Quando você está entediado, a Netflix está ali para te oferecer horas e horas de entretenimento. Quer ouvir música enquanto faz o caminho para o trabalho ou para a escola? O Spotify vai te servir. O Facebook também está disponível para você ler as novidades de seus amigos; o WhatsApp vai tornar mais fácil fazer os planos para a noite e o Uber vai te levar para este lugar. O que todos eles têm em comum? A internet. Fácil, de rápido acesso e velocidade. Podemos dizer que você tem tudo nas suas mãos.
O Brasil é muito grande: é o quinto maior país do mundo e possui uma área com mais de 8 milhões de quilômetros quadrados. Dentro dele, ainda encontramos muitos universos, diferentes culturas e povos bastante divergentes, mas que, mesmo sendo tão díspares, também são brasileiros. No mesmo compasso em que somos ricos culturalmente, sabemos que existe uma grande desigualdade no que toca a infraestrutura.
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Enquanto somos rodeados por internet de alta velocidade e uma vida regida por bytes e conectividade nas grandes capitais, pequeninas cidades nas margens do Brasil ainda sobrevivem como se estivessem nos anos 90. São Gabriel da Cachoeira, no extremo noroeste do Amazonas, é uma delas (apesar de ser uma das maiores em área). Por lá, você consegue uma conexão de internet com velocidade 200 kbps por R$ 250 mensais — e se você nasceu pós anos 2000, provavelmente não sabe como isso é grave.
São Gabriel da Cachoeira é um ponto estratégico do Brasil
A cidade faz fronteira com a Venezuela e a Colômbia. Além disso, fica a 852 quilômetros de Manaus, capital do estado, que possui uma infraestrutura mais presente. Às margens da Bacia do Rio Negro, o município é o que tem maior predominância indígena no Brasil — a cada dez habitantes, nove possui descendência nativa.
Por ser fronteiriça, São Gabriel da Cachoeira é um ponto estratégico do Brasil, consequentemente, existe uma presença "massiva" das Forças Armadas no local. Por lá, estão a 2ª Brigada de Infantaria de Selva, Comando de Fronteira Rio Negro, 5º Batalhão de Infantaria de Selva, 21ª Companhia de Engenharia de Construção, Destacamento do Controle do Espaço Aéreo de São Gabriel da Cachoeira, Destacamento de Aeronáutica de São Gabriel da Cachoeira, Destacamento da Comissão de Aeroportos da Região Amazônica e o Destacamento da Capitania dos Portos da Amazônia Ocidental.
Na cidade, trabalha o técnico de informática Rafael Silva*, que entrou em contato com o TecMundo para nos mostrar e contar um pouco mais sobre a vida dos habitantes da região.
São Gabriel da Cachoeira é um dos maiores municípios do Brasil
Netflix? Vai sonhando
"Enquanto muitas pessoas pagam valores bem em conta por velocidades bastante rápidas (e ainda reclamam dela), nós pagamos R$ 250,00 por 200 kbps para uma operadora local. Um valor bem elevado para pouca velocidade de internet", disse Rafael Silva* ao TecMundo. "Não conseguimos assistir a vídeos, fazer downloads grandes... Netflix é um sonho por aqui".
Se o pensamento tacanha de que "quase ninguém mora nesse lugar" persiste em você, saiba que São Gabriel da Cachoeira possui mais de 40 mil habitantes fixos. Além disso, "por ser uma região fronteira, vem gente de todo o Brasil", nota Silva.
A população conhece Uber e iFood apenas pelo nome
O leitor revelou ao TecMundo que toda a conexão de internet feita na cidade acontece via satélite, ou seja, não há cabeamento, banda larga ou fibra óptica no local. Apenas isso já aumenta o valor do serviço — e você pode ter uma noção do motivo pelo qual os preços de internet via satélite em grandes capitais brasileiras também é bem alto.
"Para vocês terem uma ideia, no meu trabalho, temos que compartilhar 250 Kbps com mais ou menos quatro ou cinco notebooks, aí você tem uma noção de quão precária é a nossa conexão com a internet — fora que, quando chove, a conexão fica offline", explicou Rafael. O contraste fica claro neste relato: "Em agosto, estive em São Paulo e pude ver como é navegar na internet com alta velocidade e com os serviços funcionando em tempo real, como o Uber e o iFood, por exemplo, que aqui em São Gabriel só conhecemos por nome".
Visão aérea de São Gabriel
Opções de internet
No momento, existem três provedoras de internet em São Gabriel da Cachoeira: Amazon Cyber (em parceria com a O3b Networks), a Maraskanet e Pathernon Informática. Sobre telefonia móvel, TIM, Vivo e Claro também estão presentes, mas sem planos de dados — segundo Silva, a Claro até oferece 3G, mas ele não funciona e, quando isso acontece, parece 2G.
