Se tem uma coisa que podemos falar sem medo a respeito de Elon Musk é que o empresário gosta de diversificar os seus investimentos. A atual pessoa mais rica do mundo tem negócios em carros elétricos, viagens espaciais, painéis de energia solar, túneis subterrâneos para carros e, mais recentemente, até redes sociais.
Mas tem um empreendimento em especial do homem por trás da Tesla, da SpaceX e do Twitter que chama atenção por ser superambicioso e mexer com um equipamento complexo e frágil, mas cheio de potencial: o cérebro humano. Porém antes de falarmos do potencial e dos problemas, vale entender primeiro o que é exatamente essa tal de Neuralink.
Tecnologia, negócios e comportamento sob um olhar crítico.
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O que é a Neuralink ?
Basicamente, a Neuralink é uma empresa de pesquisa científica que pretende criar uma interface neural-tecnológica a partir de um chip implantado no cérebro. Ou seja, ela pretende misturar um pequeno dispositivo feito pelo ser humano com tudo o que a nossa mente já é capaz de fazer.
O chip desenvolvido do zero pela companhia atualmente não tem partes visíveis no exterior da cabeça, tem o tamanho de uma moeda e fica na região do crânio, com 1024 eletrodos unidos na forma de pequenos fios que ficam ligados ao cérebro. São esses eletrodos que enviam estímulos e comandos, além de receberem informações que são repassadas ao sistema.
Como estamos falando de dimensões muito pequenas para serem manuseadas mesmo por médicos extremamente habilidosos, a ideia é que o implante seja totalmente realizado por um robô. A máquina também está em desenvolvimento pela própria Neuralink, que promete realizar o procedimento da forma menos invasiva e mais precisa possível.
De forma resumida e de acordo com as demonstrações realizadas agora em dezembro de 2022, o robô mapeia os pontos do cérebro que receberão os eletrodos e até faz a cirurgia sozinho, tudo em questão de 15 minutos, sem que o médico precise estar presente na sala.
O chip desenvolvido do zero pela companhia.
Promessas e pontos positivos
Mas por que implantar um negócio desses no cérebro humano? Até agora, o chip tem duas grandes utilidades que são prometidas pela empresa. A primeira e menos ousada é a função de monitoramento: esse processador conseguiria ler toda a nossa atividade cerebral e relatar isso direto para um sistema de inteligência artificial, capaz de gerar relatórios completos sobre a nossa atividade neural, acompanhar o avanço ou combate a doenças e manter o corpo sob controle. É mais ou menos como o que um relógio inteligente já faz com batimentos cardíacos e nível de oxigênio no sangue, só que em um nível bem mais avançado.
A segunda promessa é a mais difícil de ser cumprida, mas também a que traria mais benefícios. Nas projeções mais otimistas, o implante seria capaz de estimular o cérebro, o que pode ser usado tanto para aumentar a potencialidade dele quanto ajudar em tratamentos médicos.
Não, esse tipo de tecnologia não vai transformar ninguém em um X-Men, permitindo o controle de objetos com a mente. Mas pode ser uma enorme melhoria para quem perdeu os movimentos dos membros, tem problemas motores no geral ou sofreu lesões cerebrais, precisando de estímulos na cognição. O mesmo valeria para o tratamento de doenças como Parkinson, Alzheimer ou demência.
A Neuralink acredita que é possível fazer que um paciente utilize objetos que antes não conseguiria, como telefones e computadores, a partir de comandos direto do pensamento. Seriam ações simples, como digitar um texto, atender uma chamada ou acessar um site, mas um passo imenso para quem está em um tratamento tão complexo.
Pode ser possível até fazer pessoas paraplégicas caminharem novamente, já que conexões entre cérebro e membros seriam reestabelecidas com a ajuda dos implantes, ou controlar crises de ansiedade, depressão ou problemas hormonais.
Uma das vantagens da tecnologia, segundo a empresa, é a possibilidade do chip auxiliar em tratamentos médicos.
Linha do tempo da Neuralink
A Neuralink foi fundada ainda em 2016 pelo próprio Elon Musk, mas só começou a virar notícia dois ou três anos depois, quando os primeiros relatórios e testes foram divulgados pela equipe. Pois é: foi muito tempo atuando nos laboratórios e sem cobertura midiática, tentando tirar do papel essa ideia tão ambiciosa e futurista de um chip que pode estimular o cérebro humano. Esse é um comportamento bem diferente para o empresário que gosta de estar sempre em evidência, mas totalmente justificável porque esses avanços são lentos mesmo, e a ideia não é gerar tanta expectativa sem entregar resultados.
A primeira prova de tecnologia da Neuralink só foi divulgada em 2020. Nessa ocasião, a equipe mostrou a atividade cerebral de um porco chamado Gertrude, que teve o chip implantado e foi estudado por mais de dois meses. O teste em questão mostrou a atividade neural do animal ficando mais intensa quando ele estava farejando comida e conseguia “ler” os movimentos das patas um pouco antes de eles serem realizados, já que o cérebro primeiro gerava esse comando antes de ele ser executado.
O experimento foi recebido com animação por parte do público, mas ainda estava longe de todo o potencial prometido por Musk. Até chegarmos em abril de 2021, quando uma nova demonstração apresentou um pouco mais do que o implante seria capaz de fazer.
