A resposta "nua e crua" a essa pergunta é: não. Se o título deste artigo fosse "É o momento de flexibilizar o uso de máscaras?", a resposta seria: podemos discutir.
Primeiramente vamos entender qual é o impacto do uso de máscaras. Do ponto de vista teórico, visam minimizar o número de partículas virais exaladas por quem a está utilizando e diminuir a exposição que eventualmente estão no ambiente. Se essas condições se cumprirem efetivamente, as máscaras reduzem a probabilidade de infecção durante uma exposição.
A teoria faz todo sentido, pois já há alto nível de evidência em relação à proteção para outros vírus respiratórios, como o da influenza, em ambientes de alto risco como hospitais.
A questão que "pairou no ar" por um tempo foi: será que essa regra se aplica ao SARS-CoV-2 e à escala populacional? E qual é o impacto disso em relação às máscaras de tecido? Inicialmente estudos observacionais, em seguida, os de corte e, finalmente, estudos prospectivos, randomizados e populacionais atestaram o benefício dessa estratégia.
Estudos comprovam a eficácia das máscaras
O maior estudo realizado até o momento que praticamente encerrou o assunto ocorreu em Bangladesh, com mais de 340 mil indivíduos, em 600 comunidades diferentes. Em 300 comunidades, não foi realizado nenhum tipo de campanha ou estímulo além do habitual do ponto de vista de estratégia nacional ou local em relação ao uso de máscaras. Em 200, além de uma estratégia intensificada de estímulo, foram distribuídas máscaras cirúrgicas, enquanto a população das outras 100 comunidades receberam máscaras de tecido.
Entre os resultados obtidos, as comunidades que receberam as máscaras e os estímulos intensificados ao seu uso utilizaram-na efetivamente 3 vezes mais quando comparado às 300 comunidades controle (42% x 13%). Estas tiveram menos casos sintomáticos de covid-19, com queda de 11% dos casos nas comunidades que utilizou máscaras cirúrgicas e de 5% nas comunidades que utilizaram máscaras de tecido (nesse caso sem significância estatística). Há sim limitações, mas que não comprometem as conclusões gerais.
Desse modo, não se pode afastar a possibilidade de ampliação do efeito em um cenário de maior adesão ao uso de máscaras. Assim, considerando os bons resultados obtidos somados às grandes dificuldades para esse tipo de avaliação, muitos epidemiologistas consideram essa questão praticamente encerrada. Se por um lado é acalentador saber que acertamos ao rapidamente estimular o uso populacional de máscaras; por outro, é constrangedor não se ter estimulado mais o uso de máscaras cirúrgicas ou PFF2 como preferenciais sobre as máscaras de tecido, apesar de o uso destas promover uma proteção provavelmente um pouco superior à não utilização de nenhuma máscara.
Fonte: Shutterstock
De olho nas variáveis
Bem, sabendo do benefício gerado pelo estímulo ao uso de máscaras, por que se cogita a flexibilização ao uso delas? A discussão começa a ficar um pouco mais complexa daqui em diante. A transmissibilidade populacional do vírus depende de 4 variáveis principais:
1. duração do período de transmissibilidade;
2. oportunidade — número de interações entre indivíduos transmissores e susceptíveis;
3. probabilidade de transmissão, dado que ocorra interação entre um transmissor e susceptível;
4. susceptibilidade populacional — definida pela imunidade gerada pela infecção, vacinação ou híbrida (infecção + vacinação), assim como a queda de cada uma dessas ao longo do tempo.
O uso de máscaras atua positivamente na variável 3. A transmissibilidade efetiva, conhecida por Rt é resultante de uma equação entre essas variáveis. Se o Rt estiver abaixo de 1, a tendência é de queda no número de casos. Se o Rt estiver acima de 1, a tendência é de elevação. É o comportamento dinâmico dessas variáveis que define as ondas epidemiológicas que vivenciamos e vivenciaremos futuramente.
Ao longo do tempo, o peso de cada uma dessas variáveis na equação vai mudando. Enquanto no início da pandemia praticamente não havia imunidade populacional, ou seja, quase todos eram susceptíveis, nesse momento temos uma proporção muito significativa de pessoas que já contraíram a infecção ou já receberam a vacina (ou ambos).
Estima-se que entre 57% e 77% da população já tenha contraído o vírus, de acordo com o Institute of Health Metrics and Evaluation, vinculado à Universidade de Washington, e a modelagem matemática baseada na análise de excesso de óbitos do jornal The Economist. De forma complementar, 58% da população brasileira já está plenamente vacinada e provavelmente uma fração muito considerável desses (difícil quantificar exatamente) tiveram covid-19 previamente, tendo a chamada imunidade híbrida, a forma mais poderosa de imunidade descrita até o momento.
