Quando Cinquenta Tons de Cinza foi lançado, em maio de 2011, ninguém imaginava que um verdadeiro fenômeno estaria por vir nos próximos anos. Os livros para adultos, que antes ficavam no fundo da gaveta escondidos para serem lidos apenas no íntimo de casa, deixaram de ser motivo de constrangimento. As capas sensuais tomaram conta das livrarias e passaram a ser comuns nas mãos de pessoas de diferentes faixas etárias.
Mais de dez anos após o lançamento do primeiro livro da trilogia Cinquenta Tons, as obras picantes – mais conhecidas na internet como “hot” (ou quente, no português) – seguem firmes e fortes no mercado editorial. Seguindo o caminho do pioneiro escrito por L. J. James, títulos como Toda Sua (Sylvia Day) e After (Anna Todd), por exemplo, estamparam a lista de mais vendidos no Brasil quando foram lançados.
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Não é preciso ir muito longe para ter uma ideia do sucesso conquistado pelo gênero. Com as obras hot ganhando cada vez mais espaço nas livrarias, é claro que as histórias também bombaram rapidamente nas terrinhas online. E a lista de e-books mais vendidos no site da Amazon é prova disso.
Cinquenta Tons de Cinza, da escritora E. L. James, foi responsável pelo "boom" dos romances hot (Reprodução/Getty Images)
Atualmente, dos dez livros mais vendidos da Loja Kindle, nove estão na categoria romance. Todos, aparentemente, com boas pitadas de erotismo. Mas afinal, o que explica a popularidade dos livros hot nos últimos anos?
Empoderamento, representatividade e identificação
Como qualquer coisa que envolve o gosto individual de alguém, responder essa pergunta não é tão simples. Para Deborah Neiva, leitora assídua de romances apimentados, o gênero hot é mais uma forma de empoderamento feminino. "Acho que o público feminino finalmente encontrou uma maneira de canalizar sua energia sexual de uma maneira livre", disse. Segundo ela, a sexualidade das mulheres ainda é um assunto considerado tabu para muitas pessoas.
"O público feminino finalmente encontrou uma maneira de canalizar sua energia sexual de uma maneira livre"
"O que pouca gente leva em consideração é que, ao contrário da indústria pornográfica, muito voltada para o público masculino, livros eróticos em sua maioria são feitos por mulheres, e para mulheres", afirma Deborah. A escrita feminina neste gênero proporciona muito mais conexão da leitora com a obra.
Além disso, ela ressalta a representatividade encontrada nos livros eróticos, já que muitas mulheres não se sentem representadas pelas histórias voltadas para o público adulto. "Os livros são muito democráticos. Dentro das comunidades de literatura erótica, você consegue encontrar personagens com deficiência, com diferentes tipos de corpos, etnias e gostos, por exemplo."
A escritora de romances hot Kel Costa concorda. Autora de mais de 30 livros – entre eles os títulos Prometido Para Herdeira e Feita Para Ser Minha, que chegaram ao primeiro lugar na lista de livros mais vendidos na Amazon –, ela enxerga as histórias eróticas como uma quebra de tabus.
"Muitas mulheres passam quase a vida inteira sem conhecerem o próprio corpo, então, quando encontram todas essas portas abertas no romance erótico, elas percebem que há muito mais do que foi mostrado. O hot empodera e liberta", afirma.
Atualmente, Kel conta com mais de 40 mil seguidores no Instagram e, segundo ela, sua base de fãs começou já em 2008, quando deu seus primeiros passos no mundo das fanfics. Mas foi ao entrar no mercado de romances hot lançados pelo Kindle Direct Publishing que a autora viu sua carreira decolar.
"Em 2017 coloquei meu primeiro livro na plataforma de publicação independente da Amazon. Eu sabia que era algo que estava crescendo e ganhando mais adeptos, então não podia ficar de fora se queria atingir um nível de faturamento necessário para realmente poder me sustentar apenas com o que ganharia com os livros", explica Kel.
