É impossível compreender a pandemia sem entender alguns conceitos matemáticos. Esse conhecimento é necessário para que se planeje e execute ações eficientes para controlar a pandemia, além de aumentar a adesão às medidas de prevenção individuais.
Para começarmos, a transmissibilidade viral é expressa pelo indicador taxa de reprodução (R). Já a taxa de reprodução básica (R0), transmissibilidade inicial do vírus, supõe que nenhuma ação de contenção esteja em prática. O Sars-Cov-2, que causa a covid-19, tem um R0 que varia de 2,5 a 5 dependendo do local e da variante viral. Mas o que significa isso? É o número de transmissões a partir de cada caso.
O cálculo matemático
A interpretação matemática é de um crescimento exponencial. Se considerarmos um R0=5, sabendo que cada caso secundário ocorre após 5 dias em média (intervalo serial), após 30 dias, um único caso se transforma em mais de 15 mil (considerando R0=5).
A força da exponencialidade ocorre para qualquer valor acima de 1. O Rt é a taxa de reprodução efetiva, ou seja, a transmissibilidade do vírus em vigência de medidas de contenção. O objetivo é reduzir a transmissibilidade para abaixo de 1. O que poucos percebem é que, assim como a força exponencial para crescimento com Rt acima de 1, com valores abaixo de 1, temos a força do decréscimo exponencial.
O que está sendo visto no Brasil é que não há um esforço significativo para manutenção de Rt abaixo de 1. Uma ou duas semanas a mais nessa faixa faria uma enorme diferença na quantidade de óbitos.
Figura 1a: Exemplo de crescimento exponencial de casos para um R0=5.
Figura 1b: Exemplo de queda exponencial com Rt=0,5.
Quais são os fatores que influenciam o Rt?
A resposta a essa pergunta é a chave para o sucesso das intervenções. O Rt é o produto das seguintes variáveis: duração da transmissibilidade; número de interações de um transmissor por dia; probabilidade de transmissão durante uma interação; susceptibilidade populacional.
Por exemplo, considerando que a transmissibilidade dura em média 5 dias e que os transmissores tenham 10 interações ao dia, a probabilidade média de transmissão é de 5% por interação e que 80% da população é suscetível, o Rt será de 2.
Se conseguirmos que todas as pessoas reduzam em 20% o número de interações e que 80% da população usem máscaras com 70% de efetividade, o Rt cairá para 0,9! E então entramos em queda exponencial.
Nesse último exemplo, assumimos que não sabemos quem são os transmissores e lançamos mão de medidas populacionais para reduzir as interações sociais e, dessa forma, reduzir indiretamente as interações dos transmissores.
Vejam, sabemos que a prevalência viral média é menor de 1% (podendo chegar a 3-4% nos picos). Logo, para reduzir as interações de 1% da população, por não saber quem são, tenho que intervir nos 100%, incluindo os 99% que não são transmissores. É efetivo e às custas da intervenção em grande parte de pessoas que não interferem na conta. Ações populacionais devem ter o mínimo efeito colateral possível (idealmente nenhum), já que atingem muitas pessoas que não afetam a dinâmica epidemiológica.
No caso da covid-19, esses são representados por 99% da população não transmissível. Em relação ao uso de máscaras, por exemplo, exceto pelo desconforto de quem o usa, o impacto negativo é praticamente indiferente. Em relação às interações, pode ser um problema para quem depende delas para composição da renda. Isso passa a ser um problema principalmente em locais que carecem de mecanismos para minimizar esse impacto, como auxílios governamentais temporários.
Mas então por que não identificar esse 1%? Se conseguirmos identificá-los rapidamente, no início da infecção, fica muito mais fácil de reduzir as interações, não é lógico? Mas infelizmente não é tão simples assim. Para isso, precisaríamos testar todos com frequência (é sim uma medida populacional). Há a vantagem de que há poucos impactos negativos, porém há o custo dos testes.
Testagem em massa vale a pena?
Vamos fazer uma reflexão: qual é o custo de reduzir as interações sociais de toda a população? Um indivíduo que ganha menos, irá contribuir menos com impostos, que será menos revertido em benefícios coletivos e vira um círculo vicioso. Qual é o custo de ampliação da rede assistencial, com leitos de enfermaria e de UTI, ventiladores mecânicos, medicações para entubação, sedativos, oxigênio, médicos, enfermeiros e tudo mais que envolve atendimento de alta complexidade? Não esqueçam que a demanda de tudo isso será crescente em ritmo exponencial se o Rt ficar acima de 1. Então, qual é o custo da perda de aprendizado das crianças durante o período que as escolas estão fechadas? E o de um óbito?
Em relação ao tipo de teste, há outros conceitos relevantes: sensibilidade (sens) e especificidade (especif), a associação de ambos gera a acurácia — Valor Preditivo Positivo (VPP) e Valor Preditivo Negativo (VPN).
De forma simplista, a sens é a capacidade de detectar a doença (teste positivo) entre os casos de infecção; especif é a capacidade de detectar a ausência de doença (teste negativo) entre os casos que não estão com infecção. O VPP é a chance de infecção, dado que um teste é positivo. O VPN é a chance de ausência de doença, dado que um teste é negativo.
Agora a parte mais complexa: a sens e especif são variáveis ao longo do tempo, de acordo com a cinética de carga viral. A sensibilidade dos testes atinge pico nos primeiros dias de sintomas e cai progressivamente. Além disso, é importante ter bem definido qual é o desfecho avaliado. Uma coisa é avaliar sens e especif para detectar doença, outra é avaliar a transmissibilidade, que é o mais interessante do ponto de vista de saúde coletiva.
Por exemplo, testes baseados em biologia molecular, como o RT-PCR, tendem a ficar positivos mesmo após passado o período de transmissibilidade, ou seja, especif é baixa para detecção de transmissibilidade. Isso significa que boa parte dos testes reagentes são de pessoas que já não estão transmitindo.
Bom, vamos além. De nada adianta termos um teste com 100% de sens e 100% de especif, se não for possível realizá-lo para todas as pessoas com a doença e em tempo hábil. Uma variável negligenciada é o acesso, seja por custo, seja pela capacidade de realização de uma quantidade alta de testes.
É importante encontrar um balanço ideal entre acesso e acurácia. Há uma série de modelos e dados de vida real demonstrando o impacto da aplicação de testes de antígeno em massa, provando que a escalabilidade e rapidez compensam a queda na sensibilidade. Inclusive há dados concretos de que apresentam maior acurácia que o PCR para detecção de transmissores.
A vida é feita de escolhas. Esperamos que os gestores que nos representem entendam esses conceitos matemáticos e façam as escolhas certas.
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Bernardo Almeida, colunista do TecMundo, é médico infectologista e Chief Medical Officer da Hilab health tech que desenvolveu o Hilab, primeiro laboratório descentralizado usando testes laboratoriais remotos. É médico especialista em infectologia pela Universidade Federal do Paraná, com residência médica em clínica médica, bem como medicina interna e infectologia no Hospital de Clínicas — UFPR. É mestrando da UFPR em medicina interna, área de Doenças Infecciosas — Epidemiologia das síndromes respiratórias agudas graves em adultos. Tem experiência na área de medicina com ênfase em clínica médica, doenças infecciosas e parasitárias. Ele participa de grupos de pesquisa na área de vírus respiratórios.
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