Foi nesse período que a Neuralink divulgou o vídeo de um macaco jogando o clássico Pong telepaticamente. Isso foi possível porque o macaco estava treinado para jogar usando um controle, mas no experimento ele foi desconectado. Em seguida, a empresa implantou o dispositivo no córtex motor do cérebro do animal, responsável por executar movimentos nas áreas da mão e braço. O chip leu esses comandos e transformou eles em sinais eletrônicos que mexiam na raquete virtual.
Por fim, Musk declarou que pretende realizar os primeiros implantes em seres humanos ainda no primeiro semestre do ano que vem, com o aparelho sendo usado para ajudar pacientes com problemas de visão e locomoção. Mas esse prazo dificilmente será atingido: a promessa anterior era de começar os testes com pessoas em 2020 e, após um adiamento, em 2022.
O empresário já é conhecido por chutar datas sem muito embasamento nos seus outros empreendimentos e aqui não parece ser diferente. Alegando que está sendo cuidadosa, a Neuralink já perdeu vários prazos para entregar a documentação necessária para aprovação de testes em humanos na FDA, o órgão dos Estados Unidos que regula práticas clínicas e pesquisas em saúde. E ele também já prometeu implantar um chip em si mesmo quando tudo estiver devidamente aprovado.
O chip da Neuralink ainda não foi testado em humanos.
Polêmicas e problemas
Uma companhia que lida com temas tão delicados, e é chefiada por um empresário tão popular, não passa despercebida. E a Neuralink já se envolveu em algumas polêmicas ao longo dos anos.
Para começar, existe uma certa desconfiança da comunidade acadêmica e científica com os resultados apresentados até o momento por essa empresa privada. Neurocientistas consultados pelo site Insider após os testes do macaco jogando Pong criticaram a Neuralink por ser midiática demais. Segundo os pesquisadores, foi criado um cenário de espetáculo para promover avanços que, nas universidades, já são atingidos há vários anos e com maior complexidade.
Os cientistas até reconhecem as qualidades da empresa no avanço da engenharia, no formato do implante e na fabricação do robô cirurgião. Mas alegam que ela só está engatinhando em neurociência, apesar de fazer parecer o contrário, e ainda terão muito trabalho pela frente antes de qualquer resultado prático.
Além disso, são muitas as questões éticas ao mexermos com o cérebro humano, em fazer implantes que modificam o nosso corpo e praticamente transformam uma pessoa em uma espécie de ciborgue. Há quem seja contra essas modificações, mesmo que algumas das finalidades do chip sejam totalmente voltadas para a saúde e o bem-estar.
Por fim, mas não menos importante, a Neuralink já foi alvo duas vezes de denúncias graves por más práticas nos testes realizados com animais. Em fevereiro de 2022 apareceram as primeiras denúncias de um grupo de direitos dos animais sobre o tratamento dos macacos usados nos experimentos. Segundo a denúncia, os animais passaram por "sofrimento extremo em decorrência de cuidados inadequados", além de passarem por "experimentos altamente invasivos".
Tanto a empresa quanto a universidade que ajudou a conduzir os testes negaram as acusações. A Neuralink garante que estava construindo um espaço próprio e vasto para cuidar dos animais que são usados nos testes, e que só usou instalações de outro local temporariamente.
E os problemas da empresa nesse setor só aumentaram agora em dezembro de 2022. O Departamento de Agricultura dos Estados Unidos está investigando a empresa de Elon Musk por supostas irregularidades nos estudos e por violar leis de bem-estar animal. Uma reportagem da agência de notícias Reuters confirmou que cerca de 1,5 mil animais já morreram nos laboratórios da companhia, um número que só é tão alto porque ela teria acelerado algumas etapas para conseguir cumprir os prazos do chefe e mostrar resultados o mais rápido possível.
Essa pressão vinda de cima teria feito com que procedimentos cirúrgicos simples dessem errado, como implantes feitos de maneira incorreta ou o uso de materiais sem o devido cuidado, levando macacos e ovelhas à morte de forma desnecessária. Até o momento da produção deste texto, a empresa não se manifestou sobre o caso e segue otimista de que os testes em humanos estão próximos.
Existem muitas questões éticas ao mexermos com o cérebro humano.
O que podemos esperar do futuro
A interface cérebro-computador da Neuralink é um projeto ousado, futurista e até certo ponto bastante empolgante. Ter um chip implantado no cérebro é meio assustador de se pensar e temos muitas questões a serem respondidas antes de qualquer avanço, mas a empresa parece disposta a entregar resultados em algum momento.
Ser capaz de monitorar as atividades cerebrais por questões de saúde e ter tratamentos inovadores para doenças motoras ou cognitivas é um sonho que ainda parece muito distante, mas ter "uma luz no fim do túnel" é, no mínimo, animador. Além disso, ao menos do ponto de vista da engenharia, o avanço já é enorme e as contribuições da Neuralink podem ser úteis em outras áreas, mesmo que ela não atinja o seu objetivo final de implantes mais avançados.
Só que, por enquanto, quase tudo que vem dela está no campo das promessas com prazos não cumpridos, dos testes de tecnologia e de demonstrações rudimentares com animais. Aliás, os maus tratos nos experimentos parecem graves e, especialmente se foram gerados por pressão do executivo, podem resultar em multas ou proibições e atrasar ainda mais qualquer tipo de aplicação prática.
Ao que tudo indica, apesar da empolgação de Elon Musk e da expectativa criada a respeito dessa companhia, ainda vai levar tempo até que o primeiro ser humano monitorado por um chip da Neuralink apareça por aí.
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