Claro que muitos dos que tiveram infecção não sabem disso, visto que muitos casos leves e assintomáticos não tiveram diagnóstico. Estima-se que 80% a 87% dos casos não são detectados no Brasil. Isso explica por que, apesar das flexibilizações da mobilidade e abertura de setores (como comerciais e escolas) nos últimos meses, não houve felizmente reversão do cenário de queda que estamos vivenciando.
Desse modo, no início, com muitos susceptíveis, as intervenções nas variáveis relacionadas ao número de contatos interpessoais (correlacionadas com a mobilidade, atividades profissionais, comerciais e escolares)eram fundamentais para evitar o colapso do sistema de saúde e uma catástrofe humanitária. Hoje, com aumento substancial da imunidade populacional, não há por que ser tão rigoroso assim em ações que têm sim efeitos colaterais já que o balanço entre risco versus benefício vai mudando ao longo do tempo.
Esse mesmo raciocínio pode ser feito em relação às máscaras. É provável que essa variável não seja hoje tão relevante quanto já foi no decorrer da pandemia, mas há uma grande diferença na comparação às outras intervenções não farmacológicas. O uso de máscaras tem efeitos colaterais marginais. É muito diferente, por exemplo, de fechar o comércio ou as escolas, o que traz danos econômicos e sociais. Pode ser que gere algum desconforto para quem a utiliza (principalmente quem usa óculos) e pode atrapalhar o indivíduo que depende de leitura labial, mas temos que concordar que não são danos coletivos significativos e contornáveis no aspecto individual.
Além disso, há outro ponto a ser considerado: aquele mesmo estudo que comentei, realizado em Bangladesh, concluiu que as comunidades que tiveram maior adesão ao uso de máscaras tiveram também maior adesão ao distanciamento físico comparado ao grupo controle.
O maior distanciamento físico é um fator que comprovadamente reduz a probabilidade de transmissão. Isso mostra que há ganhos secundários positivos, contrário às crenças de compensação de risco, por quem usa máscaras. Mesmo que tenhamos condições de manter a pandemia sob controle sem a obrigatoriedade ao uso de máscaras, ninguém tem certeza disso. Nesse cenário de incerteza, é normal que tenhamos diferentes opiniões sobre o assunto, sem que haja necessariamente um lado correto e outro errado. Há um meio termo? Sim. Assim como foi feito com as demais intervenções não farmacológicas, há como realizar um downgrade de forma progressiva, iniciando a flexibilização para os locais ou situações em que seu uso provavelmente é menos eficaz. Por exemplo, há uma série de estudos demonstrando o baixo risco de transmissão em ambientes abertos (18x menor comparado a ambientes fechados).
Se as máscaras ainda exercem efeito significativo no controle da pandemia, isso se dá principalmente pelo uso delas em ambientes fechados, especialmente se pouco ventilado e com muitas pessoas no recinto.
Por outro lado, será que se houver flexibilização do uso de máscaras em ambientes abertos, haverá redução da adesão ao seu uso em ambientes fechados? Se sim, será que isso afetará significativamente o cenário epidemiológico?
Dessa forma, é sim razoável abrir essa discussão e definir um plano, pautado pelas evidências e bom senso. É possível retirar a obrigatoriedade iniciando em situações e locais onde seu uso provavelmente tem menor utilidade, como espaços abertos e com distanciamento acima de 2 metros de outro indivíduo, por exemplo.
Além disso, a retirada da obrigatoriedade não significa proibição de seu uso. Isso deve ser muito bem comunicado à população, com manutenção aos estímulos para uso de máscaras de forma optativa onde isso deixar de ser obrigatório. Usa quem quiser nessas circunstâncias.
Independente de qualquer decisão, é crítico que qualquer mudança seja monitorada por meio de intensificação da vigilância epidemiológica, para avaliar o impacto dessas medidas, assim como seus efeitos indiretos (como a queda da adesão das máscaras em espaços fechados). Além disso, a pandemia já nos mostrou e vem mostrando que precisamos estar prontos para voltar atrás se for preciso (vide a situação da Europa neste momento). Não podemos de forma alguma achar que a flexibilização de uma medida de contenção significa que vencemos a guerra. Devemos entender que o enfrentamento de uma pandemia que dura mais de 1 ano e meio exige resiliência, flexibilidade, união e sabedoria.
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Bernardo Almeida, colunista do TecMundo, é médico infectologista e chief medical officer da Hilab, health tech a qual desenvolveu o Hilab, primeiro laboratório descentralizado que usa testes laboratoriais remotos. É especialista em Infectologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), com residência em Clínica Médica, Medicina Interna e Infectologia no Hospital de Clínicas; mestrando em Medicina Interna pela mesma universidade, na área de Doenças Infecciosas — Epidemiologia das Síndromes Respiratórias Agudas Graves em Adultos. Tem experiência em clínica médica, bem como em doenças infecciosas e parasitárias, além disso participa de grupos de pesquisa sobre vírus respiratórios.
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