De acordo com o consenso – e com o que dizem os livros de medicina –, o sistema imunológico age sobre todos os órgãos, estruturas e tecidos do corpo humano, com exceção do cérebro, responsável por comandar tudo o que ocorre no nosso organismo. Entretanto, segundo um interessantíssimo artigo de Donna Jackson Nakazawa, publicado pelo site Wired (e disponível para leitura através deste link), evidências indicam que, ao contrário do raciocínio consolidado há séculos sobre o dualismo mente-corpo, a saúde física tem forte influência sobre a mental, e o elo de ligação entre ambas parece ser uma pequenina célula cerebral chamada micróglia.
Divórcio corpóreo
O conceito de dualismo mente-corpo se baseia na ideia de que o funcionamento do cérebro e os mecanismos que regem as funções do restante do nosso corpo são independentes. Isso incluiria o sistema imunológico – e, de fato, existe na base do cérebro uma grande concentração de células fortemente entrelaçadas que formam a chamada Barreira Hematoencefálica, uma estrutura que, como o próprio nome sugere, atua como uma “muralha” entre o sistema nervoso central e o restante do corpo, filtrando o que pode passar e impedindo que substâncias presentes na corrente sanguínea e potencialmente prejudiciais penetrem através dela.
Entretanto, as micróglias, minúsculas células que existem em grandes quantidades no sistema nervoso central, aparentemente se “comunicam” com o restante do organismo – e poderiam estar por trás da razão de pessoas diagnosticadas com uma variedade de doenças de ordem física serem muito mais propensas a desenvolverem problemas neurológicos como depressão, ansiedade, Parkinson, esquizofrenia, distúrbio bipolar, transtorno obsessivo-compulsivo, transtorno do déficit de atenção e hiperatividade, perda de memória e outros distúrbios cognitivos e neurodegenerativos.
"Pac-Men" biológico
As micróglias compõem cerca de 1 décimo das células cerebrais e, desde a sua descoberta, na década de 20, eram tidas como as “faxineiras” do cérebro – se ocupando de coletar e descartar os neurônios que vão morrendo. Contudo, com o avanço tecnológico, estudos mais recentes revelaram que essas minúsculas estruturas estão envolvidas em outras ações também. A possibilidade de investigar as células em pleno funcionamento permitiu aos cientistas observar que elas estão em constante movimento pelo sistema nervoso central, como se estivessem “checando” todas as áreas, estruturas e atividades, verificando que tudo corre bem.
Como você pode ver pela imagem acima, as micróglias consistem em bolotinhas dotadas de bracinhos que lembram os galhos de uma árvore. Pois, quando passam por um neurônio, por exemplo, as micróglias esticam essas pequenas protuberâncias e tocam as células cerebrais como que para garantir que elas estão bem. E, dada a sua função como “faxineiras”, ao identificar problemas com os neurônios, elas estendem os braços, coletam as células doentes ou mortas e as levam embora.
Essa atividade, como você deve se recordar das aulas de Biologia, lembra bastante a executada por outra organela presente no organismo, o macrófago. Quando ocorre a morte celular em algum órgão ou tecido em decorrência de infecções, o sistema imunológico percebe a presença desses “cadáveres” como um risco potencial e envia os macrófagos para engolirem e destruírem as estruturas mortas.
No entanto, podem acontecer erros nesse mecanismo e de o sistema imunológico mobilizar o seu exército de “Pac-Men” para atacar células e tecidos saudáveis – e é aí que se dão doenças autoimunes como seriam a artrite reumatoide e a Síndrome de Guillain Barre, por exemplo. Curiosamente, pessoas diagnosticadas com problemas de saúde como esses também estão naquele grupo mais propenso a desenvolver problemas mentais, e o aprofundamento nos estudos sobre as micróglias revelaram algo fascinante.
Falha na Matrix
As micróglias são originadas a partir da mesma família de células-tronco que se transformam em células do sistema imunológico, como os linfócitos, glóbulos brancos e macrófagos. O que acontece é que, nos embriões, por volta do sétimo dia de gestação, as micróglias migram para o cérebro através da corrente sanguínea, enquanto as demais células permanecem no restante do corpo. Isso significa que as micróglias são, em sua essência, células imunológicas.
Essas células são especialmente ativas durante o processo de desenvolvimento do sistema nervoso central em embriões e, depois, quando esse sistema se torna maduro, as micróglias ficam programadas para somente “engolir” neurônios e sinapses que já não servem mais. Contudo, quando ocorrem erros no sistema imunológico e ele começa a atacar células e tecidos saudáveis, esse desequilíbrio parece ser percebido no cérebro – e sinapses e neurônios saudáveis começam a desaparecer por lá, dando lugar a problemas neurodegenerativos e neuropsiquiátricos que mencionamos antes.
É como se a mesma “falha na matrix” ocorrida no sistema imunológico se espelhasse no sistema nervoso e as micróglias entrassem em ação no intuído de proteger o cérebro de uma possível infecção. Com isso, elas podem devorar conexões cerebrais envolvidas no processamento de informações, pensamentos, emoções e formação de memória, além de prejudicar a comunicação entre diferentes regiões do cérebro, causando uma bagunça.
Existem estudos que revelaram que pessoas passando por episódios graves de depressão apresentam níveis de micróglias ativas bem mais elevados do que o normal – e o mesmo foi observado em pacientes diagnosticados com Parkinson e TOC. Além disso, existem fortes evidências de que as micróglias ativadas pelo sistema imunológico entram em ação em reposta aos mesmos mecanismos que desencadeiam inflamações no corpo.
O bacana é que, com essas descobertas recentes e o maior entendimento sobre a ação, funcionamento e impacto das micróglias, os pesquisadores podem explorar novas possibilidades e abordagens para tratar uma variedade de males que afetam o corpo e a mente – e voltar a reconciliar essas 2 entidades que, apesar de estarem separadas nos livros de medicina, formam parte de um todo.