Os autotestes podem revolucionar a saúde

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Passados 2 anos da pandemia, a ANVISA finalmente liberou o uso de autotestes para Covid-19, que amplia a capacidade de detecção de casos potencialmente transmissores e reduz significativamente as subnotificações.

Por que demorou tanto?

Inicialmente, houve um entendimento falho sobre o papel dos testes de PCR e de Antígeno. Tidos como “padrão-ouro”, a aposta foi feita nos testes de PCR. E aí está o primeiro erro. O PCR está longe de ser um teste padrão-ouro. Para ter esse selo, ele deveria ter 100% de sensibilidade e 100% de especificidade. Isso não ocorre. Uma metanálise que avaliou a sensibilidade do método concluiu que até 54% dos resultados podem ser falsos negativos, apesar da alta heterogeneidade dos estudos (1).

Porém mesmo com essas limitações, o PCR ainda é o que possui maior sensibilidade entre os diferentes métodos disponíveis para identificar um caso de Covid-19. Ou seja, é a opção de escolha do ponto de vista individual, pois é o que têm a maior probabilidade de detectar um caso.

Mas quando falamos em medicina populacional, há outros fatores em jogo que são tão ou mais importantes que a sensibilidade individual. Primeiro vamos esclarecer o que é uma sensibilidade individual versus populacional. 

Pensem em dois métodos diferentes. Um possui sensibilidade de 90% a um custo de 500 reais. Outro possui sensibilidade de 70% a um custo de 50 reais. Um gestor de uma cidade de 1 milhão de habitantes tem disponível 10 milhões de reais para investir em uma dessas opções de vigilância e diagnóstico. Há a expectativa que 5 a 10% da população irá contrair a infecção, ou seja, 50 a 100 mil casos. Qual delas terá maior capacidade de detectar casos? Qual é a sensibilidade populacional de cada uma delas?

Se for optado pela opção 1, são 20 mil testes disponíveis. É natural que esses testes sejam priorizados para casos graves ou pessoas com fator de risco. A probabilidade pré teste média será em torno de 20% (menor em situação de baixa prevalência, maior em situação de pico). Como a sensibilidade é de 90%, serão identificados 3600 casos. Isso representa 3,6 a 7,2% do total, que é o valor de sensibilidade populacional. Mesmo que a probabilidade pré-teste seja de 100%, a sensibilidade populacional seria de 9 a 18% (18 mil casos detectados), que é a máxima sensibilidade populacional dessa estratégia.

Autoteste Covid-19Fonte: Shutterstock

No segundo caso, há 200 mil testes disponíveis. Considerando que se amplie as indicações para casos leves ou até assintomáticos, a probabilidade pré-teste média será em torno de 5%. Desta forma, serão identificados 7 mil casos, 7 a 14% do total, quase o dobro da estratégia anterior. Se a probabilidade pré teste for de 100%, seriam detectados todos os casos. Portanto a sensibilidade populacional potencial é de 100%.

Vejam que a sensibilidade analítica é apenas uma variável da estratégia e a sensibilidade populacional depende disso, do acesso, que está relacionado por sua vez ao custo e facilidade de escala e à probabilidade pré-teste. Na medida em que se amplia o acesso, naturalmente há queda da probabilidade pré-teste, mas aumento na capacidade de identificação de casos totais.

Esses exemplos das taxas de positividade foram extraídos a partir de exemplos reais de países que optaram por diferentes estratégias (2). Os gráficos abaixo representam a dinâmica de testes, positividade, taxa de incidência acumulada de casos e de óbitos na Colômbia e Dinamarca. Não há descrição sobre o tipo de teste realizado, mas é possível verificar o efeito do poder de escala.

A Dinamarca realizou 17x mais testes por habitantes que a Colômbia (11000 x 650 testes por 1000 hab), com taxa de positividade de 5% versus 18% no país sulamericano. Foram identificados 490 casos/1000 hab na Dinamarca, contra 120 casos/1000 hab na Colômbia, ou seja, 4x mais. Porém, a Dinamarca contabiliza 840 óbitos/milhão hab, enquanto que a Colômbia soma 2700 óbitos/milhão hab.

Percebam que, para ampliar a capacidade de identificação de casos em 4x, foi necessário ampliar 16x a quantidade de testes. A relação entre óbitos e casos identificados demonstra claramente que a proporção de subdiagnósticos foi muito maior na Colômbia, comparado à Dinamarca.

Esse exemplo demonstra o poder da escala dos testes. Os testes de Antígeno são muito mais facilmente escaláveis por definição. São testes que independem de grande estrutura laboratorial e muito mais baratos que os testes moleculares. Mesmo com redução de sensibilidade para identificar um caso, o poder da escala contrabalanceia com folga essa limitação (4).

Voltando à questão inicial levantada, no início da pandemia não havia o devido entendimento dessas características e limitações de cada metodologia e impacto que elas trariam para a estratégia de testagem. Isso levou a uma supervalorização da sensibilidade analítica individual e subvalorização do poder da escala, induzindo a uma falsa impressão de que todos os esforços deveriam ser tomados no sentido de se estimular os testes de PCR. Com o tempo, gradativamente essas percepções foram se adaptando à realidade e cada vez mais investimentos foram mobilizados aos testes de Antígeno.

