Você pode até não saber, mas existem vários ciborgues vivendo em nossa sociedade. Contudo, eles não lutam contra o crime organizado, não enfrentam guerras contra poderosos vilões e tampouco atuam como agentes secretos para megacorporações multinacionais.
Na verdade, a maioria deles tem uma vida parecida com a sua: acordam cedo para ir à faculdade, trabalhar, frequentar sua academia predileta e dar uma volta em alguns bares com seus melhores amigos. E é provável que, a menos que eles queiram, você jamais notará que eles possuem “algo a mais” que os diferencia da população convencional.
Apaixonados pelo avanço tecnológico e inspirados pela ideia de criar o humano v2.0, eles usam seus próprios corpos como objetos de teste para novos experimentos peculiares. Estamos falando dos grinders — ou biohackers —, termo que designa os adeptos de um movimento que vem ganhando força especialmente no continente norte-americano e em alguns países europeus.
Vivendo no limite entre o homem e a máquina
A cultura do biohacking é oriunda de um pensamento radical, mas bastante simples. Podendo ser considerada uma vertente do transhumanismo, ela defende o emprego de recursos tecnológicos para aprimorar as capacidades humanas e alterar a forma como interagimos com o ambiente ao nosso redor. Esse conceito reflete a ideia de que o próximo degrau em nosso ciclo evolutivo não será consequência de forças da natureza, mas sim de nosso próprio trabalho e esforço coletivo.
Sendo comumente retratados como figuras polêmicas por veículos jornalísticos tradicionais, os adeptos dessa doutrina não enxergam limites na hora de estender suas capacidades nativas através do uso da tecnologia. Uma prática muito comum nesse meio é o implante de dispositivos eletrônicos – que na grande maioria das vezes são feitos de forma caseira, com o próprio biohacker realizando cirurgias invasivas de maneira amadora.
É óbvio que, por causa de atos desse tipo, a cultura do biohacking é frequentemente alvo de discussões acerca da segurança de seus adeptos. Muitos profissionais do ramo de body piercing/body modification estão se especializando em implantes cibernéticos, mas isso não evita que a comunidade médica internacional enxergue a vertente com olhos desconfiados.
E, por mais que médicos profissionais e biohackers DIY tentem entender e colaborar uns com os outros, a verdade é que eles parecem ter dificuldades de cooperar em prol de um objetivo comum – afinal, estamos falando de pensamentos e métodos de trabalho completamente diferentes.
Lepth Anonym, uma das mais famosas biohackers do mundo
Chips RFID/NFC: o nível básico
Um dos implantes cibernéticos mais simples que você pode inserir em seu próprio corpo é um chip de comunicação por proximidade – os modelos mais recentes disponíveis no mercado conseguem trabalhar simultaneamente com as tecnologias RFID e NFC. Já pensou em destrancar a porta de sua casa sem chaves? E que tal adicionar mais uma camada de proteção ao sistema de ignição de sua moto ou carro? Essas são só algumas ideias oferecidas por Amal Graafstra, fundador da Dangerous Things, empresa responsável pelo primeiro chip feito especialmente para ser implantado no corpo humano.
Graafstra, que possui um chip RFID em cada uma de suas mãos, utilizou o IndieGogo (site de financiamento coletivo à la Kickstarter) para iniciar a produção do xNT, que possui o tamanho de um grão de arroz e é revestido por uma fina camada de vidro biocompatível do tipo Schott 8625. Tendo arrecadado mais de US$ 30 mil na campanha citada, o dispositivo está à venda no site oficial da Dangerous Things — por US$ 99 (cerca de R$ 220), você leva o chip junto com um kit contendo tudo o que você vai precisar para fazer o implante (seringa, luvas, curativos e uma pequena dose de antisséptico).
A aplicação do xNT é muito simples, bastando injetá-lo em sua mão dentro da região entre os dedos polegar e indicador. Caso você não esteja disposto a fazer o procedimento por conta própria, é possível levar o kit para algum piercer capacitado e apresentar o manual escrito pela própria Dangerous Things. A companhia também mantém parceria com alguns profissionais devidamente treinados para realizar o implante, mas a única pessoa com tal certificação em todo o território brasileiro é a body artist Mary Jo (Mariana Queiroz), que trabalha em São Paulo, na capital.
Baseado no padrão NTAG216, o xNT é compatível com praticamente todo e qualquer leitor NFC que você possa utilizar em seu dia a dia, inclusive os modelos mais recentes de smartphones e tablets. Sendo assim, além de programar seu chip para interagir com engenhocas como as descritas acima, você pode simplesmente utilizá-lo para guardar informações diversas que serão transferidas para um celular assim que este encostar na sua mão – é uma forma bem mais elegante de distribuir cartões de visita virtuais, por exemplo.
