“Socorro, alguém me tire da minha casa”. Nenhum dos meus amigos entendeu quando enviei essa mensagem pelo Twitter e, incomunicável, não tive condições de explicar melhor o quanto o dia 21 de março foi traumático na minha vida. Antes que você fique preocupado, não estou falando de nenhuma briga com familiares ou assalto.
Tudo o que vou relatar para vocês pode parecer absurdo, mas é a mais pura verdade. Eu, que sempre fui uma pessoa confiante e disposta a pagar mais por soluções que me proporcionem conforto, me vi perdido diante de tanta tecnologia e, da noite para o dia, poderia ter morrido enforcado no cabo de energia do meu MacBook.
Vivo em função de tecnologia. Felizmente, minha origem é de família abastada, de modo que nunca me faltou nada. Minha casa é um modelo tecnológico. Pense em lugar onde há tudo do bom e do melhor e que dispõe dos aparelhos mais modernos existentes no mercado. Esse é o meu lugar. Tudo o que ganhei, investi nisso.
Tenho controle total sobre tudo na minha casa. Tudo. Ou melhor, achei que tinha. Portas, janelas, cozinha, banheiro e lavanderia: posso fazer o que eu quiser sem precisar levantar da minha cama. Basta eu teclar um comando no meu universal house remote ou dar uma ordem de voz para que tudo o que eu quero se resolva.
Malditas fotos da festa
Meus problemas começaram na noite de domingo. Recebi um email muito simpático, de um remetente desconhecido, com a seguinte mensagem: “Veja as fotos da festa, ficaram ótimas”. De maneira inocente, cliquei. Nada aconteceu, mas presumo que a partir desse momento um vírus se apossou da minha rede. E como toda a minha casa está online, passei de senhor a escravo em apenas um clique.
Fui dormir sem imaginar que o pior estaria por vir na manhã seguinte. Costumo acordar às 8 horas, mas nesse dia nada funcionou. As persianas automáticas não se abriram, o despertador eletrônico com canções alegres não tocou e os braços mecânicos embutidos na cama, que se encarregam de tirar o lençol, não se mexeram.
Quando despertei, já haviam se passado alguns minutos do meu horário habitual de levantar. Acordei assustado e suando muito, pois meu lençol térmico, de alguma forma, estava desregulado. Senti-me em um forno e poderia ter assado ali caso não tivesse acordado a tempo.
Meu cão-robô auxiliar, que nesse momento já deveria ter trazido o jornal, havia desaparecido. O jornal estava dentro do aquário, e meus chinelos na prateleira de Blu-rays. A luz piscava continuamente, como se eu estivesse na balada, e a descarga do banheiro jorrava água.
Atividade paranormal
Minha primeira reação foi de pânico. Afinal, não sabia o que fazer. Tanto tempo dependente da tecnologia tinha tirado um pouco da minha capacidade de resolver problemas por conta própria. Pensei em ligar para um técnico, mas o celular estava fora de área e exibindo vídeos pornográficos, que eu nunca baixei.
A bateria do notebook havia descarregado durante a noite. Estava incomunicável naquele momento, ao menos no quarto. Então tive a ideia de ir para a sala ou para a cozinha. De lá, poderia twittar da TV ou da geladeira. Sim, sou um dos poucos que possui uma geladeira com Wi-Fi e acesso à web.
A porta automática do quarto estava travada. Tentei de todas as formas e não consegui abri-la. Havia entrado num modo programado de segurança, de forma que ninguém conseguiria arrombá-la por fora. Desesperado, arranquei um dos braços mecânicos da cama e bati na maçaneta da porta, até quebrá-la. Foram pelo menos umas duas horas até que eu conseguisse.
Enquanto isso, o ar condicionado do meu quarto parecia estar refrigerando uma geladeira. A temperatura estava caindo pelo menos 1 grau a cada dez minutos. Consegui sair, mas a situação fora do meu quarto também estava deplorável. Parecia que um furacão tinha passado pela casa.
Apertem os cintos, o controle sumiu
Não tive surpresas no caminho até à cozinha. Aliás, ao chegar lá, aquele parecia ser o único cômodo da casa ainda em ordem. Minha geladeira com tela OLED de 7 polegadas mostrava como página inicial o Baixaki, do jeito que eu havia configurado. Acessei o Twitter e mandei um pedido de socorro. Foi o maior erro que eu poderia ter cometido.
Depois da mensagem enviada, o DNS travou e perdi por completo a conexão. Pior ainda, a geladeira entrou em um modo de degelo automático e a água começou a escorrer pela porta, que não se fechava mais. Perdido, dei um comando de voz para que as luzes se acendessem. Nada aconteceu.
