Parte dos planos da Blizzard há quase uma década, reformulado múltiplas vezes e atingindo seu formato derradeiro em 2013, “Warcraft – O Primeiro Encontro de Dois Mundos” está, finalmente, prestes a sair do papel, com sua estreia brasileira marcada para essa próxima quinta-feira (2). Baseado em uma franquia de sucesso e com mitologia tão rica quanto a criada por Tolkien, a obra carrega uma responsabilidade extra em sua chegada às telonas: provar que podemos ter um filme épico de games nos cinemas. Será que a maldição foi quebrada?
Para conferir em primeira mão se essa missão lendária para os longa-metragens inspirados em jogos seria devidamente completada e renderia recompensas em ouro para os estúdios envolvidos na produção – a dupla Legendary e Universal –, assistimos a uma sessão antecipada do filme na última segunda-feira (30). Com a entrada do cinema enfeitada com o tema da aventura e as poltronas da sala de exibição recebendo marcações que as separam em assentos para a Horda e Aliança, a imersão inicial – pelo menos – ficou garantida.
O clima estava realmente propício para a aventura.
Nota aos fãs
Antes de começar a falar sobre a produção em si, talvez seja legal esclarecer algumas coisas. Em muitas das críticas feitas pela mídia internacional – sejam elas positivas ou negativas –, os leitores acabam questionando a “credencial gamer” do redator ou sua familiaridade com a série de jogos para computador. A alegação seria tanto que uma proximidade muito grande pode fazer com que defeitos sejam esquecidos quanto que um desconhecimento do material original pode, teoricamente, invalidar o julgamento do autor.
Embora este que vos escreve seja alguém que acredite que os filmes precisam ir além do nicho tradicional da peça em que eles se baseiam para darem certo – ainda mais no caso de possíveis franquias multimilionárias –, e, portanto, que não necessitam de um grande especialista no tema para serem avaliados, é melhor deixar tudo às claras. Assim, encare o parágrafo seguinte menos como algum tipo de “carteirada virtual” e mais como uma sessão confissão, ok? Então, vamos lá!
Sim, já dei muito rolêzinho em Dalaran.
Curto jogos desde sempre, acabei admirando bastante a história e a campanha solo dos três episódios de Warcraft – mesmo não sendo exatamente fã do gênero estratégia – e jogo World of Warcraft desde 2007. Nesse MMORPG, já investi mais tempo do que é saudável admitir, explorei cada canto de um universo gigantesco, conheci muita gente bacana e obtive conquistas de respeito – incluindo uma daquelas mais raras (“Primeirão!” ou “Realm First!”), concedida a poucos jogadores.
Dito isso, é importante que você saiba que, antes de ser um elfo, orc, guerreiro ou seja lá o que for, o autor deste texto é um jornalista pronto para avaliar da melhor forma possível uma produção cultural e que – ufa! – não está em sua primeira crítica cinematográfica. Com esses pequenos detalhes fora do caminho, confira a seguir se “Warcraft” faz jus ao seu nome e consegue limpar a barra dos filmes de games – e pode ficar tranquilo, não há spoilers ou qualquer tipo de revelação que possa estragar sua experiência.
Inaugurando a série
Com a possibilidade de beber na fonte quase que inesgotável de conteúdo produzido pela Blizzard para sua série de fantasia, o diretor Duncan Jones, ao tomar as rédeas do projeto hollywoodiano há alguns anos, resolveu convidar o público geral à franquia de uma maneira simples: começando literalmente pelo começo. Assim, “Warcraft – O Primeiro Encontro de Dois Mundos” conta a história do conflito inicial entre orcs e humanos, reproduzindo as primeiras histórias dos jogos.
Duncan Jones, ao tomar as rédeas do projeto hollywoodiano há alguns anos, resolveu convidar o público geral à franquia de uma maneira simples: começando literalmente pelo começo
Para nos guiar por ambos os lados desse cenário, uma dupla de protagonistas – heróis em suas próprias facções – se alterna na tela em proporções iguais. Enquanto o honrado guerreiro orc Durotan (Toby Kebbell, de “Planeta dos Macacos: O Confronto”) precisa invadir e pilhar terras em nome de seu líder, o comandante humano Anduin Lothar (Travis Fimmel, de “Vikings”) se vê do outro lado dessa equação, tendo que defender seu rei e seu povo de uma verdadeira horda de invasores brutais.
