Vanitas, no latim, se refere a vaidade e futilidade. Um traço comum entre cibercriminosos, visto a vítima sem rosto, que supera todas as travas sociais e empáticas que o apontar de um cano entregaria.
O TecMundo conversou com o Delegado de Polícia Jaime Pimentel sobre os massacres em escolas brasileiras. Ele afirmou de maneira categórica que o perfil de autores está intrinsecamente ligado à sua imagem pública e como ele será visto e lembrado por pares.
O trajeto padrão seria esse: nichos criminosos – e nem tanto deep web, estamos ainda na surface – que envolvem Discord, Telegram, WhatsApp, Facebook, Twitter e fóruns, com discursos misóginos, religiosos e extremistas acabam por fazer o trabalho de inclusão em jovens passando por algum tipo de vulnerabilidade.
Dr. Jaime Pimentel foi um dos responsáveis pela resolução do Caso de Suzano (SP)
Ataques violentos contra mulheres começam a ser chamados de “Atos Santos” entre eles e toda essa imagem construída culmina em um jovem pronto para acometer uma atrocidade em nome de ideias tortas. Óbvio: resumir os massacres apenas em um ponto seria ingênuo - mas isso não é uma análise aprofundada.
O Dr. Jaime Pimentel foi um dos responsáveis pela resolução do Caso de Suzano (SP). O Massacre de Suzano aconteceu em 13 de março de 2019 e, nele, dois ex-alunos mataram cinco estudantes, duas funcionárias da escola e o tio de um deles. Por fim, um dos atiradores matou o comparsa e cometeu suicídio.
Por conta do trabalho de Pimentel e equipe, a Polícia Civil conseguiu descobrir todo o trajeto online e “real” dos criminosos.
Agora você vai ouvir, ou ler, um especialista – para ouvir e assistir, há um vídeo ao final da matéria.
TecMundo Entrevista
TecMundo: Há um aumento nos casos?
Delegado Jaime Pimentel: “é com tristeza que a gente pode afirmar que, sim, tem se tornado o que nós podemos popularizar de uma questão quase que endêmica na sociedade. Eu creio que essa cultura disseminada do ódio vem transformando as novas gerações. Infelizmente, isso vem acontecendo associado a outros fatores sociais, como, por exemplo, a questões de bullying. Mas nós temos uma crescente na qual o Brasil, principalmente, hoje, é reconhecido, infelizmente, mundialmente, apesar de não ter casos de grande gravidade”.
TecMundo: Qual é o perfil do criminoso?
Delegado Jaime Pimentel: “É algo até que… Eu venho me debruçando. Na última semana, por exemplo, aqui na minha delegacia eu pude perceber e aplicar em um caso concreto o que a teoria do Direito chama de culpabilidade social. O meio social, a educação, questões voltadas à estado psicológico… Principalmente aqueles afetos à utilização de droga, são muito latentes nesses cenários de perfil criminoso. Em específico, nós termos percebido que esses agentes (…) possuem um autoconhecimento nas redes sociais. E eu tou dizendo, aqui, na internet tanto em aspectos de deep web quanto de dark web e dentro disso eles conseguem, ali, uma autopromoção. Então, há neles uma demanda de vaidade, e um contexto muito próximo de ter sofrido bullying – e, dentro disso, pegarem essa revolta, propagarem ideias de extremistas e poderem, assim, cometer essas atrocidades sociais”.
TecMundo: O que eles buscam com os ataques?
Delegado Jaime Pimentel: “Vamos trabalhar com esse contexto… O que eles buscam é de fato o reconhecimento mundial – e isso é muito fácil de acontecer porque as redes sociais… A internet ajuda muito. E a mídia, adotando esse tipo de postura, é uma postura muito positiva, tanto que nós – agora falando como policiais – não estamos mais tratando dos casos com o nome de um líder de facção ou de um agente que praticou determinado crime porque essas pessoas podem influenciar negativamente outras pessoas. Seriam exemplos negativos, mas que outras pessoas que se encontram às vezes no mesmo estado de espírito acabam querendo consagrá-los como verdadeiros mártires”.
TecMundo: A internet tem um papel importante na formação desse criminoso?