Além disso, como no começo da década passada, as lan houses são pontos principais de acesso na cidade. Segundo Rafael, existem três ou mais delas em São Gabriel da Cachoeira — e, como você pode ver nas imagens, pelo tamanho do município, é um número alto.
Para um futuro próximo, a esperança também não é muito animadora: os comentários na cidade são de que um provedor local, provavelmente a O3b, pretende oferecer internet. Contudo, quem paga R$ 250 para receber 200 kbps passará a pagar R$ 320. Quer ter uma ideia? Abaixo, você vê uma tabela de preços da HughesNet, empresa de internet via satélite que oferece planos na cidade de São Paulo:
Preços internet via satélite em SP
Como você pode notar na tabela, por R$ 350, o usuário pode assinar um pacote com franquia total de 50 GB e 15 MB de download. Sim, salgado se compararmos com a internet de banda larga, porém, bem mais em conta do que a velocidade oferecida em São Gabriel da Cachoeira.
Por agora, os planos de uma operadora local oferecidos aos cidadãos da cidade são os seguintes — com algumas comparações:
- Plano Noite: R$ 200/mês por 250 kbps (conexão noturna)
- Plano Super + 50 horas: R$ 300/mês por 250 kpbs
- Plano Master + 100 horas: R$ 600/mês por 400 kbps
- Plano Prêmio + 150 horas: R$ 800/mês por 550 kbps
- Plano Top + 200 horas: R$ 1.000/mês por 700 kbps
- (Comparação) Linha Discada anos 2000: picos de +110 kbps (média 56 kbps)
- (Comparação) HughesNet São Paulo: R$ 250/mês por 10 MB (franquia 35 GB)
Como você pode notar, os preços são absurdos quando comparados com a internet via satélite de São Paulo, que já é bem salgada em relação à banda larga ou fibra. Abaixo, você confere os Planos Controle em São Gabriel da Cachoeira:
- Plano Controle 50h: R$ 75/mês por 120 kbps
- Plano Controle 100h: R$ 100/mês por 125 kbps
- Plano Controle 200h: R$ 150/mês por 125 kbps
Imagem dos planos
A rotina "sem" internet
Como citamos, São Gabriel da Cachoeira possui uma presença "massiva" das Forças Armadas por ser fronteiriça. Por isso, a cidade recebe muitos militares de vários locais do Brasil. Rafael Silva* notou que a internet é um dos primeiros baques: "Eles sentem falta de comunicação mais rápida para falar com os familiares que estão distantes", notando a dificuldade ou até a impossibilidade de realizar uma chamada de vídeo ou usar um simples Skype.
Crianças não sabem o que são jogos online
As crianças também fazem parte disso, porém, parece que a infância em locais como São Gabriel é mais "viva". "As pessoas vão mais para a "praia", com banhos de rio ou igarapés, é comum ver muitas crianças com os pais por lá", comenta Silva. "Elas não sabem o que é jogo online, mas costumam jogar futebol e até participar de alguns grupos de hip hop que existem na cidade".
Sobre a vida noturna, a internet não influencia na diversão: "O fim de semana é agitado. Muitos jovens e adolescentes participam de festas noturnas que acontecem toda sexta-feira, sábado e domingo".
São Gabriel da Cachoeira
Taxas de suicídio - uma nota necessária
São Gabriel da Cachoeira tem uma taxa de suicídio de 50 casos por 100 mil habitantes: é a maior do Brasil. O alto índice é devido, em sua maioria, a jovens índios que se enforcam. Por isso, a grande questão é: como aliar o avanço tecnológico sem o detrimento de nossa cultura ancestral? Obviamente, partindo de um ponto um pouco destoante do que lidamos até o momento.
Confirmando o que foi dito acima, o Mapa da Violência de 2014 mostra que 93% dos casos de suicídio aconteceram com índios. Oito entre dez se enforcaram, enquanto outros métodos envolvem a ingestão do timbó, que é uma raiz venenosa.
É importante pensarmos sobre o Brasil e nossa identidade errática
Um dos principais pontos que explicam esse número alto é a crise de identidade. Isso porque, no mesmo compasso que a tecnologia avança, "a cultura rural dos índios foi muitas vezes menosprezada e ridicularizada, já que se desvincula dos valores universais do crédito e do consumo levados a todos pela televisão e internet", nota o jornalista Bruno Paes Manso em artigo.
"Traçando um paralelo, parece algo parecido com a crise de identidade nas periferias de São Paulo nos anos 1970 e 1980, quando as novas gerações urbanas negaram e ridicularizaram a cultura rural dos antepassados nordestinos e migrantes", compara Manso. "Por que os índios estão se matando em taxas tão elevadas? O debate é uma oportunidade para pensarmos também sobre o Brasil e nossa identidade errática, ainda em processo de construção".
*o nome Rafael Silva é fictício, um pedido do leitor
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