A comunidade médica vive hoje um embate, provocado pela publicação de um manifesto – a Declaração de Great Barrington – que advoga o abandono de todos os esforços para conter o novo coronavírus e deixar que a doença infecte livremente a população, o que ajudaria a construir a tão falada imunidade de rebanho.
A resposta veio rapidamente através de uma carta aberta de 80 cientistas, publicada na conceituada revista médica The Lancet, sucinta ao se referir à estratégia: "Esta é uma falácia perigosa não suportada por evidências científicas".
Uma célula repleta de Sars-CoV-2 (abaixo, à esquerda) prestes a estourar.Fonte: IOC/Fiocruz/Débora F. Barreto-Vieira/Divulgação
Sequelas catastróficas
No chamado Memorando John Snow (uma referência ao médico do século XIX, um dos fundadores da epidemiologia moderna), seus signatários argumentam que a ausência de medidas de controle aumentaria a mortalidade em toda a população.
A diretora científica da OMS, Soumya Swaminathan, declarou que, com essa estratégia, 1% da população mundial (77 milhões de pessoas) morreria para que se alcançasse a imunização coletiva natural.
Não somente isso: a estratégia não considera as sequelas catastróficas (já documentadas) provocadas pela doença. “A transmissão não controlada em pessoas mais jovens [...], além do custo humano, impactaria a força de trabalho como um todo e sobrecarregaria os sistemas de saúde.”
Um paramédico carrega um bebê de 10 meses com suspeita de covid-19 em Stanford, Califórnia.Fonte: Getty Images/John Moore/Reprodução
Declaração política, não estratégia
A American Public Health Association (APHA) e outras 14 organizações de saúde pública disseram que a sugestão não é "uma estratégia, mas uma declaração política”.
“Se seguidas, as recomendações sacrificariam vidas aleatória e desnecessariamente. Ela ignora conhecimentos sólidos de saúde pública. Em vez de vender falsas esperanças que previsivelmente sairão pela culatra, devemos nos concentrar em como gerenciar essa pandemia de forma segura, responsável e equitativa."
Segundo a APHA, "as sugestões apresentadas pela Declaração de Great Barrington NÃO são baseadas na ciência”, ignorando que “não há evidências de que estejamos hoje nem remotamente próximos da imunidade coletiva. Ao contrário; os especialistas acreditam que 85%-90% da população dos Estados Unidos ainda corre o risco de contrair Sars-CoV-2”. A seguir, lembram do "fracasso do experimento de imunidade de rebanho em nações como a Suécia, que tem a maior taxa de mortalidade entre todos os países nórdicos”.
Livre circulação do vírus
O que os médicos e cientistas apontam em comum ao condenar a proposta capitaneada pelos epidemiologistas Martin Kulldorff (Harvard), Sunetra Gupta (Oxford) e Jay Bhattacharya (Stanford) é o fato de que ela carece de base científica e comprovação clínica.
Os três signatários, os epidemiologistas Martin Kulldorff, Sunetra Gupta e Jay Bhattacharya.Fonte: Great Barrington Declaration/Divulgação
A estratégia proposta é chamada de Proteção Focada, que permite "que aqueles que estão sob risco mínimo de morte vivam suas vidas normalmente para construir imunidade ao vírus por meio de infecção natural, protegendo melhor aqueles que estão em níveis de risco mais elevado".
A declaração e a polêmica subsequente surgem no momento em que a segunda onda da doença avança sobre a Europa e a OMS divulga que os antivirais Remdesivir e Interferon falharam em aumentar a sobrevida de pacientes gravemente infectados.
O diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom, declarou que "nunca na história da saúde pública se utilizou a imunidade coletiva como estratégia para responder a um surto, e muito menos a uma pandemia. É científica e eticamente questionável".
O Sars-CoV-2 já infectou 39,5 milhões de pessoas, com 1,1 milhão de mortos. O Brasil registra 5,2 milhões de casos confirmados e 153,2 mil mortes por covid-19.
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