para todas as pessoas vivendo com vírus da imunodeficiência humana (PVHIV). Esses quatro casos não receberam transplante devido ao HIV, mas por outras condições clínicas, como leucemia.
Nesses casos, apesar das complicações relacionadas ao procedimento, há aumento considerável de sobrevida devido à gravidade da doença hematológica de base. Porém, aproveitando o fato de que o procedimento foi indicado por outros motivos, foram buscados doadores que pudessem viabilizar a cura da Aids ao paciente receptor.
Como a cura pode ser atingida após um transplante?
Após um TCTH, todas as células sanguíneas que são geradas pela medula óssea passam a apresentar as características das células progenitoras que foram doadas. Sabe-se que em torno 1% da população nórdica tem uma mutação específica que os tornam resistentes à infecção pelo HIV.
Essa prevalência é menor em outras regiões do mundo, ou seja, é uma condição rara. É uma relação do gene Delta 32 que altera o receptor celular CCR5 que o vírus utiliza para entrar na célula, então é como se o vírus não tivesse a chave para entrar.
Então por que não buscar para uma PVHIV que vai ser submetido ao TCTH um doador que tenha essa mutação? Talvez o receptor passe a apresentar esse padrão de resistência ao vírus que dificulta a progressão dele. Isso foi tentado pela 1ª vez em 2009, no caso conhecido como “o paciente de Berlim”.
E, de forma surpreendente, esse paciente não apresentou mais indícios do vírus após a suspensão do tratamento antirretroviral e foi considerado curado da Aids. Esse mesmo procedimento foi realizado mais 3 vezes, a última na Califórnia em um hospital chamado “Cidade da Esperança”.
Os avanços no tratamento de Aids
Os 40 e poucos anos de história do HIV, desde o 1º caso descrito em 1981, foram de avanços impressionantes na Medicina. A partir de 1996, os esquemas terapêuticos, antigamente chamados de “coquetéis”, devido à grande quantidade de comprimidos, permitiram o controle do vírus, evitando-se a evolução da Aids.
De lá para cá, novas opções terapêuticas com menor número de comprimidos e menos efeitos colaterais passaram a estar disponíveis, a ponto de haver atualmente opções de tratamento com um comprimido ao dia.
Os avanços terapêuticos são tão significativos que a expectativa de vida de um indivíduo que tem HIV e inicia terapia aos 21 anos em fase precoce, quando a imunidade não está ainda comprometida, é de 78,4 anos versus 85,2 anos de um indivíduo sem HIV. Essa diferença, que nos anos 2000 era acima de 20 anos, está cada vez menor.
O grande desafio atual é justamente a detecção precoce do vírus para viabilizar o máximo potencial do tratamento na prevenção da evolução da doença e redução das transmissões.
Mas infelizmente o tratamento atual ainda não é suficiente para a cura. Apesar de inibir a replicação viral no sangue, as medicações não são capazes de atingir os chamados “reservatórios do HIV”, regiões do corpo onde os vírus ficam protegidos.
Mesmo muitos anos após uma terapia supressiva, caso seja suspensa, os vírus que ficam nesses reservatórios voltam a se replicar e atacar as células de defesa do organismo.
Veja também: Aids: a nova variante mais agressiva do HIV
Por quê não se faz transplante para todos os casos de HIV?
O TCTH não é um procedimento simples. Antes do transplante, é feito um tratamento chamado de mieloablativo, com medicações que simplesmente matam as células progenitoras da medula óssea. Isso é necessário para que as células progenitoras do doador se adaptem à nova medula.
Obviamente, esse é um percurso perigoso, já que, por um período, o receptor praticamente não apresenta leucócitos, as células que defendem nosso corpo de micro-organismos invasores. Após o transplante, há o risco de as células do doador não se adaptarem à medula do receptor.
Mesmo que a medula “pegue”, também pode haver problemas como a Doença do Enxerto Contra o Hospedeiro (DECH), condição em que as novas células não reconhecem algumas partes do organismo. Todas essas complicações explicam a alta taxa de mortalidade, em torno de 15%, de um procedimento desses.
Tendo em vista as altas taxas de complicações do TCTH, fica claro que mesmo com alguma chance de cura, não é plausível atrelar todo esse risco a um caso que poderia ser mantido controlado por meio de medicações de fácil administração e poucos efeitos colaterais.
