Festa da Selma: como extremistas organizaram golpe pelas redes sociais

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Imagem: Andressa Anholete/Getty Images

O Brasil e o mundo assistiram chocados às imagens protagonizadas por extremistas políticos no domingo (08) em Brasília. Em uma clara tentativa de solapar a democracia, milhares de vândalos invadiram e destruíram parte do Congresso Nacional, Supremo Tribunal Federal (STF) e Palácio do Planalto.

A dúvida que ficou é: como um movimento daquele passou despercebido pelas autoridades brasileiras? Passadas algumas horas, o que já sabemos é que aquelas pessoas não estavam somente no “submundo” da internet, mas sobretudo se organizaram pelas redes sociais.

De acordo com a Agência Pública, há vários dias os golpistas estavam se referindo aos atos que ocorreriam ontem como “Festa da Selma”. No caso, a palavra “Selma” é uma referência à “Selva”, termo utilizado como cumprimento em algumas divisões do Exército do Brasil. A palavra está presente até na Oração do Guerreiro da Selva, cantada pelo Comando Militar da Amazônia.

Canção do Soldado da AmazôniaCanção do Soldado da Amazônia.

Na última das tradicionais lives realizadas pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), há um grito "selva" nos segundos finais da transmissão, possivelmente dito pelo próprio ex-comandante do Executivo Nacional.

Como os terroristas que protagonizaram as cenas ontem em Brasília são apoiadores de Bolsonaro, muitos deles chegaram a cogitar que os dizeres na live poderiam significar que o político estaria tramando alguma movimentação.

E também como grande parte dos bolsonaristas têm pedido intervenção militar, a terminologia "selva", usada pelo Exército, tem sido um dos termos utilizados para se referir a um hipotético golpe.

As publicações golpistas

Vasculhando as redes sociais, não é difícil encontrar centenas de referências ao ato extremista apelidado de "Festa da Selma". Pela busca do Twitter é bastante simples achar publicações de radicais convidando as outras para o ato em Brasília pelo menos a partir de 5 de janeiro (quinta-feira da semana passada).

“Os patriotas da minha cidade em Cuiabá-MT estão indo para a festa da SELMA no centro do Brasil!”, diz uma usuária identificada como Walkyria Taques.

Outras várias postagens foram realizadas ontem mesmo, inclusive. Muita gente falou sobre o termo e postou vídeos e fotos de como estava o ambiente na Praça dos Três Poderes. “Hoje! Festa da Selma no congresso!”, diz outro post com uma foto mostrando os invasores. Confira, abaixo, alguns dos posts que ainda estão no ar sobre o tema:

Apesar de a facilidade não ser a mesma, por conta das configurações das redes, encontrar comentários e incitações a tal Festa da Selma no Facebook e Telegram não é um grande desafio.

No caso do Telegram, aplicativo que já foi bloqueado no Brasil, um grupo com 4,6 mil pessoas inscritas repassa notícias sobre a tentativa de golpe de ontem. Além de teorias da conspiração, as pessoas repercutem os atos de vandalismo. Um outro grupo público no Telegram com mais de 16 mil seguidores, de pessoas que se denominam cristãs, teve uma espécie de "narração" em tempo real das ações na Praça dos Três Poderes. Com comentários abertos, ambos os grupos contam com pessoas dizendo que a quebradeira em Brasília foi resultado de “esquerdistas infiltrados”.

No caso do Facebook, a pesquisa do termo “#festadaselma” retorna resultados de pelo menos 6 de janeiro com indivíduos dizendo que já estavam no local ou que estavam se encaminhando para Brasília.

Confira, abaixo, uma galeria com capturas de telas com referências à Festa da Selma, teorias da conspiração e publicações que pedem um Golpe Militar:

Radicalização e redes sociais

Bruna Della Torre, pós-doutoranda do departamento de Sociologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que é pesquisadora da agitação de extrema-direita, argumenta ao TecMundo que a radicalização de uma pessoa depende de vários fatores. Contudo, em uma era hiperconectada, as redes sociais acabaram se tornando ferramentas que facilitam esse processo.

Ela diz que as plataformas digitais podem substituir “partidos de massas na organização do fascismo”, que nesse caso seria a extrema-direita que não aceitou o resultado das eleições. A pesquisadora salienta que o episódio do último domingo escancara como o extremismo político tem se dissipado pelas redes.

“O que estamos vivenciando é de fato uma experiência sem precedentes na história da propaganda política (direta ou indireta) e de seus efeitos. A gente viu com o escândalo da Cambridge Analytica, como — em colaboração com essas redes — foram de fato conduzidas experiências político-digitais com vistas a produzir um determinado comportamento eleitoral. A gente viu nos Estados Unidos com o Capitólio e no Brasil ontem como esse comportamento produzido pelas redes foi muito para além da esfera eleitoral”, ela defende.

