Quando acaba a pandemia — parte 2

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Em agosto de 2021, ousei estimar que o fim da pandemia seria no primeiro semestre de 2022  neste artigo. E mantenho a projeção. Resolvi escrever a parte 2 para discutir a atual onda pela variante ômicron e o que poderá vir depois.

A ômicron, descrita pela primeira vez na África do Sul, tem dezenas de mutações, muitas em áreas para as quais se dirigem os anticorpos neutralizantes gerados pela vacinação ou infecção prévia. É por isso que essa variante apresenta alta capacidade de causar as chamadas “infecções de escape”, quando um indivíduo vacinado ou que teve exposição prévia ao vírus contrai a infecção. Isso já ocorria com a delta, mas passou a ser mais frequente com a ômicron.

Essa característica, somada à esperada queda da imunidade ao longo do tempo, explica a nova onda de casos no Brasil, assim como em grande parte do mundo. 

Mas essa nova onda tem um contexto muito particular. A quantidade de casos é muito maior que as ondas que a precederam, mas os internamentos e óbitos não sobem na mesma proporção. Isso ocorre por dois motivos: há fortes indícios de que essa variante é menos virulenta. Há alterações nas vias de entrada celular que fazem com que aparentemente esse vírus tenha mais dificuldade de entrar nas células das vias aéreas inferiores, nos pulmões. O segundo motivo é a própria imunidade. A eficácia para prevenir hospitalizações e óbitos é mais resiliente do que para prevenir casos, mantendo-se mais elevada e caindo em um ritmo mais lento. 

Passados 6 meses, a eficácia vacinal (2 doses) para prevenir uma infecção, hospitalização e óbito pela delta é de 40-60%; 70-85% e 80-99%, respectivamente. Já com a ômicron, essas eficácias caem para 0-10%; 30-35% e 40-70%. Felizmente essa queda na eficácia com a ômicron pode ser resgatada com a dose de reforço (figura abaixo). Estes são dados populacionais do sistema de saúde do Reino Unido — COVID-19 vaccine surveillance report — week 4 (publishing.service.gov.uk).

É possível perceber como os valores de eficácia são mais altos e a velocidade da queda é menor à medida que evolui o desfecho de infecção sintomática para hospitalização e óbito. Isso explica o motivo da explosão de casos, sem aumento proporcional de hospitalização e óbitos, pois a chance de hospitalização e óbito, dado que a infecção ocorre, passou a ser menor.

Não podemos cair na armadilha de que a ômicron é a versão “leve” do vírus. Os Estados Unidos, por exemplo, superou o número de internamentos das ondas anteriores e se aproxima do recorde de óbitos. Mas como pode isso, já que acabei de mencionar que a chance de hospitalização e óbito é menor. Tive o cuidado de frisar anteriormente o trecho “dado que a infecção ocorre”. Pois o risco populacional, calculado pela incidência do evento dividido pela população é dependente do número de casos também. Para exemplificar isso, consideramos que, após a infecção, a chance de óbito com a ômicron é a metade comparada à delta.

Se ocorrerem quatro vezes mais casos de infecção pela ômicron, haverá no final duas vezes mais mortes no total. De acordo com o Institute of Health Metrics and Economics (IHME), o pico de casos previstos para a atual onda será de 20 vezes o pico da onda anterior. Claro que a maioria desses casos não são detectados pelos sistemas de vigilância, especialmente no Brasil.

Os dados de vigilância do Reino Unido apontam que no pico de prevalência do vírus, havia pouco mais de 6% da população com a infecção. Se extrapolarmos essa prevalência para o Brasil, seriam 12 milhões de casos ativos no pico. Considerando que esses casos contraíram a infecção de forma distribuída alguns dias antes, é razoável considerar que em apenas 1 dia seriam mais de 2 milhões de novos casos. O dia com maior incidência de casos notificados no Brasil não passa de 200 mil.

Considerando que cada país e estado apresenta diferentes proporções de população vacinada com duas e três doses, sofreram diferentes impactos quanto às ondas anteriores e têm diferente proporção da população idosa, é de se esperar que cada local será impactado diferentemente pela onda causada pela ômicron. A boa notícia é que o pico está muito próximo, se já não ocorreu. A taxa de positividade de casos já está em queda. No Rio de Janeiro e Amazonas já há queda na incidência de hospitalizações. Todo o plano de contingenciamento do sistema de saúde e mesmo o estado psicológico individual muda quando o cenário é de queda. Nos próximos dias essa expectativa deve se confirmar. 

Mas o que esperar após esta onda? Haverá outra variante ou passaremos para a fase endêmica?

