Por Gustavo Blasco
Nos últimos anos, as criptomoedas têm ganhado atenção crescente como um novo tipo de ativo financeiro e tecnologia disruptiva. Uma questão que frequentemente surge é se as criptomoedas têm o potencial de subjugar as moedas soberanas, inclusive substituindo o dólar como a principal reserva de valor global.
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Em texto recente, publicado ao final de junho deste ano, o Fundo Monetário Internacional (FMI) falou sobre a chegada das moedas digitais de bancos centrais (CBDCs, na sigla em inglês), notando um grande interesse por países da América Latina e do Caribe. Um dos países em destaque no estudo é o Brasil. Segundo o FMI, a CBDC brasileira já avançou para o estágio de ‘prova de conceito’, tendo em vista a tokenização de ativos para facilitar transferências e aumentar a liquidez dos mesmos.
No texto, o FMI aponta vantagens da adoção das moedas digitais, realçando tópicos como inclusão financeira, segurança e transparência, mas demonstra preocupação quando afirma: “ a adoção de criptoativos também apresenta inúmeros desafios e riscos, principalmente para países vulneráveis da ALC (América Latina e Caribe) com histórico de instabilidade macroeconômica, baixa credibilidade institucional, fluxos substanciais de capital, corrupção e extensos setores informais.”
Recuando um pouco mais no tempo, podemos lembrar das declarações da ex-senadora e ex-candidata à presidência dos EUA, Hillary Clinton, que fez um alerta sobre os perigos que as criptomoedas representam para a soberania do dólar norte-americano no sistema financeiro internacional e para a estabilidade política dos estados nacionais.
A declaração foi em 2021 durante o Fórum da Nova Economia; Hillary ainda alertou que nas mãos de pessoas mal-intencionadas, as criptomoedas podem se tornar uma arma perigosa: “Há toda uma nova camada de atividades que podem ser extremamente desestabilizadoras ou, nas mãos erradas ou em alianças com as pessoas erradas, (as criptomoedas) podem ser uma ameaça direta a muitos de nossos Estados-nação e, certamente, aos mercados monetários globais”.
Dois anos antes, em 2019, aqui no Brasil, o ex-diretor de Política Monetária do Banco Central, Aldo Luiz Mendes afirmava que, por não serem emitidas por autoridade central, nem serem controladas ou fiscalizadas, as moedas virtuais têm grande risco reputacional. “O anonimato das moedas dessa natureza traz risco reputacional e dificuldades com relação ao programa de prevenção à lavagem de dinheiro. Não há como rastreá-las, e elas estão sujeitas a ataques cibernéticos. Além disso, elas têm dificuldade de aceitação, porque é um universo pequeno que negocia com isso. Como reserva de valor, elas são extremamente arriscadas”.
Seja nos Estados Unidos, seja no Brasil ou em qualquer parte do mundo, as atenções do sistema financeiro estão hoje voltadas para as moedas digitais, suas múltiplas possibilidades, bem como suas vantagens e riscos inerentes.
Dado este contexto, chegamos ao ponto central do presente texto: alguma criptomoeda será capaz de subjugar as moedas soberanas, inclusive o Dólar, tornar-se a principal reserva de valor do planeta e, assim, eliminar o monopólio do Estado sobre o dinheiro?
Se sim, isto seria um avanço ou retrocesso?
Embora possa parecer bastante estranho e ser algo que provavelmente ainda precise de algumas décadas, para se concretizar, a possibilidade me parece bastante real. É importante lembrar que a supremacia do dólar é muitíssima recente e que o conceito de dinheiro atual pareceria tão ou mais estranho para a sociedade de alguns séculos atrás.
Durante praticamente toda a nossa história a função da moeda foi exercida por algum tipo de commodity (sal e outras especiarias), metais (prata e ouro, principalmente) ou algum "contrato” lastreado nestes dois primeiros, desde as tábuas de argila da Mesopotâmia de milhares de anos atrás, que davam direto ao seu portador a determinadas quantidades de determinadas commodities, chegando ao Dólar lastreado em reservas de ouro, que durou até o ano de 1971.