Delegado Jaime Pimentel: “A internet possui um papel de extrema importância e não podemos mais nos furtar dela, certo? Ela é uma realidade, e é uma realidade, inclusive, social, que tem as suas regulamentações estabelecidas, felizmente, no nosso país. E felizmente, que eu digo, porque são regulamentações democráticas, como o Marco Civil da Internet, como a Lei de Acesso à Informação, a Lei Geral de Proteção de Dados, que são marcos importantes comparados a outros países. Por exemplo, nos Estados Unidos, no qual nós tivemos lá a Lei Patriota… Na China, determinados aplicativos não podem ser desempenhados, desenvolvidos… Há de fato um controle enorme ali. Mas, por outro lado, certamente ela auxilia o criminoso ou quem está propenso à prática a ter informações suficientes e até mesmo encontrar partícipes morais para que a sua ideia vá em frente”.
TecMundo: Como tratar? Existe prevenção?
Delegado Jaime Pimentel: “A gente tem que tratar como política pública. Então, o primeiro passo não é tratar como algo de política individual de autopromoção de autoridades, mas sim como política pública do nosso país. Por que eu quero dizer isso? Nós temos, comparativamente aos Estados Unidos… Nós temos a legislação mais protetiva e melhor fixada sobre proteção à criança e ao adolescente, que é o Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990. Foi totalmente fomentado pela Convenção Internacional dos Direitos da Criança e do Adolescente de 1989, onde nós tivemos – mundialmente – uma das convenções mais aceitas mundialmente, da qual infelizmente os Estados Unidos não faz parte, não aderiu… Mas isso é um caso à parte. Todavia, o que eu quero trazer é que nós estamos em conexão direta com as convenções internacionais, bem como a nossa legislação está amparada para esse contexto de vulnerabilidade”.
“Por que eu estou falando da criança e do adolescente? Porque eles são, de fato, vítimas reais e em potencial das redes sociais. Principalmente dessas más influências, certo? Então, por isso eu quis trazer e abrir esse parâmetro para esse caso. Mas, assim, a questão de protocolos. O Estatuto da Criança e do Adolescente possui um protocolo muito bom, cara, e específico, que é justamente a rede de proteção e acolhimento que se dá ao adolescente e à criança, entende? E, dentro desse protocolo de rede de proteção, nós temos, ali, agentes que devem atuar – dentro desse contexto que eu estava ali chamando a atenção, de políticas públicas – de maneira proativa. Então, nós temos, ali, o Conselho Tutelar, a Assistência Social… Nós temos questões voltadas ao Ministério Público… Que são totalmente atores diretos dessa rede de proteção, certo? Eu até tenho uma posição muito particular, que a polícia deve ser acionada em último caso para essa rede de proteção, até porque a cultura do estado policialesco, a polícia ativa, não é muito bem-vinda. Porque assusta, Felipe, assusta. Até hoje… Eu tenho três filhos… Até hoje eles perguntam para mim o que é ser policial. Ficam assustados, às vezes, de eu sair para trabalhar. Então, assim, assusta o cenário do policial”.
Delegado Jaime Pimentel
TecMundo: Então, como agir com tudo isso em jogo?
Delegado Jaime Pimentel: “Nós temos essa rede de proteção, e eu creio que o principal ponto de um protocolo é aquilo que está estabelecido no ECA. Ou seja, identificar o problema na escola… Esse problema deve ser reportado ao Conselho Tutelar, à Assistência Social… Direcionado para o Ministério Público, que é o grande legitimado nessa atuação da rede de proteção… E, dentro disso, adotar políticas, de fato, de chamarem os pais, conscientizar. Não aderir àquela postura na qual a repressão, de advertência, suspensão e até mesmo de expulsão do aluno da escola… Tentar entender o que está acontecendo com aquele aluno. Tentar chamar para uma participação, de fato, do que está acontecendo com aquele aluno. Porque muitas vezes ele está ali voltado num estado de vulnerabilidade porque está sofrendo bullying, certo, Felipe? E o que hoje as redes sociais mais ensinam… Se você ligar num canal do YouTube hoje para adolescentes, o que eles mais ensinam é como você trollar… Hoje as crianças têm falado trollar – na nossa época, pelo menos na minha época, eu estou com 42 anos, nem existia essa palavra “trollar”. Era sacanear, era fazer uma brincadeira. Agora é trollar. Então, eu penso que o primeiro protocolo de atuação é esse. Segurança pública em último lugar, tá certo? O Estado chama a política pública, se responsabilizando, de fato, por essa rede de proteção e acolhimento”.
TecMundo: Quando a polícia civil atua?
