Há alguns anos, os brasileiros procuravam no mercado de smartphones por uma categoria popularmente chamada de “bons e baratos”. Modelos principalmente de marcas chinesas eram encontrados por até R$ 1,4 mil e ofereciam uma infinidade de recursos, sendo comparados a tops de linha como Samsung e Apple.
Quem nunca se deparou, por exemplo, com uma “testemunha de Xiaomi”, que era aquela pessoa que evangelizava conhecidos e desconhecidos acerca dos segredos escondidos da empresa de Pequim?
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O fato é que o grupo que era bastante ativo na internet em meados de 2018 e 2019 praticamente se desfez e hoje em dia já não gera mais tanto barulho. E o que será que aconteceu de lá para cá? Será que até mesmo o suprassumo do custo-benefício já não brilha mais tanto os olhos dos consumidores?
usuários de iPhone: a
— breandu (@breandu) October 2, 2019
testemunhas da xiaomi: pic.twitter.com/rlImexuUKt
Meu kit para evangelização Testemunha de Xiaomi acabou de chegar ???????? pic.twitter.com/SXCSAAbDWP
— brunno (@vixeoxe) January 4, 2021
220$, DUZENTOS E VINTE, um cabo original de Iphone, to quase virando testemunha de Xiaomi
— WR (@wilsonricardo_) September 23, 2021
Virei testemunha de Xiaomi e estou amando.
— φ daykson ? (@dayksonn) November 22, 2021
Preços mais salgados
A percepção de que os celulares estão mais caros tem completa base na realidade. Na verdade, assim como praticamente qualquer coisa no Brasil (comida, carro, aluguel, passagens de avião, video games, televisores e etc), os dispositivos registraram um aumento expressivo de preço e estão pesando muito mais no bolso.
De acordo com levantamento da IDC Brasil, o valor médio dos celulares no país aumentou em 58% entre 2018 e 2022. Enquanto o preço médio de um aparelho em 2018 era de R$ 1.189, no ano passado os valores chegaram a R$ 1.887.
Em outro relatório sobre o setor de celulares, a IDC mostrou que os brasileiros compraram menos aparelhos em 2022 na comparação com 2021. A retração do mercado foi de quase 7% no ano passado, sendo que na categoria de entrada (feature phones) houve uma queda de 18,2% nas vendas.
O preço médio de um celular está em quase R$ 1,9 mil atualmente.
Andreia Chopra, analista de Pesquisa e Consultoria de Consumer Devices da IDC Brasil, explica ao TecMundo que os brasileiros têm sentido principalmente o impacto da variação cambial, que é o aspecto mais relevante para o aumento dos preços.
“A cada ano são lançados modelos com especificações mais avançadas que demandam componentes ainda mais sofisticados fabricados no exterior e que têm os custos de importação e produção diretamente relacionados ao dólar”, pontua Andreia.
A especialista também aponta que a alta carga tributária para a produção e venda de celulares e o aumento na taxa de juros também acabaram gerando o custo maior para toda a cadeia.
De 2018 até 2022, a cotação do dólar também aumentou por volta de 60%.
O assistente de logística Arlindo Ferreira dos Santos sentiu na prática os aumentos. Após muita pesquisa, ele comprou recentemente um Redmi Note 11S e contou ao TecMundo que para encontrar um preço razoável foram necessários dois meses acompanhando os valores em sites, como Shopee, AliExpress, Mercado Livre e Amazon.
“Achei bastante diferença de preço dependendo do modelo e de qual site. Cheguei a encontrar esse aparelho que eu comprei até R$ 500 mais caro, o que é um valor bem alto. No final das contas acabei comprando em uma loja física perto de casa porque além de mais em conta, eu poderia levar na hora”, lembra.
Já que os celulares definitivamente não estão baratos e ainda variam bastante, Santos sugere ao consumidor muita pesquisa antes de finalizar a compra.
Cenário econômico global
O especialista em Tecnologia, Inovação e Tendências, Arthur Igreja, comenta em entrevista ao TecMundo sobre outros fatores bastante relevantes que explicam o porquê está cada vez mais difícil achar um celular bom e barato.
Dentre as causas ele cita a inflação global dos últimos anos, que tem acontecido por questões de instabilidade política como a Guerra na Ucrânia e a pandemia de covid-19. O dólar é outro aspecto fundamental, já que lá em 2018 a moeda norte-americana tinha cotação abaixo dos R$ 4 e em 2022 a cotação da moeda quase bateu R$ 6. Igreja ainda elenca os problemas com a cadeia de microprocessadores e um comportamento das próprias empresas.
“Os fabricantes estão percebendo que podem aumentar o preço e o consumidor continua comprando. Smartphone virou algo tão central, indissociável e importante que as pessoas reservam uma parte do orçamento para trocar de aparelho. Do ponto de vista do fabricante, entre cobrar mais caro ou cobrar mais barato, faz sentido cobrar mais caro”, argumenta.
O processo de fabricação de celulares também tem ficado mais caro e complexo.