Em primeiro lugar, já há uma nova variante assombrando a Europa. Uma evolução da ômicron original, chamada BA.2, já é a principal variante na Dinamarca e Índia, com rápido aumento na África do Sul e Suécia. Já foi identificada no Reino Unido e nos Estados Unidos. No gráfico abaixo, o BA.2 é representado pela coloração roxa clara. 

Mas isso não significa que a nova variante terá repercussões. Na realidade, isso ainda é incerto. Alguma vantagem competitiva ela certamente tem. Enquanto há indícios de que não há escape significativo da imunidade, há aumento considerável na transmissibilidade. Se essas características serão suficientes para gerar ondas em locais previamente afetadas pela primeira versão da ômicron, ainda é cedo para afirmar. Mas mesmo que essa variante não altere significativamente o panorama, haverá certamente o surgimento de novas variantes.

Como temos pouco tempo de vivência com o Sars-CoV-2 — sim, do ponto de vista evolutivo, 2 anos é pouco — não estão claramente estabelecidas as regras de evolução dessa espécie, o que dificulta enormemente a produção de novas vacinas mais específicas para as novas variantes e a predição do futuro.

A propósito, é justamente a previsibilidade que marcará a transição para a fase endêmica. É consenso que o Sars-CoV-2 vai continuar entre nós. Quando isso ocorrerá? O conceito de endemicidade é relativamente amplo e inclui ter um comportamento previsível ao longo do tempo. Isso ocorre, por exemplo, com o vírus influenza, que têm caracteristicamente um padrão sazonal, com evolução previsível das mutações, sem alterações significativas na virulência e comportamento da imunidade conhecida.

Coronavírus

Sabe-se qual é a parcela aproximada da população que contrai influenza a cada ano, bem como o número de óbitos. Outra característica de uma doença endêmica é que não se faz necessária grandes adaptações individuais ou sociais para conviver com o patógeno. Ninguém muda seus planos de viagem ou nenhum local suspende as atividades escolares porque iniciará a sazonalidade do influenza. Mas isso também não significa que a versão endêmica do influenza seja boa, assim como outras doenças ou condições endêmicas. O influenza mata 650 mil pessoas ao ano globalmente. O vírus da imunodeficiência humana (HIV) matou 770 mil pessoas só no ano de 2019. 

A malária ceifou a vida de 409 mil pessoas no mesmo ano. Os acidentes de trânsito causam a morte de 1,35 milhão de indivíduos anualmente, em crescimento. Oito milhões morrem em decorrência do tabagismo e mais de 4 milhões por diabetes. Definitivamente, essas doenças e condições endêmicas não são boas, apenas nos acostumamos a viver com elas.

Bem, essa transição de pandemia para endemia no caso do Sars-CoV-2 não ocorrerá de um dia para o outro. Será um processo. Após a pandemia da gripe espanhola, em 1918, as ondas nos anos subsequentes foram perdendo intensidade durante 2 décadas até se estabilizar. Claro que, na prática, o estado de pandemia já havia acabado, mas o impacto ainda se manteve por longos anos.

Outra grande dúvida que paira é sobre o que será a endemia pelo Sars-CoV-2? O ciclo epidêmico do influenza é marcado por afetar cerca de 10% da população em um período de 16 semanas. Estima-se que a atual onda da ômicron afetará 40-50% da população dos países que a receberam, em um período de 6 a 8 semanas. Este será o comportamento das esperadas ondas no futuro? Ocorrerá uma vez ao ano? Ou duas, três?

A gravidade vai continuar diminuindo à medida que formos reexpostos ao vírus e a vacinas? E a imunidade passará a ser mais resiliente? Assim como essas respostas devem vir da própria natureza — e espero que sejam boas respostas — novas vacinas poderão ser mais eficientes para bloquear a transmissão e manter a imunidade por mais tempo.

Apesar das grandes incertezas do futuro, arrisco manter a previsão de que será decretado o fim da pandemia até o final deste semestre, em 30 de junho de 2022. Sabemos agora que, na prática, será uma transição que poderá durar anos ou até décadas. A endemia chegará, mas o que me tira o sono é que “endemia” não é necessariamente uma coisa boa.

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Bernardo Almeida é médico infectologista e Chief Medical Officer da Hilab, healthtech que desenvolveu o Hilab, primeiro laboratório descentralizado usando testes laboratoriais remotos. É médico especialista em infectologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), com residência médica em clínica médica e medicina interna no Hospital de Clínicas — UFPR e em infectologia no Hospital de Clínicas — UFPR, mestrando da UFPR em medicina interna, área de doenças Infecciosas — Epidemiologia das síndromes respiratórias agudas graves em adultos. Tem experiência na área de medicina, com ênfase em clínica médica e doenças infecciosas e parasitárias e participa de grupo de pesquisa na área de vírus respiratórios.

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