Ímãs de neodímio: adquirindo um sexto sentido
Outra prática muito comum entre os adeptos do biohacking é o implante de ímãs de neodímio. Você não leu errado: neste momento, em outra parte do globo, enquanto você lê estas palavras, existe um jovem abrindo seu dedo anelar usando um bisturi, abrindo o corte com uma tesoura cirúrgica, empurrando um pequeno ímã dentro do buraco aberto e fechando a coisa toda com uma sutura. Sozinho. Sem cirurgia. Em sua própria casa.
Ainda que esse procedimento possa parecer uma loucura, a verdade é que ele é muito mais seguro do que você imagina. Os ímãs em questão são minúsculos e revestidos pelos próprios grinders com algum material biocompatível, como Polyrene, silicone ou até mesmo Sugru – uma massa borrachuda que pode ser usada para uma infinidade de aplicações diferentes.
Sendo assim, o único risco que você corre ao realizar o implante é o de ser acometido por uma infecção “tradicional”, caso o local da cirurgia não esteja limpo e os instrumentos de corte devidamente esterilizados. Sem contar, é claro, do perigo de desmaiar de dor durante o processo.
O implante de um ímã pode ser um processo bastante doloroso
É bem provável que você esteja se perguntando o porquê de alguém querer implantar um ímã em seu próprio dedo – especialmente tendo que passar por um processo bastante doloroso para isso, não é mesmo? Simples. O implante dá ao indivíduo uma espécie de sexto sentido, permitindo que ele sinta os campos eletromagnéticos que rodeiam todos os dispositivos eletrônicos que utilizamos diariamente.
A vibração do ímã em resposta a tais campos provoca uma pequena coceira no campo implantado, sendo que sua intensidade varia de acordo com a frequência emitida por diferentes aparelhos (de acordo com relatos, o micro-ondas cria uma sensação particularmente intensa).
Se você é um apaixonado por tecnologia, é bem provável que tenha achado a ideia bastante sedutora: imagine sentir a “vida” de computadores, celulares, tablets, geladeiras, televisores, carros, geradores de energia... Se isso não for diversão o suficiente para você, a dica é ficar brincando de pescar pequenos itens metálicos – como clipes e tampinhas de cerveja – usando seu dedo cibernético.
Mobilizações mundiais em prol da evolução
E você não poderia estar mais enganado caso acredite que o biohacking é apenas mais uma modinha de adolescentes revoltados — muito pelo contrário. Diversas ONGs e coletivos respeitados já aderiram ao movimento, colaborando com invenções inovadoras projetadas de uma forma mais “profissional”.
Não poderíamos deixar de citar a Cyborg Foundation, um instituto fundado pelo artista Neil Harbisson com o objetivo de incentivar pesquisas nesse segmento e promover debates acerca dos direitos dos ciborgues. Harbisson nasceu com acromatopsia, uma doença que limita sua visão e só lhe permite enxergar em preto e branco.
Neil Harbisson, fundador da Cyborg Foundation, e seu Eyeborg
Junto com outros pesquisadores, o artista desenvolveu o Eyeborg, um aparato que “traduz” cores em diferentes ondas sonoras. Fixado na cabeça de Harbisson, a engenhoca mudou para sempre a vida do londrino e o incentivou a auxiliar outros cidadãos interessados em ampliar suas capacidades naturais através de implantes cibernéticos.
Outro nome famoso entre a comunidade biohacker internacional é a Grindhouse Wetware, que atualmente dedica-se ao desenvolvimento do chip Circadia. Bem maior do que o xNT ou um simples ímã de neodímio, o gadget consegue identificar dados diversos do corpo de seu usuário (como temperatura corporal) e enviá-los diretamente para um smartphone através do protocolo Bluetooth. A bateria do aparelho pode ser carregada sem o auxílio de fios, obviamente.
Protótipo do Circadia implantado no braço de uma "cobaia"
A nova raça humana?
Ao que tudo indica, a tendência é que implantes cibernéticos se tornem relativamente comuns em um futuro próximo – assim como piercings, tatuagens e outros tipos de modificações corporais. E é exatamente por isso que muitos já se preparam para lidar com eventuais preconceitos contra os humanos v2.0 e disputas religiosas/culturais que tal movimento pode desencadear ao virar mainstream. E você, o que acha de toda essa situação? Teria coragem de implantar algum equipamento eletrônico em seu próprio corpo?
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