Quem acompanha o TecMundo há algum tempo já deve ter percebido o número de matérias que publicamos a respeito do problema do assédio sexual no mercado da tecnologia. Além de, muitas vezes, terem que batalhar mais para entrar e se provar nesse setor, as mulheres acabam se deparando com esse tipo de conduta em empresas de todos os tamanhos, desde startups até gigantes do segmento. Para mostrar a gravidade da situação, o The New York Times fez um artigo bastante extenso sobre as profissionais femininas de tecnologia falando exatamente sobre a cultura do assédio.
Não se trata de reclamações e afirmações sem fundamentos – ou “mimimi”, como insistem em dizer alguns internautas –, mas sim de um padrão que já existe em outro mercado e agora é reproduzido de forma constante nos corredores e salas de reunião do Vale do Silício. Episódios recentes sobre esse tema incluem as acusações que eventualmente levaram à saída de Travis Kalanick do comando da Uber e toda a polêmica em torno de Dave McClure, fundador da 500 Startups com um histórico bastante desagradável de oferecer vantagens profissionais em troca de favores sexuais.
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Travis Kalanick, ex-CEO da Uber
O problema é o quanto disso ocorre fora dos holofotes e acaba colocando as mulheres em uma posição fragilizada dentro da indústria. Diversas da entrevistada relataram ao jornal norte-americano que tudo isso é muito mais comum do que se imagina, ocorre com profissionais de todos os cargos e escalões – incluindo CEOs em busca de investidores para sua empresa – e chega em todo tipo de forma, desde breves cantadas e comentários machistas até propostas claras de sexo no ambiente corporativo.
Por que muitas delas se mantêm em silêncio?
Sendo assim, por que muitas delas escolhem se manter em silêncio e tentam trabalhar com o pouco de dignidade que lhes resta? A resposta é simples: o medo de retaliação. Os agressores, em geral, estão em posição de poder e alertam que falar sobre o caso ou fazer denúncias pode fechar portas no mercado e “não leva a nada”. Além disso, o próprio ambiente em torno desses episódios faz com que as mulheres se sintam inseguras em levar acusações adiante, uma vez que sócios, colegas de trabalho e outras testemunhas costumam ignorar ou fazer pouco caso da situação.
Um cenário assustador
Para Katrina Lake, fundadora e CEO da startup Stitch Fix, as mulheres são uma parte essencial do que faz o Vale do Silício – e boa parte das empresas de tecnologia – funcionar. “É importante expor esse tipo de comportamento que anda vindo à tona nas última semanas. Assim, a comunidade pode reconhecer e resolver esses problemas”, explica a executiva, que foi uma das profissionais a ser assediada diretamente por Justin Caldbeck, que até então era um dos principais nomes do conselho do fundo de investimento Binary Capital.
“Há um desequilíbrio tão massivo de poder [nesse mercado] que as mulheres da indústria muitas vezes acabam se encontrando em situações angustiantes”, afirma a empreendedora Susan Wu. Ao jornal, ela conta que, em 2009, em um evento de tecnologia em Las Vegas, ela foi acariciada no rosto de forma pouco apropriada por um investidor e ex-executivo da Google. Posteriormente, em 2010, Wu foi assediada sexualmente por ninguém menos que Caldbeck. Desde então, ela diz evitá-lo toda vez que o encontra por aí.
Lindsay Meyer, uma das mulheres assediadas por investidores do Vale do Silício
A história contada pela profissional só mostra que a diferença entre os gêneros no setor – já reconhecida por Facebook, Google e outras gigantes da indústria – vai muito além das vagas em desenvolvimento, TI e outros cargos predominantemente ocupados por homens: é uma realidade na hora de empreender. O NYT ofereceu dois insights bem interessantes a respeito disso: em primeiro lugar, a maioria dos capitalistas de risco e investidores são homens; em segundo, as empreendedoras receberam apenas US$ 1,5 bilhão (R$ 4,97 bilhões) em fundos no último ano, enquanto os empreendedores arrecadaram US$ 58,2 bilhões (R$ 192,9 bilhões) no mesmo período.
O que dá para especular em cima desses dados – coletados junto ao PitchBook – é que o machismo mais uma vez domina o mercado de tecnologia. Como os investidores homens têm o dinheiro que as pequenas empresas e startups precisam e toda esse cenário de investimento funciona de forma muito particular – e cheio de contratos de confidencialidade –, os empreendedores também homens acabam levando a vantagem na negociação. Some a isso o fato de propostas recusadas de sexo não resultarem em investimentos e você tem em mãos um ambiente completamente tóxico e prejudicial às mulheres.
Um ponto de mudança?
Ligações, apalpadas e beijos são 'armas' dos agressores
Pelo menos mais uma dezena de casos são colocados na mesa ao longo da reportagem do The New York Times, com grande parte delas envolvendo investidores aproveitando a sua posição de poder no mundo dos negócios para forçar empresárias, profissionais e donas de startups a se submeterem a episódios constrangedores para conseguir manter seus negócios em funcionamento. Mensagens não solicitadas, ligações, apalpadas, beijos e até exigências que as empreendedoras colocassem fotos mais desinibidas em suas apresentações são apenas algumas das “armas” dos agressores.
Com todas essas histórias começando a ver a luz do dia, alguns dos acusados negaram todo o ocorrido, outros pediram desculpa e algumas empresas envolvidas nessas situações prometeram lidar melhor com esse tipo de acontecimento. Resta saber se tudo isso vai fazer com que, em um futuro breve, a indústria da tecnologia seja mais justa e receptiva às profissionais femininas.
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