We Happy Few tem identidade confusa e é outro lar de ideias mal executadas
*A videoanálise está em produção e será adicionada em breve
Quando apresentado na E3 2016, durante a conferência da Microsoft, We Happy Few usou uma boa dose de violência, e de um senso perturbador, ao mostrar um “piñata”, aquele recipiente com doces que são espalhados após a quebra do objeto, jorrando sangue e ratos mortos como sobras.
O jogo, na verdade, foi publicamente revelado pela primeira vez na PAX East de 2015, quando a Compulsion Games lançou uma bem-sucedida campanha no Kickstarter. We Happy Few é o segundo jogo do estúdio independente, que também assina Contrast, uma aventura que segue a mesma estética retrô, em Art déco, lançada no limiar da atual geração.
No papel, We Happy Few é lindo: ele veste uma roupagem retrofuturista nos meados de 1960, ainda na ressaca da Segunda Guerra Mundial, só que, aqui, numa versão alternativa do evento, dentro de um cenário distópico que bota o jogador no controle de três personagens diferentes – que representam, basicamente, os atos 1, 2 e 3 –, cada qual com sua própria versão do mundo.
Obras como “1984”, “Neuromancer”, “Laranja Mecânica” e “Admirável Mundo Novo” (uma das minhas favoritas), entre outras, serviram de inspiração para que a equipe pudesse criar um universo que tenta, a todo momento, ser uma espécie de sucessor espiritual de BioShock. Conforme mencionado, no papel é lindo, certo? Na prática, a coisa se traduz de maneira bem diferente.
Identidade conflituosa
O acesso antecipado às fases preliminares de We Happy Few, concedido há mais de dois anos, serviu para que a Compulsion – agora um estúdio sob o guarda-chuva da Microsoft – utilizasse o feedback dos jogadores para aplicar as melhorias necessárias a um jogo de natureza essencialmente single-player.
Um game que, aliás, está disponível para PS4, Xbox One e PC, tendo sido publicado e distribuído pela Gearbox com apoio da Microsoft Studios – isso estava acordado antes do estúdio independente ter sido comprado pela gigante. É daqui em diante que a dona do Xbox doará toda sua força em novos investimentos para essa equipe.
A identidade que o time quis dar a We Happy Few foi, desde o começo, divulgada de maneira dúbia: um “jogo em primeira pessoa que combina RPG, narrativa, elementos de roguelike, survival e stealth”. O fato de querer ser um produto multifacetado é nobre; a execução dessa mistura, no entanto, precisa ser impecável. Do contrário, fica igual um pato: quer voar, nadar, correr e não faz nada disso direito.
A maior falha de We Happy Few é sua sonífera apresentação: a narrativa de fundo, em vez de questionar um mundo tão brilhante e, paradoxalmente, torto, dá espaço a uma série de questões boçais num tom de humor que, em vez de empregar carisma, deixa tudo enfadonho demais.
É aí que começa a falta de uma identidade firmada em We Happy Few: a história é extremamente mal apresentada, com personagens que não conseguem se conectar ao jogador e, pior que isso, não despertam um senso de importância, não criam um elo emocional que faz você se engajar minimamente com cada um deles.
Tudo é uma bacafuzada em execução; é como se Dark Souls, subjetivo que é, desse uma aula de clareza e boa explicação. Um se propõe a ter sua natureza implícita, escondida e manifesta por meio de descrição de itens e diálogos; o outro se dispõe a entregar uma narrativa rica num mundo distópico, numa trama distribuída em três personagens, e falha miseravelmente nessa tarefa, seja pelos diálogos insossos e desinteressantes – muitos deles sem qualquer coesão – quanto pela falta de personalidade dos personagens.
O primeiro ato é representado pelo britânico Arthur Hastings, responsável por “censurar” e remover histórias ofensivas em jornais na cidade de Wellington Wells. A personagem seguinte, Sally Boyle, estampa o segundo ato: ela foi uma das assistentes de um dos criadores do “Joy”, traduzido para “Alegria” mesmo, uma espécie de substância que as pessoas tomam para mudar seu nível de sobriedade e ver o mundo de outra forma – a sociedade distópica prevê que todos devem usar o produto ou serão “violadores da lei e das pessoas de bem”. Por fim, o terceiro ato é carregado por Ollie Starkey, um ex-soldado que recusou usar tal substância e se rebelou ao sistema, tornando-se um exilado que vive às margens da sociedade.
A tentativa de BioShock...
Desde sua primeira exibição ao mundo, We Happy Few tem sido verbosamente referenciado a BioShock, e oras, a inspiração é ótima. We Happy Few é abertamente influenciado pelo jogo da 2K, mas quase como um usurpador: ele tenta, a todo momento, incansável e insistentemente, ser um sucessor de BioShock.
