Jovens de diferentes nacionalidades estão sendo vítimas de tráfico humano e obrigados a trabalhar em golpes online baseados no sudeste asiático, conforme denúncias de várias entidades. Pelo menos dois brasileiros foram aliciado no segundo semestre de 2024. atraídos por falsas ofertas de emprego com salários de até US$ 2.000, o equivalente a mais de R$ 12 mil pela cotação atual.
Um dos casos é o do paulistano Luckas Viana dos Santos, preso em um centro de cibercrimes na divisa entre a Tailândia e Mianmar desde outubro. Procurando emprego após ser demitido de uma plataforma de apostas nas Filipinas, ele se candidatou para trabalhar em apps de relacionamento na cidade tailandesa de Mae Sot.
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Mas enquanto era conduzido à suposta sede da empresa, em uma longa viagem de carro, notou algo errado e avisou a um amigo, via WhatsApp, suspeitando que estava sendo vítima de tráfico. Os dois continuaram conversando nos dias seguintes, porém Luckas dava respostas evasivas e disse que precisaria entregar o celular.
Antes de ficar sem o telefone, o brasileiro conseguiu falar com a mãe, Cleide Viana, em algumas ocasiões. No último contato feito, no dia 8 de dezembro, o rapaz de 31 anos contou que os criminosos pediram cerca de R$ 120 mil para libertá-lo. Desde então, eles não se comunicaram mais, como relata O Globo.
Propostas semelhantes
O também paulistano, Phelipe de Moura Ferreira, foi atraído por propostas semelhantes para trabalhar na Tailândia, na área de tecnologia, em novembro. Acreditando na oferta tentadora, o jovem se tornou mais uma vítima do tráfico humano e acabou no mesmo local em que Luckas está, segundo o UOL.
Dado como desaparecido desde que foi obrigado a trabalhar com golpes online em Mianmar, ele conseguiu entrar em contato com familiares em dezembro, por meio das redes sociais. Nas conversas, o jovem de 26 anos disse que os chefes do esquema são violentos e punem as pessoas mantidas em cárcere se elas demonstrarem tristeza.
Phelipe também não descarta que o esquema envolva a venda de órgãos e acredita que alguns dos aliciados serão vendidos, após os criminosos tirarem várias fotos deles. Além disso, afirmou ter recebido ameaças de morte e citou até a possibilidade de tirar a própria vida, diante das torturas sofridas, deixando a família preocupada.
Nas mensagens, ele forneceu detalhes sobre Luckas, comentando que o outro brasileiro tem hematomas e dificuldade para andar, pois foi agredido após seus pedidos de socorro terem sido descobertos pelos criminosos, que seriam chineses. Phelipe disse, ainda, que os dois foram proibidos de se comunicar.
Trabalho insalubre e ameaças
Assim como os dois brasileiros vítimas do tráfico de humanos no sudeste asiático, jovens de outros países são atraídos por falsas ofertas de emprego, geralmente na área de tecnologia, com salários acima da média e outros benefícios. Elas são divulgadas no Telegram, principalmente, mas também podem aparecer no Facebook e outras plataformas.
Uma das pessoas enganadas pelos criminosos é Ravi (nome fictício), que também foi parar em um centro de cibercrime em Mianmar. Em entrevista à BBC, ele deu detalhes de como funcionam esse lugares e do tratamento recebido.
Levado para Mae Sot por homens armados, após ser enganado em uma falsa entrevista de emprego, o jovem do Sri Lanka e os demais detidos eram obrigados a trabalhar 22 horas por dia, atuando em diferentes tipos de golpes e fraudes, tendo apenas uma folga por mês. Quem descumprisse as ordens era severamente punido.
Recusando-se a participar do esquema quando chegou, ele passou 16 dias em uma cela, recebendo apenas água misturada com pontas de cigarro e cinzas. Ele também conta que foi torturado com choques elétricos e ameaçado de estupro, chegando a temer pela própria vida, até concordar em trabalhar.