Alguns dos orcs pensam em uma nova casa.
Vindos de Draenor, um mundo decadente e à beira da morte, os orcs comandados pelo maléfico Gul'dan (Daniel Wu) têm como missão em vida conquistar novos povos e terras e obter recursos para continuar sua marcha implacável por diferentes mundos. O alvo mais recente do exército é o mundo de Azeroth, lar de humanos – e de outras raças fantásticas – e que estava em um período de paz já há algum tempo. A abertura de um portal mágico conectando esses planetas, no entanto, pode colocar um fim ao cenário atual.
Claro que, durante essa primeira invasão, os caminhos de Durotan e Lothar se cruzam, tendo a meio-orc Garona como ponto de ligação entre ambos. Esse encontro sugere que apenas uma aliança iniciada pelos dois pode colocar fim a uma guerra que, se for concretizada, tem potencial para acabar com as duas raças. A partir daí, tem início uma corrida contra o relógio, com o improvável trio contando ainda com a ajuda do poderoso guardião Medivh (Ben Foster) e do jovem mago Haddgar (Ben Schnetzer) para tentar completar essa tarefa heroica.
Não dá para evitar
Logo de cara, dá para dizer que as comparações com a trilogia “O Senhor dos Anéis”, embora injustas – já que se tratam de propostas de fantasia diferentes –, são inevitáveis. Isso porque “Warcraft” é basicamente uma tentativa de Universal e Legendary emplacarem uma franquia de peso desse gênero nos cinemas, capaz de fazer frente ao que New Line, Warner e outros estúdios têm desenvolvido ao longo dos últimos 15 anos. Sendo assim, vale traçar alguns paralelos entre a estrutura dessas produções tão distintas.
Em “O Senhor dos Anéis” – e mesmo no amplamente criticado “O Hobbit” – temos uma jornada, em todos os sentidos, se desenrolando no decorrer da história: se trata tanto de um caminho que precisa ser percorrido para que um certo objetivo seja cumprido quanto da clássica “jornada do herói”, uma receita narrativa na qual o protagonista passa por uma série de estágios e vai crescendo e se transformando em um verdadeiro herói até o fim da saga. Sim, é algo simples, mas que, no fim, ajuda muito a dar um ritmo na aventura.
Prepare-se para conhecer – de forma rápida – várias ambientações de Azeroth.
No caso de “Warcraft – O Primeiro Encontro de Dois Mundos”, como esse formato é quase que colocado de lado para fazer funcionar a alternância constante entre os heróis de cada povo – cada um com seu próprio núcleo –, a cadência da trama acaba sofrendo em diversos pontos. Muitos dos cenários são trocados rapidamente em cortes ágeis de câmera, fazendo com que novas localizações cheguem e se vão sem serem devidamente exploradas pelos personagens – e, por vezes, impedindo o público de se familiarizar por completo com parte desses lugares.
Alguns dos personagens secundários também recebem esse tratamento “acelerado”, tendo poucas falas ou tempo em tela e deixando claro que o compasso geral aplicado à trama foi uma escolha consciente da equipe de produção. Fica difícil dizer se isso funciona positivamente, fazendo com que as pessoas se interessem em descobrir mais sobre determinados heróis e locais no futuro, ou se essa decisão acaba jogando contra a obra. Seja como for, fique tranquilo: o entendimento do filme não fica comprometido com isso.
Fantasia fantástica
Apesar de não destrinchar tão bem seus cenários quanto as crias cinematográficas de Peter Jackson, “Warcraft” não deixa nada a dever quando se fala em ambientação. Misturando transposições fiéis de mapas de World of Warcraft – capazes de fazer com que os aficionados pelo MMORPG reconheçam imediatamente suas localidades favoritas – com reformulações pontuais de algumas estruturas do game – mais robustas ou imponentes em tela –, o filme apresenta um universo de fantasia de primeira linha.