E se os brasileiros podem ter algum tipo de alento, eles devem saber que no âmbito global há regiões que registraram uma alta ainda maior nos preços. De acordo com o IDC, levando em consideração os valores em dólares, a China teve aumento de 39% nos preços médios dos smartphones entre 2018 e 2022.
Enquanto isso, os Estados Unidos registraram aumento de 27,9% e a Europa 13,2%. No Brasil, a alta em dólares foi de 12%.
Respostas dos consumidores
Mesmo com as coisas ficando mais caras, as pessoas não deixam de comprar os chamados “bens duráveis”, como eletrodomésticos, carros e celulares. É verdade que há uma forte retração no consumo, mas a economia segue girando.
Neste sentido, Andreia Chopra pontua que o IDC registra que, desde 2018, a maior parte do volume das vendas de celulares se concentra na faixa de preço de até R$ 1.499. Ou seja, apesar de praticamente não possuir mais modelos os “bons e baratos”, os modelos intermediários ainda correspondem à maior parte das transações.
“O fator preço é muito determinante para grande parte dos consumidores”, salienta a analista de Pesquisa e Consultoria de Consumer Devices.
O principal aspecto levado em consideração pelo brasileiro na hora de comprar um celular é o preço.
Só que um aspecto que chama a atenção no comportamento do consumidor: mesmo estando mais caros, os celulares tops de linha estão vendendo mais do que em anos anteriores. Ou seja, a despeito do momento econômico ruim e das altas nos preços, no último ano houve mais pessoas comprando smartphones avançados do que nos períodos anteriores.
Arthur Igreja lembra que a usabilidade é um dos fatores que explica a alta nas vendas dos produtos mais caros. Ele diz que mesmo sendo mais “salgados”, estes aparelhos funcionam bastante bem, são duráveis e ainda oferecem certo luxo para quem os detém.
“É preciso lembrar que smartphone, em uma medida importante, virou, sim, proxy de renda, de riqueza e status. Não tem tanta gente assim que viaja para fora do Brasil. Então, o efeito prático disso é que o Brasil tem o iPhone mais caro do mundo. Países mais isolados comercialmente têm essas características, onde as marcas podem cobrar o quanto quiserem que, mesmo assim, vai ter comprador”, defende.
Crescimento na venda de usados
Enquanto o IDC verificou uma queda na venda de aparelhos novos no Brasil em 2022 na comparação com 2021, o setor de celulares seminovos fez o caminho inverso. Segundo a Trocafone, empresa que compra e vende smartphones usados, no ano passado houve uma alta de 50% no faturamento da marca, chegando a R$ 450 milhões.
Guille Freire, cofundador e CEO da Trocafone, defende que os brasileiros estão de olho nesse mercado de seminovos já que todos miram aparelhos com bons recursos, mas com um bom custo-benefício.
“O mercado de smartphones usados cresce muito rapidamente em todo mundo, em uma taxa acima de 20%. E especificamente na América Latina e no Brasil esse número é ainda maior em comparação com o mercado de aparelhos novos, que praticamente não está crescendo”, diz ao TecMundo.
O iPhone 11 foi o modelo mais vendido na Trocafone no ano passado.
Segundo a Trocafone, os usados chegam a custar até 40% mais baratos do que os novos e que já que os dispositivos zerados estão tão caros, o setor de aluguel também tem se mostrado promissor.
“Para 2023, a nossa projeção é atingir aumento de 35% no faturamento, chegando próximo a R$ 600 milhões, bem como continuar o plano de expansão por meio de novas aquisições e parcerias”, finaliza Freire.
Acabou a era dos celulares bons e baratos?
Analisando o cenário do mercado de tecnologia geral fica a dúvida se algum dia os preços voltarão a patamares antigos e mais competitivos. No caso dos celulares, será que teremos o retorno com força dos evangelizadores da Xiaomi, que costumava ser sinônimo de custo-benefício?
Apesar de ainda existem aparelhos bons e relativamente baratos, o fato é que o orçamento do brasileiro está ficando mais apertado. A inflação e juros altos no país pressionam o custo de vida do brasileiro, afetando de maneira geral o consumo. E mesmo que a economia melhore, o próprio conceito de bom e barato não será nunca mais o mesmo.
“Antigamente, um aparelho muito básico fazia ligações e apresentava poucos diferenciais. Um modelo incrível também fazia ligações e mais algumas coisas. Hoje, o usuário não quer um aparelho simples, mas aquele já com um nível alto de usabilidade e recursos. Isso não custa pouco para fazer. Na verdade, tem um paralelo interessante com o próprio mercado de carros. Desapareceu o carro popular no sentido que conhecíamos. O mesmo agora acontece com os celulares”, afirma Arthur Igreja.
Igreja diz ainda que só haverá queda no valor médio dos celulares se o público diminuir bastante o consumo, o que é muito improvável, já que os dispositivos se tornaram quase que obrigatórios.
“Pode baixar [o preço médio], mas leva um tempo, pois tem que ver também se o patamar do dólar se sustenta e se mantém. E tem muito a ver também com preço e volume de compra e venda. A questão é que se as pessoas continuarem comprando nos mesmos volumes, os fabricantes, os varejistas, não vão sentir necessariamente que devem baixar os preços”, finaliza.
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