Contudo, uns dois minutos depois, todos os eletrodomésticos da cozinha ligaram ao mesmo tempo. A torradeira, sem torradas, explodiu. Não uso cabos de energia, mas sim uma mesa de recarga. Basta colocar os eletrodomésticos sobre ela para que a recarga seja efetuada. Por isso, de nada adiantava procurar por tomadas.
Procurei, sim, pelo controle remoto geral, mas não o encontrei. Nessas alturas, a batedeira fazia um barulho infernal e o calor do forno micro-ondas, da sanduicheira com Bluetooth e do fogão elétrico só me faziam ter uma certeza: precisava sair daquela casa o quanto antes ou tudo pegaria fogo.
Por um fio
Embora eu tenha muitos equipamentos modernos, alguns aparelhos antigos ainda têm espaço na minha casa. No banheiro, por exemplo, em vez de deixar uma pilha de revistas ou jornais para ler durantes as necessidades, tenho um desktop e um tablet. Costumo também fazer check-ins utilizando o app iPoo.
Peguei o iPad 2 e ele estava fazendo check-ins automáticos no app. Se você não o conhece, ele é uma espécie de FourSquare, mas os check-ins podem ser feitos apenas quando você está no banheiro.
Naquele momento, eu era o líder do ranking mundial entre as pessoas que vão ao banheiro. Como a conta estava integrada com o Twitter e com o Facebook, você pode imaginar o estrago que isso faria depois na minha vida profissional.
Enquanto estava abaixado, percebi que havia corrente elétrica passando pelo fio do mouse. Ele fica conectado ao meu computador por indução magnética, assim como à base da mesa. Ao me levantar, esbarrei nele e, antes que ele caísse no chão, a indução magnética entrou em ação, puxando-o de volta para a mesa e me enforcando.
Sim, por alguns segundos, fiquei preso à mesa, sendo enforcado pelo meu próprio mouse. Parece mentira, eu sei. Queria que você pudesse olhar nos meus olhos agora para ver como estou falando a verdade. Não, melhor não. Aposto que você deve estar rindo de mim.
Cara, cadê meu carro?
Decidi que era hora de deixar todos os meus aparatos tecnológicos para trás e fugir para o lugar mais longe possível. Tudo o que eu queria era sair daquela residência onde eu não tinha mais o controle de nada. Meus sonhos mais bonitos haviam se tornado um pesadelo completo.
Corri em direção à garagem, desviando de lâmpadas estourando, cortinas pegando fogo e uma verdadeira lagoa que já se formava àquela altura na minha sala. Por força do hábito, passei a mão em meus bolsos para ver se estava com o celular. Não estava. Se fosse um dia normal, voltaria imediatamente. Mas, definitivamente, esse não era um dia normal.
Ao chegar à garagem, lembrei que o meu carro também é controlado por software. Ligá-lo somente é possível com minha impressão digital e um comando de voz específico. Ao encostar o polegar na trava da porta, em vez de abri-la, o carro ligou sozinho e saiu em disparada.
Descobri depois que, como ele está integrado com o FourSquare, o GPS o levou para visitar os locais mais acessados do meu histórico. Soube que o carro não parou enquanto a bateria não acabou. Esses carros controlados por computador são mesmo eficientes, já que meu Toyota Prius rodou por mais de 100 quilômetros sozinho, sem bater.
Chega de tecnologia?
Consegui fugir a pé e corri muito até encontrar um orelhão para chamar os bombeiros. Minha casa foi completamente consumida pelo incêndio. Estou morando em um hotel e, embora esteja reconstruindo-a, não estou muito certo se terei tanta tecnologia assim nela outra vez.
Percebi que, ao mesmo tempo em que eu tinha o controle de tudo, bastou um pequeno vírus ou uma invasão de alguém mal-intencionado à minha rede, para que toda a minha vida fosse destruída. A certeza de liberdade que eu tinha, de repente, se transformou num sentimento de impotência e escravidão.
Estou com medo de voltar a usar computadores outra vez. Redijo este texto num caderno, à caneta, e vou enviá-lo pelo Correio para o Baixaki, na esperança de que eles publiquem este alerta e impeçam que outras pessoas tenham suas vidas destruídas pelo excesso de tecnologia, como eu tive.
Eu sei que vocês devem ter rido muito de tudo aquilo que passei. Porém, espero encontrá-los um dia, pessoalmente, para que possam olhar nos meus olhos e perceber o quanto o meu drama é verdadeiro. Em tempo: nunca soube como ficaram as fotos da festa. Espero que, realmente, tenham saído ótimas.
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Atenção: este artigo faz parte da série Erro 404, um espaço semanal do Baixaki e do Tecmundo destinado a textos leves e descontraídos. Todas as situações relatadas no texto acima são fictícias (ou não) e qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.
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