A mescla de computação gráfica e estruturas gigantescas construídas pela equipe de Duncan dentro dos estúdios funciona muito bem
Salvo algumas ocasiões ou locais específicos, como a visita à cidade flutuante Dalaran ou a aparência da fonte mágica presente em Karazhan, a mescla de computação gráfica e estruturas gigantescas construídas pela equipe de Duncan dentro dos estúdios funciona muito bem. A discrepância entre o ar opressivo de Draenor ou dos acampamentos dos orcs em Azeroth – amplificado pelo uso de magia Vil – e a pureza ímpar das cidades e vilas humanas, por exemplo, fica clara a todo momento.
Esse contraste ajuda – e muito – a contar a história de orcs que, diferentemente do que se vê em tantas outras produções, não ficam restritos ao papel dos bandidos da vez. Fica claro que eles possuem uma estrutura social própria, um código de honra apurado e estão lidando com um poder que pode levar tanto à glória quanto à sua autodestruição. Assim como acontece com sua contraparte humana, a raça também é capaz de produzir heróis e vilões em iguais proporções – cada um com suas próprias motivações e escolhas.
Belas criaturas (ao seu próprio modo)
A humanização dos orcs, aliás, é o grande trunfo de “Warcraft”, e só foi possível graças a um trabalho estupendo da Industrial Light & Magic – uma das companhias mais tradicionais e competentes do setor de efeitos especiais. É possível dizer, sem muito medo de errar, que a ILM, nesse filme, levou a criação de personagens digitais a um novo patamar. Isso porque, além de realizar uma captura de movimentos fantástica dos atores – resultando em animações muito fluidas na tela – o nível de detalhes aplicado nos integrantes dessa raça é absurdo.
O mais bacana é que essa dedicação não se limita a cenas de ação ou a reproduzir veias e músculos de corpos alienígenas com quase três metros de altura: o investimento na raça se reflete a todo momento. A dor nos olhos de Durotan ao observar a situação de seu povo, por exemplo, é extremamente realista, com o mesmo podendo ser dito sobre a alegria de sua esposa Draka (Anna Galvin), nos estágios finais da gravidez. A crueldade de Blackhand (Clancy Brown) e a corrupção de Gul'dan também ficam claras em expressões e trejeitos.
Os orcs são expressivos e muito bem representados na obra.
Essa naturalidade na apresentação dos orcs faça com que a presença deles em tela seja bastante celebrada, independentemente de ser uma cena de disputa entre clãs, de batalha com humanos ou uma simples conversa entre companheiros de guerra de longa data. Lá pelo meio do filme, fica fácil de imaginar um capítulo da série que traga apenas esses guerreiros como personagens principais da produção.
De resto, a ILM também teve bastante trabalho para representar a magia nos cinemas. Vale notar que, nesse caso, tudo é muito mais colorido, chamativo e brilhante do que costumamos ver em produções de fantasia, mesmo quando colocamos algo como “Harry Potter” na jogada. O visual dos feitiços passa a funcionar depois que você se acostuma com eles nesse universo específico, mas há, sim, uma estranheza inicial e algumas decisões duvidosas no caminho – como o clichê de “olhos brilhando” na hora de conjurar feitiços.
Um caminho possível
Talvez a comparação mais correta a ser feita em relação a “Warcraft” seria não com as obras de Tolkien, mas sim com filmes de super-heróis. Em primeiro lugar, é possível traçar um paralelo com muito do que a Marvel anda fazendo no cinema, oferecendo longa-metragens divertidos e acessíveis para o público geral – simplificando muito do confuso material original – ao mesmo tempo que se esforça em agradar o fã de longa data do produto, que encontram uma segunda camada de informações e experiências ao longo da sessão pipoca.
Com exceção de alguns tropeços no ritmo da trama, como mencionado anteriormente, “Warcraft” realmente pode ser digerida como uma aventura bem divertida por marinheiros de primeira viagem nesse mundo. Para os aficionados pelo trabalho da Blizzard, a brincadeira é ainda mais interessante, uma vez que o longa-metragem traz easter eggs na medida certa, transfere muito bem o mundo do jogo para uma nova mídia e não ofende em mudanças mais bruscas nessa transposição da mitologia – embora o visual da Garona deva gerar reclamações.