Delegado Jaime Pimentel: “A Polícia Civil, chamada também de polícia judiciária, atua quando o fato já aconteceu. Então, assim… Nós temos, de fato, um departamento de inteligência que atua com protocolos de inteligência e informação, certo, trazendo dados nos quais a gente nos alimenta para uma eventual prevenção. Mas a nossa função direta, primordial e ordinária é atuação como repressão, ou seja, o fato aconteceu, é apresentado e nós vamos investigar. A linha de investigação depende muito da discricionariedade do presidente da investigação, que é o delegado de polícia. Na hora, ele vai ter que sentir o caso concreto. Então, quando aconteceu o caso de Suzano, que nós fomos acionados, inclusive, por agências americanas para saber como nós atuamos, foi o caso concreto que foi nos direcionando para as linhas de investigação, certo? Então, trazer um protocolo de atuação numa lógica? Não existe. Se alguém trouxer isso, pode até ser que descreva algo que possa ser pré-estabelecido, mas isso pode mudar muito de cenário porque o caso concreto às vezes vai trazer essas questões de mudança e alteração. Então, a discricionariedade do delegado na utilização de mecanismos é muito importante”.
TecMundo: A Polícia Civil possui aparato tecnológico suficiente?
Delegado Jaime Pimentel: “Hoje, a Polícia Civil do Estado de São Paulo – e eu estou falando isso não porque eu sou um delegado de polícia, mas falando como cidadão… Hoje a Polícia Civil do Estado de São Paulo está muito bem equipada de softwares para análise de dados de qualquer aparelho, certo? Qualquer aparelho – não estou só falando, aqui, de computadores, telefones, mas qualquer aparelho que tenha a coleta de dados, tá certo? Dados telemáticos, inclusive, vamos dizer assim. Esses softwares nos ajudaram muito no caso da escola Raul Brasil, no massacre de Suzano. Eu digo que eles ajudaram muito porque eles traçaram um norte para nossas linhas de investigação. Nós conseguimos arrecadar os celulares dos dois agentes… Nesses celulares nós conseguimos uma resposta direta para um terceiro agente, que se encontrava vivo e que participou, também, do planejamento do caso do massacre (...) A gente só conseguiu fazer esse levantamento porque nós tivemos acesso aos celulares e fizemos a análise dos dados desses celulares. E foi uma das respostas mais efetivas da minha profissão – e eu creio que da Polícia Civil de todos os estados…Nós pudemos dar em três meses toda a cadeia causal – desde quando eles começaram o planejamento, como foi feito esse planejamento, qual rede social eles utilizaram, como eles navegaram na deep web, em qual fórum da deep web eles estavam fixando conversas e sendo incentivados, bem como quais foram os locais em que eles praticavam tiro, praticavam arremesso de flecha… Onde eles compraram toda a indumentária que eles utilizaram no dia dos fatos… Coturno, balaclava, roupa… Como também onde eles foram buscar o revólver utilizado, as munições… Com quem foi que comprou… Então, nós conseguimos traçar todo esse contexto, provar isso documentalmente nessa investigação”.
TecMundo: E sobre investimento? Temos o suficiente ou falta?
Delegado Jaime Pimentel: “Eu creio que seja um caminho sem volta o investimento em cibersegurança. Isso eu não vou falar só para a questão das polícias, eu vou falar no contexto geral, não só de empresas privadas, mas também como pessoa física. Cibersegurança, hoje, é como se você andasse com carro blindado na rua. Um dos maiores contextos que você quer evitar, a prática de um roubo, é você estar dentro de um carro blindado, de preferência com insulfilm. Então, você não vai ter fator surpresa e vai estar muito bem protegido. Evidentemente que isso tem um custo. Evidentemente que a grande parcela da nossa sociedade não vai ter dinheiro para esse custo. Mas o Estado pode muito bem equipar e continuar equipando os órgãos públicos para que nós possamos acolher essa parcela da sociedade que não tem esse investimento para fazer em cibersegurança. Então, é um caminho sem volta, Felipe.
TecMundo: E isso vem mudando ao longo do tempo...
Delegado Jaime Pimentel: “Vou te dar um dado importantíssimo. Quatro anos atrás, antes do atentado da escola Raul Brasil, que foi em 2019, nós não sabíamos como navegar e o que eram a deep web e a dark web. Nós tínhamos visto em teoria, no estudo de casos e também em aulas na Academia de Polícia, mas nós não tínhamos ainda isso na prática. Então, nós tivemos, ali, uma questão de um desafio muito grande para que nós pudéssemos, de fato, alinhar perspectivas de como nós íamos investigar nesses mecanismos de deep web e dark web. E isso fomentou ainda outras coisas, assim. Nós estamos falando, aqui, de investigação, mas a investigação tem que andar lado a lado com o sistema de justiça criminal. E não só a polícia tem que fazer investimentos e ter interesse nisso, mas também o Poder Judiciário e o Ministério Público também devem fazer esse investimento, devem capacitar os juízes, os promotores, para isso. E também os advogados vão ter que se adaptar a isso porque eles vão ter que utilizar, também, mecanismos de defesa com relação a isso. Então, é um cenário no qual todo mundo tem que se capacitar – e esse aspecto de capacidade técnica se faz necessário porque, quando o delegado vem e representa.
