Quando o excesso de ordem traz a saudade do caos
ATENÇÃO: Além da análise crítica, não deixe de conferir também nosso superconteúdo Especial The Order: 1886, com informações extras sobre a mitologia do jogo e o desenvolvimento do projeto
A Ready at Dawn é uma desenvolvedora com um histórico curioso. Exceto por Daxter, de PSP, seus trabalhos nos últimos 10 anos se resumiram a spin-offs e ports de God of War e um port de Okami para o Wii. De repente, é conferida a ela a responsabilidade de desenvolver o exclusivo mais “quente” desde o lançamento do PlayStation 4.
O marketing sobre The Order: 1886 tem sido misterioso, porém constante nos últimos meses. Já vimos que trata-se de um jogo tão belo que beira à indecência, e que o projeto parece prezar muito pela narrativa — Cavaleiros da Távola Redonda, conspirações, Revolução Industrial, lobisomens e uma série de elementos interessantes —, mas será que ele é, de fato, aquilo que esperamos?
Após gastarmos vários dias acompanhando as notícias e entrevistas, preparando superconteúdo para o lançamento do game e concluindo sua campanha, trazemos a seguir nossas impressões sobre esse título que tem sido tão falado — e criticado — nas últimas semanas.
A Ordem de 1886
A mitologia por trás de The Order: 1886 é rica, apesar a campanha trazer isso de forma um pouco superficial. O Rei Artur morreu no século 5, mas a Távola Redonda não acabou. Seus membros formaram uma sociedade conhecida como “A Ordem”, uma força especial à serviço do Império Britânico, pronta a combater seres monstruosos conhecidos como “Mestiços”.
Através de um líquido místico chamado “Água Escura”, os Cavaleiros se recuperam de seus ferimentos e ganham longevidade, podendo viver por vários séculos. O Chanceler da Ordem, por exemplo, é o mais velho do grupo e lutou ao lado do próprio Artur.
Você controla Grayson, o terceiro homem a ocupar o cargo de “Sir Galahad” desde a criação da Távola. Sebastian Malory (Sir Perceval), Isabeau D’Argyll (Lady Igraine) e o Marquês de Lafayette são seus companheiros de esquadrão e acabam se mostrando personagens interessantes. Por fim, o gênio inventor Nikola Tesla produz armas e bugigangas para a Ordem — além de ter mais tarde um papel crucial no desenvolvimento da trama.
O clima do jogo é sombrio e o enredo brinca de conspiração fantástica, com eventos históricos mal explicados, como os misteriosos assassinatos do anônimo “Jack, o Estripador”. Os problemas sociais desencadeados pela Revolução Industrial são plano de fundo para os conflitos da Polícia Metropolitana com os rebeldes e a Rainha Victoria não é exatamente muito popular nos guetos da capital inglesa.
À primeira vista
Não dá para fugir do óbvio: The Order é visualmente lindo — talvez o jogo mais bonito que chegou a um console. Não trata-se apenas de suas texturas e iluminação que simulam com perfeição a realidade, tem a ver também com as animações, as feições dos rostos, a movimentação dos cabelos e tecidos... É perceptível o capricho excepcional na direção de arte.
Se você tiver um pingo de curiosidade, vai querer gastar algum tempo explorando os mapas que encontra pelo caminho. Além do próprio cenário, há objetos com os quais é possível interagir — jornais e fotografias antigas, por exemplo. Tudo que diz respeito à concepção artística do jogo é de cair o queixo e suas invencionices estéticas — como tecnologia estilizada e figurinos — de são artigo de primeira.
Coisa de cinema
Este é um projeto que desde os primórdios tem sido anunciado por seus desenvolvedores como algo que pretende passar uma “experiência cinematográfica”. O conceito permeia o jogo de forma geral: cutscenes em tempo real se mesclam com perfeição com gameplay; contra-planos e ângulos diferentes simulam uma câmera filmadora em ação; a forma com a qual se visualiza um documento; o extremo cuidado com o sistema de colisão...
A própria perspectiva padrão tem proporção de tela de 21:9, para que você se sinta no cinema — ou para aliviar 30% dos pixels na tela e fazer com que o console dê conta do processamento, se você prefere a justificativa mais cruel para as tarjas pretas.
The Order: 1886 é um filme interativo de alto orçamento — daqueles que são indicados ao Oscar nas categorias artísticas. Então, você acompanha intrigado as viradas meio pevisíveis — porém dramáticas do enredo— , enquanto se afeiçoa aos personagens carismáticos, ao som de uma trilha sonora maravilhosa.
Mãos às armas
O arsenal do jogo definitivamente chama atenção. Sim, temos as tradicionais pistolas, escopetas e espingardas, mas nós também temos uma série de armas malucas, como o Fusil de Termita, que lança pastilhas em uma liga de óxido de ferro e alumínio e depois acende, incendiando o alvo. A Arma de Arco é outra peça muito interessante, que lança uma arco elétrico capaz de mutilar ou simplesmente decapitar o alvo.
Porém, é uma pena que este arsenal não esteja disponível de forma progressiva. Como tudo em The Order: 1886, seu acesso ao armamento e aos equipamentos é ditado pelo desenrolar da campanha, de forma “predestinada” — sem esforço, sem desafio, sem motivação para evoluir.
O preço da perfeita “filmagem”
Pois é, se por um lado a desenvolvedora foi meticulosa ao transformar o jogo em uma experiência cinematográfica, por outro isso acabou custando a liberdade no gameplay. The Order insiste em tomar o jogador pela mão e condicioná-lo a executar comandos da forma mais limitada possível.
