Há pouco mais de uma semana, a justiça brasileira mostrou, pela terceira vez em um curtíssimo intervalo de tempo, que não sabe lidar com os avanços tecnológicos no setor de comunicação. Graças a uma decisão da juíza Daniela Barbosa Assumpção de Souza, da 2ª Vara Criminal da Comarca de Duque de Caxias (RJ), o WhatsApp foi novamente bloqueado em todo o território nacional durante algumas horas.
De acordo com um documento vazado minutos depois que a decisão judicial foi tomada, Daniela resolveu tirar o aplicativo do ar como uma represália ao Facebook, que é dona do mensageiro instantâneo. A rede social aparentemente se recusou a fornecer informações sigilosas de seus usuários para colaborar com uma investigação criminal. Para a juíza, a companhia de Zuckerberg tratou a justiça brasileira com pouco respeito..
Em determinado trecho da sentença, Daniela reclama do fato de que o Facebook respondeu aos seus emails em inglês “como se esta fosse a língua oficial deste país”, além de formular “perguntas improcedentes e impertinentes” que não poderiam ser respondidas para manter o sigilo judicial. “Duvida esta magistrada que em seu país de origem uma autoridade judicial, ou qualquer outra autoridade, seja tratada com tal deszelo”, finaliza.
Daniela Barbosa, que causou o mais recente bloqueio do WhatsApp no Brasil
Um caminho perigoso
Felizmente, não demorou muito para que o próprio presidente do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski, derrubasse a decisão e permitisse que as operadoras — tanto de telefonia móvel quanto de redes fixas — liberassem o WhatsApp para seus usuários. Lewandowski agiu após receber uma ação do Partido Popular Socialista (PPS), que argumentou que a decisão de Daniela fere a liberdade de expressão e de manifestação.
Essa prática é típica de ditaduras onde o cidadão é o eterno suspeito
Este caso é só mais uma prova de que a justiça brasileira está seguindo a perigosa mentalidade estadunidense no que tange aos direitos do cidadão no mundo digital. Cada vez mais vemos juízes e juízas que, em vez de priorizar meios alternativos de investigação, acreditam que o mais correto é existir um backdoor nos principais serviços online de comunicação que facilite a vigilância de indivíduos suspeitos.
“Essa prática é típica de ditaduras onde o cidadão é o eterno suspeito e está à disposição para qualquer violação de sua privacidade”, afirma Thiago Rocha, membro do Partido Pirata, em um longo texto publicado no site oficial da sigla. “Esse pedido abre um precedente perigosíssimo para um vigilantismo permanente e uma militarização cada vez mais explícita e abrangente dos meios digitais”, conclui.
É algo parecido com o caso Apple vs FBI — quando solicitada a sua colaboração em uma investigação criminal, a Maçã se mostrou irrefutável em sua posição de não criar uma ferramenta para que as autoridades pudessem hackear um iPhone. Para Tim Cook, abrir uma exceção sequer daria margem para futuros abusos e abalaria a confiança que os fãs da marca têm em seus celulares, que são “dispositivos bastante pessoais”.
Justiça brasileira parece querer criminalizar a criptografia e banalizar a privacidade
Histórico
Antes da decisão de Daniela, o WhatsApp também foi bloqueado no Brasil no dia 2 de maio deste mesmo ano. Na ocasião, foi o juíz Marcelo Montalvão, do Tribunal de Justiça (TJSE), que ordenou a suspensão do serviço por 72 horas. O motivo foi o mesmo: visto que a equipe responsável pelo aplicativo se recusou a colaborar com investigações a respeito de uma grupo de traficantes, Marcelo resolveu pressioná-la bloqueando o acesso no país.
Os prejuízos para os usuários são incalculáveis
A primeira vez em que o app saiu do ar, porém, foi em 2015, na manhã do dia 17 de dezembro. Mais uma vez, a motivação para essa “punição” foi o fato de que o Facebook não quis colaborar com as investigações sobre um criminoso acusado de latrocínio, tráfico de drogas e associação ao Primeiro Comando da Capital (PCC). Quem proferiu a ordem foi a 1ª Vara Criminal de São Bernardo do Campo (São Paulo).
Em ambos os casos, o WhatsApp não permaneceu bloqueado por mais do que algumas horas antes que algum desembargador derrubasse a decisão — de qualquer forma, os danos e prejuízos para os usuários (incluindo empresas e profissionais que utilizam a plataforma para fins corporativos) são incalculáveis. Até mesmo João Rezende, presidente da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), se posicionou contra os bloqueios.
Os bloqueios causam prejuízos aos usuários
Qual é o problema?
Como publicamos ontem (28), é provável que o WhatsApp seja bloqueado mais uma vez no Brasil em um futuro próximo. Desta vez, é o Ministério Público do Amazonas que se irritou quando o aplicativo se recusou a fornecer dados privados e mensagens de supostos criminosos investigados. O órgão já bloqueou R$ 38 milhões do Facebook por descumprir a ordem judicial, e o próximo passo seria a suspensão do mensageiro em nosso país.
Criminalizar a criptografia é o caminho errado a se seguir
O que está acontecendo no Brasil é a mesma guerra que vemos em outros países, especialmente nos Estados Unidos — a lei tentando confrontar a privacidade e os direitos individuais de cada cidadão no mundo digital. Porém, a experiência internacional já deixou claro que criminalizar a criptografia e estabelecer um estado de vigilância em massa constante (sob o pretexto de manter a nação segura) é o caminho errado a se seguir.
Por mais assustador que ele seja, o programa PRISM, dos EUA, se provou ineficaz. Em um relatório encaminhado à diretoria da Agência Nacional de Segurança (NSA), analistas do próprio órgão atestam que a mineração massiva de dados não estariam dando os resultados esperados, sugerindo uma mudança nas estratégias de monitoramento para reduzir casos de terrorismo.
Resta saber quanto tempo a justiça brasileira vai demorar até perceber que forçar o WhatsApp a abrir informações e “puní-lo” com bloqueios caso o mensageiro se recuse a cooperar não é a forma mais apropriada de agir — e, enquanto isso não acontece, quem continua pagando o pato são os usuários do serviço.
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