É por isso que as curas por essa metodologia não devem ser encaradas como a solução para todos os problemas, mas sim um avanço em relação a novas modalidades terapêuticas que podem eventualmente ser aplicadas em escala no futuro.
Por não ser um procedimento simples e implicar vários riscos ao paciente, o transplante não deve ser visto como a primeira opção na busca da cura da Aids.Fonte: Gettyimages
Quais são os potenciais tratamentos para a cura?
Transplante de células-tronco hematopoiéticas
Já vimos que o TCTH é um esquema capaz de curar a infecção pelo HIV, mas impraticável na maioria dos casos devido ao risco não favorecer essa modalidade.
Shock and kill
Essa é uma opção que foca os reservatórios do vírus. Medicações são usadas para mobilizar esses vírus “escondidos” na corrente sanguínea, deixando-os expostos às medicações antirretrovirais.
Block and lock
Também atua nos reservatórios do vírus, mas, em vez de induzir a mobilização dos reservatórios para a corrente sanguínea, faz que o vírus fique “trancado”, ou seja, mesmo com a suspensão do tratamento pelo paciente, os vírus nos reservatórios deixam de se expressar e não se disseminam.
Terapia genética
Com novas modalidades de intervenções genéticas como o zinc finger nuclease (ZFN), transcription activator-like nucleases (TALENS) e clustered regularly interspaced short palindromic repeats-associated protein 9 (CRISPR/Cas9), é possível atuar nos receptores CCR5, alterando-os a ponto de evitar a entrada do vírus.
Intensificação da terapia antirretroviral
Há relatos de crianças que nasceram com o HIV e, após a suspensão da terapia depois de alguns anos, mantiveram-se em remissão. Não está claro se são casos de cura ou “cura funcional”, quando ainda há vírus, mas sem repercussões clínicas.
Terapias imunológicas (vacinas)
As vacinas são usadas primariamente para potencializar a resposta imune a determinado agente infeccioso. Porém, o HIV tem algumas características que dificultam a produção de vacinas, mas há frentes que têm avançado nesse aspecto. Há a perspectiva de que as vacinas contra o HIV não necessariamente consigam curar, mas sejam usadas de forma complementar às demais modalidades terapêuticas para se atingir a cura funcional ou completa.
Independentemente da modalidade de cura, provavelmente não haverá em curto prazo um esquema que seja aplicável para todo o mundo. Algum tempo será necessário para se avaliar custo, risco, benefício e necessidade de estrutura para aplicação em larga escala.
As vacinas contra o HIV podem ser usadas de forma complementar às demais modalidades terapêuticas.Fonte: Gettyimages
Se a doença tem controle, por que a cura é tão esperada?
Qual foi o último estudo sobre a cura da hipertensão? E da doença pulmonar obstrutiva crônica? Diabetes tem cura? Claro que há linhas de pesquisa para a cura dessas e outras doenças crônicas existentes, mas sem grandes repercussões quando avanços são alcançados.
Isso acontece porque há doenças crônicas que são mais aceitas socialmente, outras menos. A Aids ainda carrega um grande estigma que gera discriminação, e poucas PVHIV se sentem totalmente à vontade para manifestar essa condição publicamente. Essa questão está vinculada à via de transmissão sexual do vírus e ao fato de ter risco maior de transmissão durante relações sexuais anais.
Homens que fazem sexo com homens estão em situação mais vulnerável. Isso não deveria ser uma barreira em relação ao reconhecimento e ao enfrentamento do problema, mas é em uma sociedade que não tolera a diversidade em relação à orientação e à prática sexual.
De acordo com a Human Dignity Trust, instituição que defende os direitos legais de pessoas LGBTQIAPN+ globalmente, 70 países criminalizam a atividade sexual privada e consensual de 2 pessoas do mesmo sexo, mesmo que de forma privada.
Além disso, em 11 países, a punição pode ser a morte. Como tratar de informação sobre prevenção e tratamento de infecções sexualmente transmissíveis em países onde se vive nessas condições jurídicas?
Daí, entende-se o porquê da euforia para a cura. Claro que seria algo incrível e fascinante do ponto de vista científico e coletivo, mas não deixa de ser uma espécie de "muleta" para outros problemas estruturais que merecem atenção.
Fontes