Leitura acessível
Lançado no Brasil em 2012, a ferramenta de autopublicação de livros da Amazon vem fazendo sucesso no cenário literário. Até agora, autores independentes de todo o país já publicaram mais de 200 mil obras por meio do KDP.
O faturamento, segundo Kell, é a principal vantagem. "O livro físico é muito caro e a porcentagem de royalties que o autor recebe é ínfima. Enquanto numa editora tradicional o autor recebe cerca de 10% de royalties sobre o preço do livro, na autopublicação ele pode ganhar até 70%", explica.
Já para os leitores, também existe um fator bastante importante e atraente nos e-books autopublicados vendidos na loja Kindle: o preço. Por não passarem por todo o processo de revisão, design e impressão de uma editora convencional, os livros digitais lançados pelo KDP chegam bem mais acessíveis para o público, com valores que podem ficar em torno de R$ 5.
A lista de mais vendidos da Loja Kindle é repleta de livros hot nas primeiras posições; preços são muito atrativos para leitores
A Amazon ressalta também maior liberdade e independência dos autores, já que não há edição dos textos por parte da empresa. Mas, se por um lado, a autopublicação é mais vantajosa financeiramente para os autores e permite que qualquer pessoa publique usando a ferramenta, o ponto negativo é que os livros não passam por um crivo especializado de uma editora.
Para não disponibilizar livros com conteúdo que promovam discursos de ódio ou textos plagiados, as obras passam por uma triagem. "Quando uma obra é publicada, ela passa por processos de análise, automáticos e manuais, para avaliar a adequação a essas diretrizes", diz Ricardo Perez, gerente geral de Livros da Amazon Brasil.
Esse movimento, no entanto, pode impactar negativamente o mercado editorial? "Na verdade, toda forma de democratizar a literatura é válida", comenta Vanessa Oliveira, gerente de marketing da editora Intrínseca. No mercado há 20 anos, a editora conta com alguns títulos hot de peso em seu portfólio, incluindo Aconteceu Naquele Verão, Através da Minha Janela – que ganhou adaptação pela Netflix – e, claro, Cinquenta Tons de Cinza.
A boa notícia, segundo ela, é que a crescente procura por ferramentas de autopublicação pode significar a expansão do hábito de leitura para mais pessoas. "Muitos autores já ganharam espaço no mercado tradicional depois do sucesso de suas autopublicações. São dois mundos que, quando não se complementam, andam lado a lado."
Os romances hot são apenas uma fase?
Ao que tudo indica, os romances hot vieram para ficar. Mas, diferente do que se imagina, as histórias picantes não são de agora. Sim, na época da sua avó já existia literatura erótica. Desde meados da década de 1930 até o início dos anos 2000, os romances de banca já atraiam leitoras fieis, com as famosas séries Sabrina, Bianca e Julia.
Se você não lembra ou ainda nem tinha nascido na época, os romances de banca das coleções Sabrina, Bianca e Julia foram sucesso de vendas, com tiragens que chegavam a atingir 600 mil exemplares por mês.
Enquanto os livros das séries Bianca e Sabrina eram voltados para o público que preferia histórias mais poéticas ou tramas no estilo ‘novela mexicana’, respectivamente, os romances da linha Julia eram focados em histórias mais picantes.
As coleções Julia, Sabrina e Bianca fizeram muito sucesso entre as leitoras e traziam histórias de romance com pitadas de erotismo (Foto: Reprodução/Ana Caldatto)
Não é à toa que os romances quentes ganharam o coração das leitoras. Seja no livro físico, digitais ou até nos chamados audiobooks – livros em áudio –, a expectativa é que as produções hot ainda fiquem por muito tempo em alta. “Uma vez que tenhamos aberto a porta e a cabeça para falar, ler e escrever sobre isso, não dá para voltar atrás. Pode até ser que em algum momento não sejam um fenômeno de vendas, mas vão para sempre ter espaço nas estantes dos fãs”, conclui Oliveira.
Então, se você é fã dos romances hot, já pode comemorar. Se, por outro lado, você é hater do gênero, é melhor se acostumar. A expectativa é que venha muito mais por aí.