Os últimos meses têm sido tensos para profissionais que trabalham em empresas de tecnologia, principalmente nas chamadas big techs. Desde meados de julho de 2022, Meta, Amazon, Google, Microsoft, IBM e outras já demitiram ou planejam demitir mais de 50 mil funcionários.
A Alphabet e a dona do Facebook, Instagram e WhatsApp foram as marcas que mais cortaram colaboradores. Enquanto a holding do Google desligou 12 mil pessoas, cerca de 6% da força de trabalho, a Meta dispensou 11 mil pessoas, número que representa 13% do quadro de trabalhadores.
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Em certa medida, o Brasil também foi impactado por esse movimento global de demissões em massa – também chamado de layoffs. Diversas startups e empresas menores do setor de tecnologia também demitiram pelo menos algumas dezenas de pessoas. O Twitter, cujo novo dono Elon Musk chegou a dizer que poderia falir, demitiu pelo menos 160 funcionários no escritório por aqui.
A situação do setor de tecnologia — que é muito impactado por tudo que ocorre nas big techs — gera atenção, porque mostra o que está acontecendo com a economia global.
Mesmo com a pandemia caminhando para seu fim, o fato é que muitos países e empresas estão incertos em relação a 2023 e por isso já se preparam para um período complicado.
Por que as big techs estão demitindo?
A expectativa “nebulosa” para este ano foi um dos debates do Fórum Econômico de Davos, realizado na semana passada na Suíça. Em uma pesquisa feita por lá, dois terços dos economistas-chefes dos setores públicos e privados entrevistados disseram que a economia mundial (principalmente EUA e Europa) terá uma retração em 2023.
O cenário difícil explica em parte as demissões das big techs, já que também houve problemas de tomada de decisões. Arthur Igreja, especialista em Tecnologia, Inovação e Tendências, elenca ao TecMundo outros 3 fatores que explicam os cortes:
- Premissas não se comprovaram: “a hiper digitalização realizada durante a pandemia, já que bilhões de pessoas foram trabalhar em casa, não se manteve. Aplicações como o Zoom e Microsoft Teams, por exemplo, tiveram uma queda brusca no uso depois que as pessoas voltaram aos escritórios. Ou seja, foi investido muito dinheiro em soluções que não permaneceram ativas".
- Inflação: “o mundo passou por um aumento de inflação e muitos bancos subiram as taxas de juros, o que acaba deixando o dinheiro mais caro. Neste cenário, as empresas tentam cortar custos. Quando o dinheiro está barato, todo mundo contrata e tenta crescer, e quando o dinheiro fica caro, quer preservar caixa”.
- Crescimento irreal: “quando veio a pandemia, as empresas de tecnologia que já eram grandes, ficaram ainda maiores. A Apple, por exemplo, dobrou seu valor de mercado ultrapassando US$ 2 trilhões pela primeira vez na história. Essas companhias bombaram na bolsa e saíram contratando na mesma proporção que suas ações aumentavam de valor. A Meta aumentou em 35% sua força de trabalho. Tudo isso foi um negócio meio irrealista, que assim que a poeira baixou e o crescimento não manteve, elas tiveram que começar a demitir”.
Arthur Igreja explica que as gigantes foram otimistas demais com a superoferta de capital que tiveram nos últimos três anos. E como essa onda de otimismo tomou conta de todas elas em conjunto, a mesma onda de cortes as atingiu ao mesmo tempo também.
“Os executivos certamente tiveram uma percepção exagerada de que após a pandemia aqueles números de crescimento se manteriam, o que obviamente não ocorreu. E nas demissões houve um efeito cascata, quando uma começou a fazer cortes, o mercado avaliou bem e as ações começaram a subir de novo, fazendo com que as outras também demitissem para equalizar as contas”, pontua.
E os lucros bilionários das big techs?
