Quando surgiu o Sars-CoV-2, identificado pela primeira vez em Wuhan, na China, já havia indícios fortes de que a probabilidade de pandemia seria alta. O impacto local na sobrecarga do sistema de saúde em curto espaço de tempo, a alta velocidade de propagação, a taxa de reprodução básica acima de 2 eram sinais muito relevantes.
Tudo isso já sinalizava que as hipóteses de transmissão inter-humana, proporção significativa de casos leves ou assintomáticos e transmissão por aerossol, eram possibilidades reais, que acabaram se confirmando ao longo do tempo.
Passado 1 ano e meio da pandemia, mais uma variável entra no jogo. Isso já era esperado, dado que é o padrão para vírus respiratórios. Erros de replicação viral ocorrem em uma proporção definida. A maioria dos erros são maléficos para o vírus, porém eventualmente um desses “erros” aleatórios fazem o vírus ter uma vantagem adaptativa em relação ao vírus original.
Dessa forma, ao longo do tempo, essa nova variante tende a ganhar espaço e a dominar a população viral. Ainda assim, boa parte das novas variantes não geram grandes mudanças práticas do ponto de vista da relação do vírus com o humano. Por outro lado, há algumas características que podem fazer algumas dessas variantes se tornarem relevantes. São as chamadas variantes de interesse” (VOI), variantes de preocupação (VOC) e variantes de grandes consequências (VHC). Há critérios bem-definidos para essa classificação.
As principais características que interessam são: transmissibilidade, escape do sistema imune e gravidade. Até o momento, não há nenhuma variante de grande consequência (VHC), mas inúmeras inúmeras variantes de interesse (VOI). As variantes de preocupação (VOC) acabam sendo mais conhecidas, pois são as que já se tem convicção de que geram consequências práticas do ponto de vista epidemiológico. É o exemplo da variante P.1, que já representa mais de 90% das variantes testadas no Brasil.
A propósito, cabe ressaltar que não se deve nomear as variantes de acordo com a origem delas. Por exemplo, é errado tratar a variante P.1 como a “variante brasileira”, o B.1.1.7 como a variante inglesa, o B.1.351 como a variante sul-africana ou a variante B.1.167.2 como a variante indiana. Por outro lado, é extremamente difícil para não técnicos decorar essas letras e números.
É por isso que, a partir de junho/2021, a OMS passou a nomear as VOI, VOC e VHS de acordo com o alfabeto grego (quadro 1), sendo que o B.1.1.7 passa a ser chamada de Alpha, a B.1.351 passa ser Beta, a P.1 passa a ser Gamma e a B.1.617.2 passa a ser chamada de Delta. Vão se acostumando com essa nova nomenclatura.
Quadro 01 — Novas designações das VOC
Quadro 01 — Novas designações das VOC. (Imagem: Organização Mundial da Saúde)
Dado que o surgimento de uma nova variante é esperado em uma certa proporção de novos vírus, uma das principais variáveis para que novas variantes surjam é a quantidade de vírus circulante. O mês de abril/2021 foi o mês de maior circulação de vírus no mundo.
De acordo com o Institute of Health Metric and Evaluation (IHME), chegamos a um pico de 11 milhões de novas infecções. Isso significa algo próximo a 50 milhões de indivíduos com o vírus ativo no organismo. O pico de incidência em 2020 foi de 5 milhões. Cada um desses indivíduos é uma oportunidade para o surgimento de um novo vírus. Se até o momento já temos 4 VOI, há a expectativa de que isso aumente nos próximos meses.
Voltando às características das variantes de preocupação (VOC), há fortes evidências de que a variante Gamma (P.1) seja mais transmissível e relacionada a alguma perda da eficácia das vacinas, apresentando maior gravidade. A variante Delta (B.1.617.2), já identificada em alguns pacientes no Brasil, tem provavelmente maior transmissibilidade comparada à Alpha (B.1.1.7), que já era por sua vez mais transmissível.
Na prática, significa que nos locais onde há variantes mais transmissíveis, o nível de esforço necessário para que se atinja taxa de reprodução efetiva abaixo de 1 (Rt<1) se torna maior. Exemplos desse efeito são o Vietnã e Taiwan, que não tinham tido problemas com o vírus até o momento, além do Japão que viveu em maio seu pior momento na pandemia (Figura 1). O Reino Unido, a Índia e o Amazonas sofreram os efeitos dessa variável (Figura 2).
Figura 1 — Incidência diária de casos por milhão de habitantes no Japão, em Taiwan e no Vietnã
Figura 1 — Incidência diária de casos por milhão de habitantes no Japão, em Taiwan e no Vietnã. (Imagem: Our World in Data)
Figura 2 — Incidência diária de casos por milhão de habitantes na Índia, no Reino Unido e no Amazonas
Figura 2 — Incidência diária de casos por milhão de habitantes na Índia, no Reino Unido e no Amazonas. (Imagem: Our World in Data)
Resumindo, as novas variantes têm o potencial de alterar a equação da pandemia e mudar as regras do jogo. Todo o esforço necessário para controlar a transmissibilidade viral — medidas de restrição da mobilidade, ampliação de testagem para identificação de casos com isolamento, contact tracing e até vacinação — podem deixar de ser suficientes.
A imunidade de rebanho não é uma linha de chegada, mas um estado momentâneo e relativamente frágil. É por isso que passou da hora de a pandemia ser enfrentada na perspectiva de uma ação global integrada. Enquanto todos não estiverem seguros, ninguém estará seguro.
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Bernardo Almeida, colunista do TecMundo, é médico infectologista e Chief Medical Officer da Hilab, health tech que desenvolveu o Hilab, primeiro laboratório descentralizado que usa testes laboratoriais remotos. É médico especialista em Infectologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), com residência médica em clínica médica e medicina interna no Hospital de Clínicas — UFPR e em infectologia no Hospital de Clínicas — UFPR, mestrando da UFPR em Medicina Interna, área de doenças Infecciosas — Epidemiologia das síndromes respiratórias agudas graves em adultos. Tem experiência na área de medicina com ênfase em clínica médica e doenças infecciosas e parasitárias, bem como participa de grupos de pesquisa na área de vírus respiratórios.
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