Em dezembro do ano passado, o chefe de saúde global do Fórum Econômico Mundial, o economista Arnaud Bernaert, expôs de forma simples o que hoje o mundo está vivendo: “É matemática: dos cerca de 12 bilhões de doses de vacinas contra a covid-19 que a indústria farmacêutica deve entregar em 2021, nove bilhões foram reservados pelos países ricos.” Para driblar a frieza dos números que não mentem, uma campanha pela renúncia dos direitos de propriedade intelectual sobre as vacinas produzidas dá voz aos países que nem mesmo têm doses para seu corpo médico.
Para que a imunidade de rebanho seja alcançada em nível mundial, é preciso que 70% da população planetária seja imunizada, e isso vai requerer 11 bilhões de doses. Pelos cálculos do Centro de Inovação em Saúde da Universidade Duke, só os países de alta e média/alta renda (um quinto da população mundial) levaram seis bilhões de imunizações (2 doses).
Gana, o primeiro país africano a receber vacinas da OMS, começou sua campanha de vacinação em 2 de março.Fonte: GAVI/Edinam Awo Amewode/Divulgação
Do outro lado, os países de renda baixa e média (os restantes quatro quintos do planeta) têm encomendas para 2,6 bilhões de doses – dessas, 1,1 bilhão de doses virão da Organização Mundial da Saúde (OMS). Isso quer dizer que, enquanto 20% da humanidade estarão livres da covid-19, os outros 80% serão imunizados ao longo dos próximos dois ou mais anos. Hoje, 75% das vacinas aplicadas o foram em braços de habitantes de apenas dez países.
As vacinas que são fabricadas (cerca de 413 milhões de doses no início de março, segundo a empresa de análise de mercado Airfinity, podendo chegar a 9,5 bilhões até dezembro) são entregues aos países que, em meados de 2020, limparam as prateleiras e contrataram vacinas o suficiente para imunizar mais de uma vez seus cidadãos – os EUA, por exemplo, têm um estoque excedente de 30 milhões da vacina da AstraZeneca que não pode ser usado porque o imunizante não foi aprovado no país nem mesmo para uso emergencial.
Vacinados seis vezes
A esperança para países como os do continente africano e da América Central é a COVAX Facility, iniciativa da OMS para garantir até dois bilhões de doses até o fim deste ano para países de baixa a média renda. Porém, países ricos como Canadá (cujas encomendas de vacinas são suficientes para imunizar cada cidadão do país seis vezes), Singapura e Nova Zelândia já declararam que querem receber sua parte das vacinas da COVAX agora.
Para deter o que muitos cientistas e médicos estão chamado de “apartheid de vacinas”, um grupo de cem países, liderado pela Índia e pela África do Sul, tenta conseguir, na Organização Mundial do Comércio (OMC), que alguns dos direitos de propriedade intelectual sobre as ferramentas e tecnologias médicas relacionadas com a covid-19 sejam temporariamente suspensos até que a imunidade coletiva mundial seja alcançada.
A proposta tem o apoio da chamada Aliança pela Vacina Popular (People's Vaccine Alliance), uma coligação de entidades, entre elas a agência das Nações Unidas para HIV/AIDS, a Anistia Internacional e os Médicos Sem Fronteiras. Não houve consenso na última reunião do organismo, em 11 de março, e o assunto deve ser retomado em abril.
Dinheiro público
EUA, União Europeia e mais outros países (inclusive o Brasil) se opõem à proposta. Segundo eles, suspender as patentes pode desencorajar futuros investimentos privados em pesquisa, “obstruindo a inovação científica”.
O grupo que quer o compartilhamento de tecnologia até que a pandemia seja controlada argumenta que os laboratórios receberam investimentos robustos dos governos para o desenvolvimento de vacinas – dinheiro público que, segundo um relatório publicado em fevereiro pela revista médica The Lancet, chegou a US$ 10 bilhões (cerca de R$ 56 bilhões).
A discussão ainda passa por qual tecnologia deva ser compartilhada. As vacinas de RNA mensageiro, por exemplo, são as que menos tempo levam para serem produzidas. Porém, é a falta de corpo técnico treinado e a escassez global de insumos essenciais que são, até agora, o entrave para o fabrico das mais eficientes armas contra o SARS-CoV-2.
Compartilhamento
Segundo o engenheiro químico Zoltán Kis, do Colégio Imperial de Londres, não há nucleotídeos (a base para replicar o RNAm), enzimas (responsáveis pelo processo de replicação) e lipídios (a capa onde o RNAm é inserido para não se degradar): os poucos fabricantes, além de não darem conta da demanda, relutam em licenciar seus processos de produção.
“Os lipídios são o componente mais caro, e um pequeno número de companhias detém os direitos de propriedade intelectual de uma das quatro nanopartículas lipídicas que formam a ‘gaiola’ em torno do RNAm”, disse Kis.
Mesmo palco de testes clínicos, a África do Sul não tem vacinas suficientes para imunizar sua população.Fonte: Reuters/Siphiwe Sibeko/Reprodução
Especialistas se dividem sobre a eficácia de suspender os direitos de propriedade dos laboratórios. Enquanto alguns argumentam que foi uma atitude como a que o Brasil tomou em 2007, quando uma das drogas do coquetel anti-HIV começou a ser fabricada sob licença compulsória (quando há uma emergência sanitária), que permitiu frear a escalada da doença no país, outros apontam que a medida será inócua por conta dos diferentes níveis tecnológicos entre os países envolvidos.
Desde o início da pandemia, a OMS defende a transferência voluntária de tecnologia, conhecimento, dados e propriedade intelectual por universidades e fabricantes a outras empresas por meio de um mecanismo global, o Acesso Conjunto a Tecnologias contra a Covid-19. Quase 40 países assinaram o acordo, delineado em junho de 2020. Até hoje, nenhuma tecnologia foi compartilhada.
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