Durante a exploração, o terror, tão proeminente no primeiro BioShock, é beliscado diversas vezes com ameaças de sustos, banheiros pútridos, goteiras incessantes e um looting que também bebe da fonte de Fallout. Lembra-se dos plasmids? Ou do Adam, a substância coletada de cadáveres pelas Little Sisters? Protegidas por um imponente Big Daddy cada uma? Pois bem: a Alegria que você deve consumir em We Happy Few é uma versão atualizada disso – não necessariamente melhorada, apenas diferente. Mas a concepção é parecida, dadas as ressalvas de cada um, e isso vale para bem e para mal.
Além disso, os inimigos e NPCs se comportam de maneira similar aos Splicers, os humanos corrompidos de BioShock 1 e 2. Quando te avistam, eles geralmente soltam um grito de exclamação e partem para cima de você feito animais desgovernados, sem racionalidade, portando uma inteligência mínima. Em We Happy Few, quando os agressores agem em conjunto, podem ser perigosos e requerem o stealth; sozinhos, são inofensivos, especialmente porque a fraca inteligência artificial do jogo vai arrefecer o seu senso de desafio.
Mistureba do gameplay
A entoada da loucura tem seu preço: embora a narrativa seja mal apresentada e tenha personagens pouco atraentes, o gameplay, truncado que só, tem seus lampejos. Falta um norte ao querer abordar tantas vertentes e não acertar profundamente em nenhuma delas, mas há um tom de nobreza no looting e no crafting.
A busca por recursos é o senso de survival à la Fallout e, novamente, BioShock: armários, escrivaninhas, gavetas, geladeiras, caixas e baús podem ser vasculhados e costumam reservar fitas, bebidas, esparadrapos, tesouras, tocos de madeira e, por vezes, outras armas corpo a corpo, como pés de cabra, canos e afins.
Essas pequenas parafernálias podem ser utilizadas para criar toda a sorte de coisas, desde itens de cura até ferramentas customizadas e gazuas que abrem fechaduras trancadas. Somado a isso há um generoso leque de habilidades que aprimoram o stealth, aumentam a energia, melhoram o faro de looting e oferecem outros upgrades. Existe um certo grau de profundidade mais interessante aqui – algumas das habilidades fazem sentido dentro das limitações do jogo.
Já o combate corporal, que é todo desengonçado, nem pode ser tão julgado; não é exatamente o foco de We Happy Few. Mas existe, está ali, dentro de uma mistureba survival-RPG-roguelike-stealth, e, quando é solicitado, apenas cumpre seu papel – sem brilho nem charme, devo dizer, e muito menos sal.
Estar com o medidor de Alegria no alto, por outro lado, promove sensações curiosas não somente no mundo de jogo e nos personagens como também no próprio jogador: as animações de movimentação e as expressões faciais dos NPCs, por exemplo, mudam completamente; eles se tornam mais altivos e entufados, até com um tom de arrogância.
Todos caminham mais “saltitantes” nesse estado de espírito, e qualquer flutuação na atmosfera pode ser suficiente para irritar essas “pessoas de bem”, como o próprio jogo as classifica – correr perto delas, por exemplo, já é o bastante para despertar a ira que mora sob esse falso espectro de felicidade.
Veredito
A Compulsion Games acertou muito mais em Contrast, seu primeiro jogo, do que em We Happy Few, que é apenas sua segunda produção. E isso se deu por um fato singelo: a proposta do primeiro é muito mais clara e delineada do que a ramificação de ideias do segundo.
A exaustiva cruzada em tentar ser um BioShock de nossa era não é o ponto cabalístico de We Happy Few – afinal de contas, trata-se de uma inspiração nobre, com direito, aliás, a um troféu/conquista que faz alusão à franquia da 2K. Sua tentativa em ser multifacetado é legal na intenção, mas ruim na execução.
A trama, prometida como um “rico elemento” da experiência, é tão sem sal quanto os personagens nela envolvidos, sem carisma, sem coesão narrativa e com diálogos insossos. O gameplay sustenta um rebote disso; não é o salvador da pátria e, dentro de sua natureza multifacetada, reserva pontos positivos, principalmente no que diz respeito à exploração, que resulta em looting e crafting satisfatórios, mas com a mesma falta de sal das outras questões supracitadas.
As ótimas ideias e grandes inspirações de We Happy Few, no entanto, certamente darão pano pra manga por algum tempo. Olhando-se o cenário com bons olhos, enxerga-se potencial na Compulsion pelo horizonte que está por vir, o qual, agora, pertence à Microsoft – portanto, investimentos não vão faltar.
Categorias
- Ótimas inspirações em distopia dentro da estética retrofuturista
- Looting e crafting satisfatórios
- A substância Alegria traz nuances curiosas ao comportamento das pessoas
- História mal apresentada e pouco coesa
- Personagens sem carisma, sem sal e com diálogos insossos
- Inteligência artificial desengonçada
- Perda de identidade em função da abordagem multifacetada, que exaustivamente busca BioShock
Nota do Voxel