Aconteceu na Malásia (com o voo desaparecido), na Ucrânia (com o ataque de separatistas), na Algéria (por conta do mau tempo) e em Santos (que vitimou o candidato à presidência Eduardo Campos) – só para citar acontecimentos recentes. Uma batida fatal resulta na morte de todos os ocupantes de uma aeronave e não sobra ninguém para contar a história. Sem testemunhas humanas, um dos modos mais confiáveis de saber o que aconteceu momentos antes da queda, das reações do piloto às condições da aeronave, é a partir da recuperação dos dados gravados em dois pequenos dispositivos que ficam na cauda do veículo.
A caixa-preta é um item de segurança que consiste, basicamente, em uma unidade de memória bem protegida, um sinal para acidentes no oceano e uma caixa de energia com controladores que permitem a conexão com a aeronave. Uma delas é um gravador de voz no cockpit, enquanto a outra consiste em gravador de dados de voo. Ou seja, elas são duas e podem estar acopladas ou não em um dispositivo único.
Praticamente todos os noticiários falam sobre as buscas dessa peça, que pode resolver um mistério melhor do que qualquer especialista. Mas você sabe como esse dispositivo funciona — e qual a cor dele de verdade?
Uma boa ideia
A criação da caixa-preta partiu do cientista australiano David Warren. Ele perdeu o pai em um acidente aéreo que nunca foi solucionado e trabalhava no Aeronautical Research Laboratory em Melbourne, nos anos 1950, quando percebeu como seria útil se houvesse uma gravação no momento de um acidente que estava em investigação.
Um dos protótipos da caixa-preta: inseguro e jurássico
O primeiro modelo ficou pronto dez anos depois e era bastante rudimentar, sem toda a proteção atual e com menos dados gravados do que as caixas-pretas recentes. A Austrália foi o primeiro país a exigir o equipamento – atualmente, ela é obrigatória em voos comerciais de grande escala e deve gravar um número mínimo de dados (de acordo com normas de cada país).
As caixas-laranjas
Como você deve ter percebido, o modelo atual das caixas-pretas é pintado de laranja para facilitar as buscas em destroços ou no fundo do mar, mas várias teorias explicam o porquê do nome. Há quem diga que é só porque elas realmente eram pintadas de preto no início, mas há uma teoria igualmente aceita que fala que o termo encaixa-se em dispositivos cujo funcionamento interno é quase um mistério e não possui importância – tudo o que você precisa saber é como gravar e retirar os dados.
Os modelos mais modernos são cilíndricos em vez de quadrados, até para economizar espaço e aumentar a proteção do dispositivo de memória. Outro dado surpreendente é que, em vez de uma, existem duas caixas-pretas no avião. Ambas possuem uma CSMU (Crash Survivable Memory Unit, que é a unidade principal onde fica registrada a memória da caixa-preta. Ela é revestida com três camadas de proteção. A divisão ocorre de acordo com a função:
- O Cockpit Voice Recorders (CVR) grava até duas horas das conversas na cabine e eventuais sons na área destinada ao piloto. O som de explosões ou ruídos do motor pode ser crucial para a análise de um especialista. São quatro microfones (três nos headsets de membros da tripulação e um no centro do cockpit) que digitalizam o áudio e são acompanhados da Associated Control Unit, que gera pré-amplificação.
- O Flight Data Recorder (FDR) registra informações (parâmetros) como altitude, velocidade, hora e direção. Os mais modernos pegam movimentos individuais de cada asa, piloto automático e combustível. Os dados podem ser usados para gerar uma reconstrução de um acidente em 3D.
Enquanto a fita magnética grava até 100 parâmetros, as memórias de estado sólido gravam centenas ou até milhares de alterações no funcionamento da aeronave, ações realizadas pelo piloto ou não. Ao todo, até 25 horas são registradas.
Outro dispositivo essencial na caixa-preta é o Underwater Locator Beacon (ULB), um pequeno cilindro que é ativado quando entra em contato com a água. Ele transmite um sinal acústico que facilita a localização do equipamento.
A gravação
Após serem coletados pelos sensores, os dados são condensados na Flight-Data Acquisition Unit (FDAU), que fica na frente do avião, abaixo do cockpit. O FDAU então envia as gravações para as caixas-pretas, que estão conectadas diretamente à aeronave.
São duas as tecnologias de gravação usadas nos aviões comerciais atuais: fita magnética, já quase totalmente substituída, e memórias de estado sólido. Elas funcionam de forma cíclica e ininterrupta. O material mais recente sobrepõe o ciclo anterior, sempre deixando as gravações cheias. As memórias de estado sólido são digitais, mais modernas e gravam maior quantidade de material.
A caixa-preta é dura na queda: ela pode funcionar entre temperaturas de -55°C a 70°C, além de aguentar uma aceleração de 3.400 G (3.400 vezes a força gravitacional da Terra). Em condições extremas, aguenta uma hora sob um incêndio de 1.100 °C ou um mês debaixo d'água a até 9.000 metros de profundidade.
A retirada do material do local do acidente é seguida imediatamente pela tentativa de leitura dos dados, que deve ser cuidadosa para não danificar o conteúdo interno.
Tecnologia segura ou antiquada?
Em resumo, a caixa-preta não faz nada para evitar acidentes, mas ajuda investigadores a saberem exatamente o que aconteceu instantes antes de uma batida. Ela não pode ser desabilitada pelo piloto, nem mesmo se os sistemas de comunicação da aeronave forem tirados do ar. Ainda assim, ela está cercada de polêmicas – no voo da Air France que caiu em 2009, foram necessários dois anos de buscas até encontrar as unidades de dados.
A principal pergunta é: por que não transmitir os dados via satélite ou uma plataforma na nuvem? Na realidade, o avião possui um sistema chamado Aircraft Communications Addressing and Reporting System (ACARS) que envia dados críticos em tempo real para a terra firme, mas as informações são básicas demais (condição climática e se a porta da aeronave estava fechada, por exemplo) e normalmente só fornecidas durante decolagem e aterrissagem.
Transmitir as leituras da caixa-preta em tempo real seria trabalhoso: a quantidade de dados é imensa, pedindo uma banda absurdamente alta e rápida, além de servidores de muita capacidade. O gasto com um sistema de streaming via satélite seria absurdo para os padrões das companhias aéreas – e, apesar de ser por uma boa causa, os acidentes não solucionados com a tecnologia atual não são tão frequentes assim, o que não compensaria o investimento.
Fora a questão financeira, há uma barreira ética: os pilotos seriam vigiados sempre e o áudio das cabines, hoje acessado somente em investigações e por profissionais da área, constrangeria muita gente e deixaria os condutores de mãos atadas. Em outras palavras, em relação à caixa-preta atual, vale aquele lema: “Não é o ideal, mas é o que tem”.