Outro ponto altamente relevante que cabe discutir é sobre qual sensibilidade analítica estamos tratando. Quando se fala em redução da sensibilidade analítica do Antígeno comparado ao PCR, isso é baseado na capacidade de detectar casos. Isso faz todo sentido. Mas quando se fala em benefício populacional não é esse o ponto mais importante. O objetivo principal é detectar indivíduos transmissores, pois é nesse grupo que há potencial de reduzir transmissões. Nesse aspecto, a diferença de sensibilidade analítica entre o PCR e Antígeno é ainda menor. Um estudo demonstrou correlação maior do Antígeno com a cultura viral, comparado ao PCR (3). A cultura viral é o verdadeiro padrão-ouro na identificação de casos viáveis.

Finalmente chegamos aos auto-testes. Além dos benefícios já mencionados, os testes de Antígeno podem chegar ao ponto de ser feito pelo próprio indivíduo, sem a necessidade de um profissional de saúde diretamente envolvido no processo. Isso aumenta ainda mais o acesso e capacidade de escala. Eleva ao máximo o potencial de sensibilidade populacional.

Alguns podem questionar se a técnica de coleta realizada pelo próprio paciente pode impactar na sensibilidade analítica. A resposta é sim, ela cai. Mas já se sabe que a ampliação da escala supera de longe essa queda. Esses conceitos já são conhecidos desde 2020/2021 e incorporados pelos países que são abertos à inovação, como a Alemanha, França e outros países europeus. O Reino Unido foi pioneiro em enviar testes a domicílio, subsidiado pelo governo. Na sequência, os EUA incorporaram a mesma estratégia. E o Brasil, antes tarde do que nunca, deu o primeiro passo nesse sentido. Falta ainda uma ação mais incisiva por parte governamental.

Se a estratégia visa ampliar a sensibilidade populacional, que aumentará a capacidade de se detectar casos transmissores que por sua vez irão se isolar e transmitir menos o vírus, diminuindo a transmissibilidade viral e óbitos totais, seria lógico que esses testes fossem estimulados até o ponto de serem subsidiados pelo poder público. Esse subsídio foi muito aquém da necessidade real de escala.

Agora, esse conceito não se aplica somente ao Covid-19, mas a toda doença altamente prevalente e subdiagnosticada. Vamos a alguns exemplos:

  1. Diabetes - prevalência global de 9,3%, com viés de alta. 50% desses indivíduos não sabem do diagnóstico;

  2. Dislipidemia - Prevalência global 54% na Europa. Importante fator de risco cardiovascular. Somente 23-30% dos casos sob tratamento. Entre os tratados, o controle é alcançado em 19-52% dos casos;

  3. Hepatite B - Prevalência global de 3,7%. 90% não possuem diagnóstico;

  4. Hepatite C - Prevalência global de 0,7%. Importante causa de cirrose hepática. 80% não possuem diagnóstico;

O modelo atual do sistema de saúde global no que se refere a exames laboratoriais, de uma forma geral, simplesmente não são suficientes. É um gargalo estratégico, pois se refere à base de todo o processo, que é o diagnóstico. Sem diagnóstico, não há tratamento. Sem tratamento, ocorrem as complicações, hospitalizações, óbitos, com os custos econômicos e sociais atrelados a isso.

Os autotestes aplicados a essas e outras doenças relevantes podem ser um game changer e diminuir significativamente a proporção inaceitável de subdiagnósticos. Mas, para que realmente faça a diferença, deve estar disponível para todos, e não para uma parte da população.

Outro conceito crítico é o aspecto regulatório. Está claro que as variáveis que definem uma estratégia de saúde pública são diferentes daquelas estabelecidas para o cuidado individual. Hoje não há essa discriminação e em muitas situações são avaliadas pela mesma régua, o que é inadequado. Isso explica em parte o porquê da demora na incorporação dos testes de Antígeno e dos auto-testes no Brasil. Espera-se que o Covid-19 deixe um legado positivo nesse aspecto e que possamos aproveitar o máximo potencial que os auto-testes podem nos oferecer.

  • Referências:
  1. Islam KU, Iqbal J. An Update on Molecular Diagnostics for COVID-19. Front Cell Infect Microbiol. 2020 Nov 10;10:560616. doi: 10.3389/fcimb.2020.560616. PMID: 33244462; PMCID: PMC7683783;

  2. Our World in Data;

  3. Pekosz A, Parvu V, Li M, et al. Antigen-Based Testing but Not Real-Time Polymerase Chain Reaction Correlates With Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2 Viral Culture. Clin Infect Dis. 2021;73(9):e2861-e2866. doi:10.1093/cid/ciaa1706;

  4. Larremore DB, Wilder B, Lester E, et al. Test sensitivity is secondary to frequency and turnaround time for COVID-19 screening. Sci Adv. 2021;7(1):eabd5393. Published 2021 Jan 1. doi:10.1126/sciadv.abd5393.

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Bernardo Almeida é médico infectologista e Chief Medical Officer da Hilab, healthtech que desenvolveu o Hilab, primeiro laboratório descentralizado usando testes laboratoriais remotos. É médico especialista em infectologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), com residência médica em clínica médica e medicina interna no Hospital de Clínicas — UFPR e em infectologia no Hospital de Clínicas — UFPR, mestrando da UFPR em medicina interna, área de doenças Infecciosas — Epidemiologia das síndromes respiratórias agudas graves em adultos. Tem experiência na área de medicina, com ênfase em clínica médica e doenças infecciosas e parasitárias e participa de grupo de pesquisa na área de vírus respiratórios.

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