Em meio as desconfianças e a volatividade do mercado financeiro, as criptomoedas avançam mesmo com um futuro incerto.Fonte: Getty Images
A noção de uma moeda que não é lastreada em nenhum tipo de bem ou produto, sendo apenas e nada mais um crédito (algo no qual se confia, se crê), é, então, bastante nova. Mais novo ainda é o conceito de dinheiro virtual, aquele que transferimos de uma conta bancária a outra, que usamos no pagamento via cartão de débito e o qual não existe no mundo físico. É uma inovação recentíssima em termos históricos, inimaginável para nossos antepassados, mas a qual tratamos com absoluta naturalidade.
Logo, se você acha que a ideia de no futuro alguma criptomoeda totalmente desvinculada de um ente central, sem vínculo algum com qualquer governo, ser considerada nossa principal e mais confiável forma de dinheiro, é algo absurdo, os seus filhos e netos poderão considerá-la totalmente banal e natural.
São dois os principais obstáculos para a concretização desse cenário:
- A alta volatilidade das criptomoedas, que impede que desempenhe a função de reserva confiável e estável de valor;
- Aoposição dos Governos Centrais que dificilmente abrirão mão facilmente do poder de controlar e “imprimir” o dinheiro.
Não há no momento uma sugestão fácil, para a superação dos dois empecilhos supracitados, todavia os benefícios dessa conjuntura futurista parecem óbvios:
- Não haveria mais inflação causada por descontrolada expansão monetária;
- Ao não conseguirem emitir dívida lastreada em moeda própria, governos ao redor do mundo passariam a ter uma capacidade de endividamento menor, exigindo maior disciplina fiscal e consequente diligência ao gastar recursos dos contribuintes;
- Como efeito do menor endividamento estatal, restaria mais dinheiro para financiar a iniciativa privada, geralmente uma melhor alocadora de capital;
- Com uma moeda global eliminar-se-ia guerras cambiais entre países, os quais só teriam uma opção para competir no comércio global: aumento de produtividade;
- Não sendo mais o emissor da moeda e sendo um devedor menos relevante, governos centrais não teriam mais a capacidade de impor taxas mínimas de juros em suas economias, permitindo que estas fossem mais uma variável econômica definida pela oferta e demanda privada (no caso, oferta e demanda por capital), o que leva a um preço muito mais eficiente.
Por enquanto a principal contramedida dos governos, para sufocarem o crescimento de moedas privadas alternativas é a criação das CBDCs, acrônimo em inglês de Moedas Digitais de Banco Central. Estas usam da tecnologia blockchain para replicar algumas das principais inovações das criptomoedas, como facilidade e velocidade de transação, rastreabilidade, transparência e programabilidade.
É uma reação inteligente e com claros benefícios econômicos e sociais; todavia, ao passo que nada mais são do que representações tokenizadas da própria moeda nacional, ainda mantém o monopólio Estatal sobre o dinheiro.
Espero que no futuro a inventividade humana permita a superação dos desafios atuais e que possamos em todo o globo transacionar com apenas uma moeda, de modo instantâneo, seguro, transparente, sem nos sujeitarmos a intervenções do governo em sua oferta ou preço.
O gradual amadurecimento do conceito do dinheiro como crédito foi fundamental para o grande avanço econômico dos últimos séculos, de modo que darmos esse próximo passo evolutivo produzirá ainda mais crescimento e bem-estar ao longo dos séculos vindouros.
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Gustavo Blasco é fundador e CEO do Grupo GCB, holding das fintechs Adiante e PeerBR, e da GCB Investimentos. O executivo é economista, formado pelo Mackenzie e detém as certificações: Certificado Nacional de Profissionais de Investimento (CNPI) e o Certificado de Gestor Anbima (CGA).