Todos sabemos que nosso país enfrenta enormes adversidades e desafios, amplificados neste momento de crise mundial. Hoje, comentarei um dos poucos aspectos em que estamos à frente da maioria dos países desenvolvidos: o sistema financeiro. Para ilustrar, farei uma comparação da nossa realidade com o modelo norte-americano.
Nos Estados Unidos, pode parecer surreal, mas:
Tecnologia, negócios e comportamento sob um olhar crítico.
Assine já o The BRIEF, a newsletter diária que te deixa por dentro de tudo
boa parte da população paga as contas de energia elétrica, TV por assinatura, telefonia, aluguel e outras por meio de cheque e pelo correio; normalmente, as cobranças já vêm com o envelope no qual colocar o cheque. Alguns bancos oferecem o serviço de pagamento via site ou aplicativo, mas, dependendo do recebedor, imprimem e enviam o cheque da mesma maneira;
não apenas os cidadãos usam cheque, sendo cerca de 50% das transações financeiras entre empresas realizadas por meio desse instrumento ou de dinheiro em espécie;
a transferência entre contas de diferentes bancos pode demorar de 3 dias a 5 dias úteis, dependendo da instituição financeira, pois uma parcela significativa das companhias menores (alguns milhares) ainda não tem acesso às redes de pagamento que processam transações no mesmo dia útil.
Afinal, por que deixamos os EUA para trás? A resposta tem a ver com a “mãe” das inovações: necessidade
Em contrapartida, meios bem mais convenientes, rápidos e seguros de cobrança e pagamento fazem parte da realidade brasileira há muitos anos. Afinal, por que deixamos os EUA para trás? A resposta tem a ver com a “mãe” das inovações: necessidade.
Na década de 1980 e início dos anos 1990, nosso país atravessou um período de hiperinflação, e as instituições financeiras passaram a investir em novas tecnologias capazes de proporcionar maior velocidade às transações financeiras, pois dinheiro “parado” ou “em trânsito” perdia valor literalmente a cada dia. Tais ações levaram ao surgimento de instrumentos como boleto, DOC e, mais tarde, TED. Por causa da inflação e devido a riscos óbvios de segurança, mandar cheques ou dinheiro pelo correio simplesmente não era uma opção viável por aqui.
Também estamos à frente da maioria dos países em aspectos não tecnológicos. Podemos afirmar que, desde 2013, temos um dos marcos regulatórios para mercado financeiro mais avançados sob a ótica de incentivo à inovação e à concorrência.
Nos Estados Unidos, por causa da legislação vigente, existe uma dependência muito grande dos novos entrantes em relação aos bancos tradicionais e bandeiras. As fintechs norte-americanas parecem mais “correspondentes bancários” do que startups que de fato vão mudar o sistema financeiro. As exceções são algumas companhias que têm maior escala e compram uma licença para operar como banco.
No Brasil, com a criação do conceito de “instituição de pagamento”, a enorme barreira de entrada para oferta de contas digitais e serviços de pagamento foi eliminada. Atualmente, há mais de uma centena de startups disputando esse mercado com os bancos incumbentes. Algumas fintechs conquistaram bastante representatividade, como Nubank, Mercado Pago e Stone, e foram autorizadas pelo Banco Central a funcionarem sem nenhum tipo de dependência em relação a serviços de instituições financeiras tradicionais. Na prática, tornaram-se “minibancos”.
Infelizmente, uma parcela significativa da nossa população ainda não consegue acessar os serviços financeiros básicos ou é mal atendida pelo oligopólio de cinco grandes bancos
Infelizmente, toda essa sofisticação do sistema financeiro nacional não é motivo de comemoração, pois uma parcela significativa da população ainda não consegue acessar os serviços financeiros básicos ou é mal atendida pelo oligopólio de cinco grandes bancos. Entretanto, o crescimento exponencial de algumas fintechs, combinado com iniciativas de Open Banking e de pagamentos instantâneos (PIX), deverá mudar essa situação em breve.
Estamos experimentando os estágios iniciais de uma revolução que irá proporcionar um direito fundamental à maioria dos cidadãos: serviços financeiros de qualidade a preço justo. Quando esse momento chegar, e será bem mais rápido do que muitos pensam, poderemos nos orgulhar ainda mais dessa trajetória de inovação iniciada nos anos 1980.
***
Alexandre Pinto, autor desta coluna quinzenal no TecMundo, é Diretor de Inovação e Novos Negócios da Matera e especialista em Open Innovation. Na empresa desde 2001, foi responsável pela criação da área de P&D e do seu ecossistema de parceiros.
Categorias