De acordo com o homem de 24 anos, o acampamento no meio da selva se parece com uma prisão, sendo cercado por muros altos e arames farpados e contando com guardas armados que vigiam o local 24 horas por dia. Quando esteve lá, no ano passado, havia cerca de 40 pessoas aprisionadas, entre homens e mulheres de várias nacionalidades.
Após quase um ano trabalhando para os criminosos, supostamente chineses, Ravi pediu aos chefes para visitar a mãe, que estava doente. A vítima precisou pagar um resgate de US$ 2.650 (R$ 16,1 mil) para ser liberada, obrigando os pais a fazer um empréstimo que ainda não foi quitado.
Quais golpes são aplicados?
De acordo com Ravi, os golpes românticos são o principal método de extorsão da indústria do cibercrime do sudeste asiático. Nesse tipo de ação, os operadores criam perfis falsos para vasculhar as redes sociais em busca de vítimas como homens ricos, pessoas solitárias e usuários de apps de relacionamento.
Após trocar mensagens que podem incluir fotos íntimas de mulheres e homens sequestrados no acampamento, os golpistas ganham a confiança dos alvos e iniciam a exploração financeira. Os autores solicitam transferências constantemente, pedindo ajuda para algum tipo de emergência.
Eles também podem persuadir as vítimas a investir grandes quantias de dinheiro em plataformas falsas que supostamente trazem retornos altos. Se a pessoa transfere US$ 100 mil, por exemplo, os golpistas devolvem US$ 50 mil, afirmando que é o lucro, dando a impressão de que ela tem US$ 150 mil quando na verdade ficou sem US$ 50 mil, explicou o cingalês.
Há, ainda, outros tipos de golpes financeiros praticados por essas centrais do cibercrime, incluindo a divulgação de anúncios falsos em plataformas da Meta e no Google. Campanhas maliciosas relacionadas a criptomoedas são outro método bastante utilizado, como relata a Newsweek.
Dados da Organização das Nações Unidas (ONU) indicam que pelo menos 120 mil pessoas foram forçadas a trabalhar nas centrais fraudulentas de Mianmar, em 2023. A maioria desse grupo é formada por homens do continente asiático, mas também há muitos cidadãos da África.
Com essa enorme quantidade de mão de obra traficada, os grupos que lideram essas centrais faturaram mais de US$ 43 bilhões nos últimos anos, o equivalente a R$ 262 bilhões pela cotação do dia, em locais como Camboja, Tailândia e Mianmar. Os dados são do Instituto pela Paz dos Estados Unidos (USIP).
O que dizem as autoridades?
Familiares dos brasileiros forçados a trabalhar com golpes online em Mianmar relatam ter procurado o governo federal em busca de ajuda para trazê-los de volta, com a mãe de Luckas chegando a escrever uma carta para o presidente Lula contando o caso. Porém, eles afirmam que as respostas das autoridades são apenas protocolares.
O Ministério das Relações Exteriores disse que está acompanhando os casos por meio das embaixadas do Brasil na Tailândia e em Mianmar. Além disso, informa ter acionado as autoridades locais e repassado as informações à Interpol. O órgão ressalta que as embaixadas não podem agir por conta própria, e ações de busca e resgate são de responsabilidade das polícias locais.
Em 2022, o Itamaraty passou a alertar aos brasileiros em viagem à região sobre as ofertas falsas de emprego e os riscos que elas representam, inclusive mencionando o trabalho em condições análogas à escravidão na operação de golpes online.
A organização sem fins lucrativos Council on Foreign Relations (CFR) afirma que a proliferação de centrais de operação de golpes cibernéticos no sudeste asiático é facilitada pela guerra civil de Mianmar e por instabilidades políticas em países próximos. Em alguns locais, há suspeitas de envolvimento de autoridades nos grupos que lideram o esquema.
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