Não há espaço para estratégia. A cada barricada, as restrições impostas de forma proposital pelo level design obrigam você a realizar exatamente as ações que o sistema deseja. Tudo é determinado pelo jogo, como em um roteiro engessado. Os botões surgem na tela durante toda a trajetória, sem opção de desabilitar sua exibição. Não importa que você já saiba como se esquivar ou realizar uma ação, o “tutorial” vai sempre insistir em guiar você.
Além disso, é preciso lidar com os infames quick time events — o game está infestado deles. Até mesmo os dois únicos “chefes” da campanha — se é que podemos chama-los assim — são combatidos da mesma forma boba, apertando botões indicados no tempo certo. Não há a mínima sensação de conquista, de que você fez algo por conta própria. É como se tudo fosse ordenado, impedindo a liberdade, o "caos" e a aleatoriedade — elementos que se espera de um game.
Lobisomens em extinção
The Order: 1886 também desaponta por entregar pouquíssimo dos tais Mestiços — os licantropos, que achávamos ser os principais inimigos do jogador. As três ou quatro vezes que você enfrenta alguns deles são apresentadas de forma repetitiva. Para lidar com os bichos é só ficar no mesmo lugar, atirando de longe e desviando — com um quick time event, é claro.
A luta contra os lobisomens comuns lembra aquele tipo de combate "matar cachorros em Resident Evil". Um inimigo mais ágil e que requer reflexos e certa velocidade, mas nada mais que um simples minion alternativo.
Quando a história finalmente segue por um rumo que poderia trazer variação ao gameplay, os novos inimigos que o jogo introduz ficam apenas “no papel” e você não tem chance de lutar contra eles. Trata-se de uma expectativa inevitável, que é frustrada logo em seguida, quando você descobre que o jogo está fadado a oferecer apenas mais do mesmo combate convencional contra humanos até o fim da campanha.
The Order não é um “Gears of War de bigode”. Seu excesso de linearidade o aproxima muito mais de games como Ryse: Son of Rome. As possibilidades de improvisação e flanqueamento que a série de Marcus Fenix nos oferece, aqui são substituídas por combates que parecem estar sobre trilhos. A oportunidade que Ready at Dawn perdeu ao não inserir um multiplayer cooperativo é substancial. A campanha teria ficado muito mais dinâmica.
Dublagem em português
Mais uma vez nos encontramos naquele momento sortido que nos dirá se a dublagem regionalizada de um game é uma vantagem ou motivo de desgosto. Neste caso, a alternativa nacional fica em uma situação ainda mais difícil de agradar, visto que a atuação das vozes originais é absolutamente fantástica.
Felizmente, o resultado ficou acima da média. Exceto pela voz de Sir Galahad — que não possui firmeza alguma quando comparada à versão excepcional do ator Steve West —, as demais vozes do elenco funcionam muito bem.
Destaque para o sotaque francês usado no Marquês de Lafayette — detalhe importante, porém frequentemente ignorado em várias versões brasileiras — e para o sempre ótimo Orlando Drummond, que dubla o Lord Chanceler, líder da Ordem.
Vale a pena?
The Order: 1886 é um espetáculo visual, uma convergência quase perfeita de do cinema para o video game. O background de sua história é muito interessante, despertando curiosidade sobre eventos que o enredo menciona rapidamente. Grayson tem atitudes meio convenientes demais e pouco fundamentadas, mas Isabeau, Lafayette e Sebastian são personagens fascinantes e que expressam sua humanidade de forma suficientemente convincente.
É importante mencionar que a campanha não é tão curta quanto dizem. É claro que na correria, à la speedrun, você consegue concluir tudo em quatro ou cinco horas, mas jogando na dificuldade normal, em ritmo padrão, duas pessoas do BJ terminaram o jogo com uma média de sete a oito horas. Uma duração razoável, se não fosse a falta de vantagens para um replay, devido à ausência de um multiplayer ou desafios posteriores.
É uma questão de perspectiva
Os atuais blockbusters da indústria de games buscam cada vez mais expandir seus recursos para tornar o título o mais complexo e completo possível. A pergunta é: um triple A ainda pode se dar ao luxo de investir em experiências mais restritas... Sem um mundo aberto, sem um multiplayer?
A verdade é que o quanto você vai gostar de The Order vai depender do que você espera dele. Se o encaramos como um game padrão, percebemos um enorme potencial desperdiçado no exagero da linearidade e no pouco aproveitamento de inimigos interessantes na trama. Porque raramente o jogador se sente em um game, nunca tem a sensação de que pode fazer algo diferente do roteiro.
Mas se o encaramos como uma história interativa, na linha de Beyond: Two Souls e tantos outros, as coisas tornam-se mais positivas, principalmente se o que você busca está mais na narrativa e menos na jogabilidade. Afinal, com todos os seus defeitos, a condução de eventos e a apresentação disso na tela é feita com maestria.
The Order: 1886 é encantador como Londres, fotogênico como um longa-metragem e antiquado como as práticas da Era Vitoriana. Definitivamente está acima da média, mas dificilmente ocupará um dos disputados lugares na Távola dos melhores títulos do ano.
Categorias
- O jogo mais belo que já veio para um console
- Direção de arte fantástica
- Personagens carismáticos
- Mitologia interessante
- Excelente trilha sonora
- Excelente dublagem em inglës, dublagem acima da média em português
- Armas criativas
- Linearidade extrema; total falta de liberdade
- Combate repetitivo
- Incontáveis quick time events
- Dezenas de oportunidades desperdiçadas, como um modo cooperativo
- Inimigos medíocres; excesso de combate contra hordas de humanos; combate com os Mestiços é bobo e limitado
Nota do Voxel