Uma conta, porém, parece não fechar em toda essa história de layoffs: por que empresas que continuam com lucros bilionários estão se livrando de parte de suas forças de trabalho?
Em balanço divulgado em outubro do ano passado, a Meta registrou lucro líquido de mais de US$ 4 bilhões, o que representou uma queda de 50% na comparação ao mesmo período em 2021.
A Amazon também está operando no positivo, já que anunciou lucro líquido de US$ 2,8 bilhões no 3º trimestre de 2022. Nos últimos dias, a Microsoft anunciou lucro líquido de US$ 16,4 bilhões no segundo trimestre fiscal de 2023.
Os balanços não explicam, contudo, toda a complexidade das empresas. Rafael Nobre, analista internacional da XP Investimentos consultado pelo TecMundo, argumenta que a previsão de dificuldades das economias mundo afora já alerta as big techs a tomarem ações.
“Esse movimento das big techs é para preservar a lucratividade. Os lucros ainda estão altos, mas a perspectiva é de desaceleração. E quando elas demitem funcionários, elas cortam custos, permanecem mais eficientes e conseguem fazer uma maior manutenção das margens [de lucro] e as ações não são tão penalizadas pelo mercado”, diz o especialista.
Arthur Igreja complementa que marcas do tamanho das big techs e outras não podem nem se dar ao luxo de pensar em não ter lucratividade, já que elas giram uma parcela gigantesca da economia. Para se ter uma ideia, Apple, Google, Amazon, Microsoft e Facebook estão no top-10 das maiores empresas do mundo. Ou seja, é impossível que estes empreendimentos não tenham caixa e por isso os executivos precisam se movimentar antes que os lucros sofram uma queda mais brusca.
“Se pegarmos os últimos reports, elas já informam que não estão crescendo no ritmo que imaginavam e que os lucros estão caindo. Precisamos sempre lembrar que a missão dessas empresas é entregar retorno financeiro para investidores. E quando tem menos velocidade de crescimento, elas entendem que precisam cortar de algum lugar”, sustenta Igreja.
As empresas demitirão mais pessoas?
Outro aspecto dos layoffs chamou a atenção principalmente dos trabalhadores afetados. Em carta aberta a Sundar Pichai, o CEO do Google, Christopher Hohn, bilionário e gerente do fundo de investimento TCI Fund Management, sugeriu que a gigante deveria demitir ainda mais pessoas do que as 12 mil que foram cortadas inicialmente.
O gerente do TCI, que investe na marca do principal buscador do mundo, argumentou que as 12 mil demissões “apontam para o caminho correto, mas nem mesmo revertem o crescimento do quadro de funcionários em 2022. Em última análise, a gestão terá que ir além”.
Hohn argumenta no documento que nos últimos 5 anos, a Alphabet mais que dobrou o quadro de colaboradores, adicionando mais de 100 mil funcionários. Ele diz que talvez o ideal fosse reduzir os colaboradores para cerca de 150 mil, número que a holding tinha até o final de 2021. “Isso exigiria uma redução total do quadro de funcionários na ordem de 20%”, diz.
O britânico Christopher Hohn tem uma fortuna estimada em cerca de US$ 7,5 bilhões.
Rafael Nobre, o analista internacional da XP Investimentos, afirma que as demissões podem mesmo continuar ocorrendo não só no Google. “À medida que o cenário macroeconômico continue complexo ou se deteriore ainda mais, é provável que a gente veja mais cortes pela frente. Ainda mais por essa questão da manutenção da rentabilidade das empresas no curto prazo”.
As big techs estão demitindo para diminuir os salários?
Além de sugerir mais dispensas, a carta de Hohn tem outra informação curiosa. Ele argumenta que as demissões em massa são uma possibilidade de diminuir a “remuneração excessiva dos funcionários”. “O salário médio na Alphabet em 2021 foi de quase US$ 300 mil [por ano], enquanto o median salary [salário do meio entre o mais baixo e o mais alto] é muito maior”, citou Hohn.