Brasília

Della Torre comenta que antes da era das mídias digitais, os agitadores que tinham pensamentos antidemocráticos precisavam espalhar suas ideias em locais como escolas, igrejas, rádios, fábricas etc. Por causa da necessidade da presença física, ou pelo menos para mandar alguém ir até esses locais, o alcance da mensagem era mais restrito. Isso mudou desde o Orkut, a primeira rede social massiva nos moldes que conhecemos hoje.

Outro aspecto que nos ajuda a entender como o radicalismo explode com as redes são os algoritmos. Nada mais do que um conjunto de operações que mantém uma plataforma digital funcionando, os algoritmos são desenhados para nos deixar presos em uma bolha onde nossas visões são reafirmadas a todo o momento.

“O algoritmo visa manter a nossa atenção. Por isso, ele vai produzir um efeito circular no sentido de oferecer a nós mais conteúdos similares ao que já consumimos — facilitando a formação de circuitos fechados. As redes sociais acabam favorecendo a extrema-direita devido à forma cultural que impõem; tanto ao reduzir o mundo ao binarismo do “like/dislike” e quanto ao equiparar todas as posições políticas, inclusive aquelas antidemocráticas e golpistas, como se estas últimas fossem uma mercadoria qualquer no mercado de opiniões”, afirma a pesquisadora.

Brasília

Com o diagnóstico feito, entra uma difícil parte que é pensar como frear a disseminação de conteúdos antidemocráticos. Neste contexto, são várias as regulações que caminham em regiões como a União Europeia.

Nesse sentido, a pesquisadora diz que a suspensão de contas que disseminam ódio e a desmonetização dos canais podem ser ações mais práticas para serem realizadas. Do outro lado, ela faz questão de ressaltar que o caminho ainda é longo e que o debate sobre o assunto é urgente.

Vieses cognitivos

Falando com o TecMundo, Uriã Fancelli, que escreveu o livro Populismo e Negacionismo e é especialista em Relações Internacionais, afirma que os sinais de que atos como os de ontem ocorreriam já são dados há algum tempo.

“Muita gente subestimou o que estava acontecendo, o que ensina que precisamos prestar mais atenção na história. Nós tivemos carros queimados em Brasília logo após a eleição do presidente Lula, depois uma ameaça de bomba no Aeroporto de Brasília. Nos últimos dias tivemos a chegada de 100 ônibus na Capital Federal. Não era nem preciso da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) para perceber que algo errado aconteceria”, diz Fancelli.

Complementando a análise sobre as redes sociais, Fancelli faz um recorte dizendo que há poucas décadas as pessoas só se informavam por meios oficiais como a imprensa, onde havia um maior filtro sobre as informações. Com a popularização das mídias, praticamente qualquer pessoa pode ter um conteúdo viralizado.

Redes sociais

Neste sentido, o algoritmo (explicado pela pesquisadora Della Torre) utiliza uma espécie de “falha” cerebral para nos mantermos no mesmo estado psicológico. Por causa do chamado "viés confirmatório", nós temos tendência de nos lembrarmos, interpretarmos ou pesquisarmos por informações de maneira a confirmar crenças ou hipóteses iniciais.

“Só que o viés tem um limite. Em uma pessoa que não tem tendências extremistas, quando ela se depara com algo que causa conflito com ideias preconcebidas, ela vai lá e reavalia seus pensamentos. Já o negacionista sente que o ego e autoestima estão ameaçados quando se deparam com algo que confronta suas visões de mundo”, salienta.

Como foi autor de um livro que avaliou esses problemas durante o período de pandemia, Fancelli considera que os governos precisam se atentar para o poder alienador das redes sociais. Ele também faz um alerta para políticos populistas que rejeitam qualquer debate sobre moderação das redes sociais com o discurso de que isso pode "solapar a liberdade de expressão".

Viéses

“A liberdade [de expressão] a gente já tem e está assegurada na Constituição. A partir do momento que usam essa bandeira para fazer coisas prejudiciais como pregar a saída por aí sem máscara em uma pandemia que mata 5 mil pessoas por dia, ou para pregar a invasão de órgãos de governo, essa bandeira não faz mais sentido. A democracia não é linear e a gente fica com medo de casos como ocorreram ontem. Mas estes são momentos para que façamos uma autoanalise e possamos construir um futuro melhor com as ferramentas que temos”, finaliza.

Redes sociais se pronunciam

O TecMundo entrou em contato com as principais redes sociais para falar sobre o assunto. A Meta (holding dona do Facebook, Instagram e WhatsApp) afirmou que já estava fiscalizando as redes sociais desde antes das Eleições de 2022.

"Designamos o Brasil como um local temporário de alto risco e passamos a remover conteúdos que incentivam as pessoas a pegar em armas ou a invadir o Congresso, o Palácio do Planalto e outros prédios públicos. Agora também designamos este ato [o ataque de ontem] como um evento violador, o que significa que removeremos conteúdos que apoiam ou exaltam essas ações”, pontuou a empresa por nota.

A companhia ainda defendeu que continuará acompanhando as plataformas e que removerá “conteúdos que violam nossas políticas”.

Telegram e Twitter, contatados pela reportagem, não responderam até o momento de publicação desta matéria.

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