A pandemia provocou intensas mudanças nas relações de trabalho, a começar pela ressignificação do antes quase sempre mal interpretado trabalho remoto. Antes de 2020, na maior parte das organizações, um dia de home office dificilmente era encarado como trabalho de verdade, mas, sim, como um artifício utilizado por colaboradores menos engajados ou com problemas pessoais para "pegar mais leve".
Ocorre que, se é verdade que hoje o trabalho remoto deixou de ser um pecado, ainda há muita desconfiança e desafios que motivam empregadores a recorrerem à tecnologia para garantir que o comportamento de seus empregados não se desvie do desejado.
Há, de fato, preocupações legítimas, relacionadas não somente ao desempenho dos empregados, mas também à garantia de segurança das informações que utilizam em seus afazeres. Nesse ponto, o distanciamento do local de trabalho, controlado pelo empregador, causa justificáveis calafrios.
Como solução, surgem tecnologias cada vez mais engenhosas que possibilitam o monitoramento remoto de atividades, que podem contar com registro de teclas e movimentos de mouse, capturas de tela, ativação periódica de microfones e câmeras, entre outros. Por meio de inteligência artificial, ainda, é possível analisar os dados coletados e gerar escores de risco e de produtividade, a orientar decisões que impactam a carreira dos empregados monitorados.
Há casos de tecnologias que prometem, inclusive, avaliar o nível de felicidade ou bem-estar dos empregados, permitindo que o empregador fique alerta e, por exemplo, sugira férias a um empregador infeliz.
Se você ficou assustado, não custa lembrar que a tecnologia em si não é malévola. Há formas e formas de utilizá-la e é justamente esse uso que nos trará a resposta, se estamos diante de uma forma adequada (e justa) de utilização de tecnologia ou não.
No caso em questão, os riscos para os quais devemos chamar atenção, resumidamente, são:
Coleta excessiva de dados
As tecnologias em questão podem aumentar significativamente a coleta de dados por parte dos empregadores. Devemos lembrar que os empregados terão muitas vezes, como palco do ambiente de monitoramento, sua residência, o local mais privado possível que um indivíduo pode ocupar. Assim, todo cuidado é pouco.
Fonte: Shutterstock
Ao adotar tais tecnologias, caberá refletir sobre as funcionalidades, para examinar minuciosamente quais fazem sentido empregar, visando a coleta do mínimo possível de dados em vista dos objetivos traçados (apenas para dar um exemplo, não fará sentido ao empregador contar com módulo de reconhecimento facial, caso não se tenha por propósito realizar a verificação da identidade do usuário do dispositivo).
Avaliações imprecisas ou injustas
Muitas das tecnologias que realizam avaliações podem ser bastante novas e, portanto, estarem sujeitas à índices consideráveis de falsos positivos, gerando resultados incongruentes e imprecisos. Ademais, é preciso entender exatamente como tais avaliações são geradas, para que decisões injustas não sejam tomadas. Por exemplo, o tempo que um empregado gasta orientando um colega pode escapar ao monitoramento e não ser registrado como tempo produtivo; isso não significa que o empregado está ocioso. Entender (e considerar) esses pontos que podem estar fora do campo de visão da tecnologia é crucial.
Implicações emocionais
Cabe ao empregador avaliar os eventuais impactos negativos advindos do monitoramento. Isso porque os empregados deverão ser informados de maneira transparente acerca do monitoramento realizado e é sabido que as pessoas tendem a se comportar de forma diferente quando cientes de que estão sendo observadas. De fato, o monitoramento mexe com a autonomia individual e pode acabar gerando estado de alerta, aumentando índices de estresse e insatisfação. Assim, cabe ao empregador sopesar os benefícios da tecnologia com os eventuais impactos sobre o estado emocional dos empregados.
É natural que organizações busquem formas seguras e inteligentes de organizar o trabalho de seus colaboradores. Contudo, em se tratando de tecnologias inovadoras, vale a pena tomar um tempo para refletir sobre seus riscos e impactos, para que se possa chegar a melhor forma de uso, com equilíbrio, e, assim, se preserve os interesses da organização, mas também dos indivíduos que dela fazem parte.
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Paulo Vidigal, colunista do TecMundo, é sócio do escritório Prado Vidigal, especializado em Direito Digital, Privacidade e Proteção de Dados, certificado pela International Association of Privacy Professionals (CIPP/E), pós-graduado em MBA em Direito Eletrônico pela Escola Paulista de Direito, com extensão em Privacidade e Proteção de Dados pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e em Privacy by Design pela Ryerson University.
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