“A competição por talentos na indústria de tecnologia caiu significativamente, permitindo que a Alphabet reduzisse significativamente a remuneração por funcionário. Em particular, a Alphabet deve limitar a remuneração baseada em ações [de mercado] devido ao preço deprimido delas”, complementa a carta do bilionário investidor do Google.
Arthur Igreja diz que apesar desse provavelmente não ser o foco das demissões, elas servirão, sim, para diminuir os salários principalmente de profissionais de tecnologia – que não foram os únicos afetados pelos layoffs, é importante ressaltar.
Ele explica que o setor de TI, computação e correlatos se tornaram o “mercado da vez” porque há uma disputa intensa pelos talentos, já que há muita demanda por estes profissionais. Com o cenário aquecido para quem tem habilitação e capacidade técnica, essas pessoas conseguem pular de empresa para empresa para conseguir uma remuneração cada vez maior.
“Juntando com a possibilidade de se trabalhar remotamente, esses fatores puxaram os salários lá para cima, para patamares que não são realistas. Como as big tech cresceram muito nas bolsas no período de pandemia, elas estavam com dinheiro e contrataram mesmo sem precisar. Com as milhares de demissões, esses profissionais afetados começarão a aceitar propostas salariais menores e por isso a tendência é que a média de remuneração caia”, justifica.
Nobre concorda que a curto prazo os profissionais terão que se acostumar com remunerações mais baixas. A tendência no momento é que a demanda por esses profissionais se estabilize ou até caia, enquanto a oferta de mão de obra estará bem alta. Contudo, vislumbrando o futuro, Nobre acredita que a possibilidade de reversão no cenário é bem provável.
"Quando o mundo retomar a trajetória de crescimento, eles [profissionais de tecnologia] vão voltar a ser disputados e os salários voltarão a crescer”.
“Na minha visão, essa medida não funciona a longo prazo. Vale mencionar que muitas das tecnologias que estão em alta hoje em dia como inteligência artificial e machine learning não existiam há alguns anos atrás. Tratando-se de tecnologia, há um déficit de trabalhadores que é de certa forma estrutural. Então quando o mundo retomar a trajetória de crescimento, eles vão voltar a ser disputados e os salários voltarão a crescer”, projeta.
Revolta dos trabalhadores
Os layoffs deixaram em alerta as entidades representativas dos trabalhadores das big techs. No caso da Alphabet/Google, houve várias manifestações contrárias à forma como os cortes foram feitos.
O Sindicato dos Trabalhadores da Alphabet se manifestou logo após o anúncio das demissões cobrando responsabilidade dos gestores da gigante. O grupo acusou a empresa de dar explicações focadas na “realidade econômica” em detrimento da “realidade humana” dos demitidos.
“A Alphabet tem US$ 110 bilhões em reservas de caixa, gastou US$ 70 bilhões em perdas de ações no ano passado, obteve US$ 17 bilhões em lucros no último trimestre – mas mesmo diante dessa riqueza, o Google optou por demitir 12 mil trabalhadores”, manifestou o sindicato no Twitter.
In one email, Alphabet executives took away the livelihoods of 12,000 of our coworkers.
— Alphabet Workers Union (AWU-CWA) (@AlphabetWorkers) January 23, 2023
Workers at every stage of their career were let go with little rationale as to why.
Today we're hosting a meeting open to all Alphabet workers to demand ACCOUNTABILITY. ??
Enquanto os coletivos da Alphabet são mais organizados e focais, os de outras empresas como Microsoft e Amazon ainda caminham para serem reconhecidos e oficializados.
Por causa disso, há uma grande discussão sobre a urgência da formação de entidades que representam os trabalhadores para que cortes em massa como o atual não voltem a ocorrer novamente tão cedo ou que pelo menos seja possível negociar melhores condições para quem perdeu o emprego.
Fontes