A aparência mais humana da meio-orc pode fazer fãs torcerem o nariz.
No entanto, o produto está longe de ser perfeito, tendo que comer muito arroz com feijão para chegar no patamar da Marvel – o que não é exatamente um demérito, já que mesmo a gigantesca Warner e sua DC andam sofrendo para alcançar esse nível. Isso quer dizer que a correlação com o segmento supers se dá apenas no acesso fácil a um universo originalmente denso? Não exatamente, uma vez que é outra geração de filmes de heróis que se encaixa mais no que “Warcraft” representa: os icônicos “X-Men” e “Homem-Aranha” dos anos 2000.
Olhando para trás, os dois primeiros “X-Men” e “Homem-Aranha” podem parecer obras cheias de defeitos e que não chegam aos pés de títulos badalados como “Capitão América: Guerra Civil” ou “Guardiões da Galáxia”. Não dá para esquecer, porém, que foram eles que trouxeram esse universo das HQs para uma versão mais real e popular, literalmente criando um público para essas obras e construindo o alicerce para o que viria em seguida. A história de orcs e humanos representa esse diamante em estado bruto, pronto para ser lapidado no futuro.
Em um determinado elemento, ‘Warcraft’ dá um banho nas franquias de super-heróis, tocando em um dos pontos fracos até mesmo da própria Marvel: o desenvolvimento do vilão
Ah, vale dizer que, em um determinado elemento, “Warcraft” dá um banho nas franquias de super-heróis, tocando em um dos pontos fracos até mesmo da própria Marvel: o desenvolvimento do vilão. Enquanto esses antagonistas são descartáveis para mutantes, vigilantes e vingadores – caindo no arquétipo de “monstro da semana” –, Gul'dan mostra a que veio do começo ao fim. O bruxo orc é interessante e repulsivo em doses iguais e possui uma boa aura de mistério, lembrando mais os intrigantes vilões principais de “Star Wars”.
Afinal, será que vai dar certo?
Apesar de não contar com um elenco propriamente estelar, o longa traz nomes e rostos conhecidos, incluindo até uma ponta surpresa feita por uma atriz renomada. O nível de atuação varia bastante, com alguns artistas realmente envolvidos com seus personagens enquanto outros parecem estar cumprindo tabela. Alguns dos diálogos também acabaram ficando muito duros, fazendo com que cenas que, teoricamente, teriam grande impacto emocional, acabem ficando um pouco desconexas ou aquém do esperado.
Esse aspecto, especificamente, é bem estranho quando se leva em conta que se trata de um filme que tem direção e roteiro assinados por Duncan Jones, que faz um trabalho sensacional com textos inteligentes e dinâmicos em “Lunar” e “Contra o Tempo”. Mesmo assim, a diversão aparece em abundância, o enredo provoca e deixa pontas soltas e há espaço de sobra para que a série evolua em capítulos posteriores. Para viabilizar sequências, no entanto, “Warcraft” vai precisar superar algumas barreiras.
Se tiver a chance de dar sequência a sua história, "Warcraft" pode fazer a diferença nos cinemas.
Isso porque os trailers e o material de divulgação podem ter vendido mal a obra. Em muitos dos clipes e teasers, por exemplo, a impressão é de que a produção teria ares fortes de “jogo de video game”, algo que pode ter afastado possíveis espectadores buscando uma fantasia mais pé no chão. Basta assistir aos primeiros 15 minutos do filme para entender que essa percepção é incorreta, uma vez que “Warcraft” exibe, por vezes, um clima bastante pesado e traz temas cruéis à mesa – como o “combustível” utilizado no portal entre os mundos.
Essa confusão inicial também acontece com o jovem Haddgar, que é representado nos trailers como um tipo de alívio cômico e, na história final, assume praticamente o papel de um terceiro protagonista – ainda que concentre em si boa parte do humor na tela. No fim, o filme deve agradar especialmente aos fãs dos jogos e tem potencial para conquistar, sim, um novo público, mas vai precisar contar muito com o boca a boca e número expressivos nas bilheterias mundiais para tentar abocanhar o título de salvador dos games em Hollywood.
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