TecMundo: Temos exemplos disso?
Delegado Jaime Pimentel: “Por exemplo, representa para que nós tenhamos a geolocalização de certo aparelho móvel durante a prática daquele crime, o juiz tem que entender que nós não estamos ali representando por uma interceptação telefônica. E acredite: muitos levam para esse lado. Que o simples fato de nós pedirmos, representarmos para a coleta de dados de geolocalização do aparelho móvel na data de ocorrência é interpretado como coleta de… Interceptação telefônica. E a legislação de interceptação telefônica é muito rígida, com relatórios, enfim… “N” eventos que a gente tem que fazer. Então, temos que andar lado a lado e é um caminho sem volta o investimento tecnológico, mas, principalmente, de formação profissional dos agentes que atuam no sistema de justiça criminal”.
TecMundo: A Lei no Brasil é branda ou não sobre esses casos?
Delegado Jaime Pimentel: “Eu creio que a Lei, atualmente, é razoável. Tá? Ela é razoável. O que tem que ser entendido… Eu penso assim… É uma efetividade na aplicação da Lei. Hoje, o Brasil… Isso é uma posição muito particular minha, mas eu vejo que hoje o Brasil está sofrendo num cenário no qual nós temos pelo menos quatro tipos de justiça: a justiça de primeira instância, onde juízes de primeiro grau adotam posturas de decisão; depois nós temos grau recursal, que são os tribunais inferiores nos quais se estabelece uma revisão dessa decisão; aí nós temos uma terceira justiça, que é o Superior Tribunal de Justiça, que vem para analisar a aplicação da legislação; e nós temos a quarta justiça, que é o Supremo Tribunal Federal, que vem para dar todo um contexto dentro da aplicação dessa lei. Cada um desses atores do poder judiciário fala línguas que às vezes não combinam porque dão uma interpretação ao fato e à lei aplicada ao fato como querem. Então, um juiz de primeiro grau entende que a condução coercitiva pode ser feita diretamente pelo delegado de polícia. Vem o Tribunal de Justiça e fala, assim, que não, que não dá para ser feita, que tem de haver ali uma representação judicial. Vem o STJ e reverenda isso. Aí vem o STF e fala “não, não… Dá para fazer condução coercitiva”. Ou então que não dá para fazer a condução coercitiva. Então, a gente tem uma… O que a gente chama hoje de instabilidade jurídica muito grande – e esse cenário deprecia não só o sentimento de segurança que a sociedade busca, mas principalmente desmotiva muito o profissional e o aplicador do direito, como nós. A gente não vê a justiça no caso concreto, e, quando a vemos, a gente às vezes fica se perguntando como nós devemos agir. Então, essa insegurança jurídica nos tem atingido muito, cara, muito mesmo. Eu acho que o principal protocolo de qualquer lei não é a lei em si, em abstrato, mas é a lei em concreto”.
TecMundo: Qual seria sua mensagem para pais e mães que nos acompanham?
Delegado Jaime Pimentel: Minha mensagem vai para todos os pais porque aqui, Felipe, eu queria voltar aos adolescentes e às crianças. Então: pais, exerçam o papel de pais. Fiscalizem os seus filhos. Saibam como estão utilizando as redes sociais. Saibam o que eles estão assistindo na televisão. Participem ativamente da vida dos seus filhos. A maior autoridade que existe em cima dos seus filhos é feita por vocês. Não é pelo delegado de polícia, não é pelo promotor, não é pelo juiz, não é pelo professor na escola, Felipe. Não é por eles. É pelos pais. Nós somos meros atores que vão auxiliar quando o problema já está estabelecido, mas quem faz o controle prévio e identifica isso são os pais. Hoje, o puxão de orelha que eu posso dar, vamos dizer assim, é nos pais para esse nosso bate-papo, para este nosso caso de eventualidades de massacres ou de cyberbullying, enfim. Pais, se preocupem com os seus filhos. Essa geração, os nossos filhos, os nossos netos precisam de uma atuação ativa dos pais. Essa é a mensagem que eu quero deixar”.
* entrevista transcrita por Reinaldo Zaruvni
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