Shenmue III tem seus méritos, mas é para um museu de grandes novidades
Há quase duas décadas, quando a Sega ainda atuava no mercado de consoles com seu Dreamcast, Ryo Hazuki e Shenhua Ling entravam em uma caverna, chegando cada vez mais próximos de desvendar o grande mistério por trás dos espelhos do dragão e da fênix. Assim terminava Shenmue 2, lançado em 2001 como a última esperança de alavancar as vendas do Dreamcast e salvá-lo de um fim prematuro.
Mas assim como o primeiro jogo, o segundo foi muito elogiado pelas críticas, mas pouco assimilado pelo público, resultando em vendas aquém do esperado. Assim, a Sega descontinuou seu Dreamcast e Shenmue entrou de vez em um limbo do qual ninguém, nem mesmo o criador Yu Suzuki, saberia se um dia iria sair.
Os anos se passaram e as tentativas de trazer a franquia de volta fracassaram, até que na E3 de 2015, foi anunciado que Shenmue III seria de fato produzido, mas com o dinheiro dos fãs através do site de financiamento coletivo Kickstarter. Quatro anos depois, aqui estamos nós, com a sequência da aventura de Ryo nas mãos, dezoito anos depois do final abrupto. Mas valeu a pena esperar?
Bem, a verdade é que Shenmue III é uma autêntica experiência de Shenmue... para o bem e para o mal.
Vícios e virtudes
Continuando exatamente de onde o segundo game parou, Shenmue III mostra Ryo na companhia de sua nova companheira de viagens, Shenhua, que o guia pelo pacato vilarejo de Bailu, onde os espelhos foram construídos por várias gerações da família da menina. Sabendo que Lan Di está em algum lugar por ali e disposto a tudo tanto para desvendar os mistérios envolvendo o passado de seu falecido pai quanto para se vingar do homem que o matou, Ryo começa uma nova busca.
E ela é conduzida exatamente da mesma maneira que era nos outros dois jogos da série: fale com pessoas, peça informações, depois fale com mais pessoas, siga pistas, desvende o mistério da vez, repita. Isso pode ser interessante para os fãs de longa data da franquia, mas dificilmente irá atrair um novo público porque, bem... a verdade é que Shenmue envelheceu mal.
O novo game conta com os mesmos vícios e virtudes dos títulos passados, mas os vícios podem acabar falando um pouco mais alto. Afinal, dezoito anos se passaram, e ao invés de adotar mecânicas de games que evoluíram e se inspiraram no próprio Shenmue, como a série Yakuza e o recente Judgement, o novo capítulo da saga se prende demais ao passado, se fechando em sua própria experiência.
A movimentação de Ryo, por exemplo, é idêntica ao que já foi visto antes, seja andando pelos ambientes ou lutando contra inimigos. O foco continua sendo na interação com os NPCs e com o mundo que os cerca ao invés de injetar mais ação, o que torna o ritmo do jogo lento e por vezes até mesmo tedioso. Isso piora ainda mais quando o título não dá a opção de pular diálogos repetitivos e cutscenes, o que para um título lançado em 2019 chega a ser revoltante.
Mas não podemos esquecer das virtudes, que também estão presentes aqui. Ao sair pelos cenários pedindo informações, você acaba entrando na vida de cada morador de Bailu, aprendendo sobre eles, os ajudando em suas tarefas e até se afeiçoando a cada um, passando a vê-los como se fossem seus amigos de verdade. Viver no vilarejo, trabalhando em troca de grana e desenvolvendo seu Kung Fu não é nada mal, desde que você tenha paciência para uma narrativa que demora um pouco a engatar. Até mesmo os divertidos minigames estão de volta, da bolinha que cai à corrida de tartarugas, sendo possível penhorar os prêmios faturados em troca de uma graninha básica.
Tá, mas e os gráficos?
Graficamente falando, Shenmue III não impressiona muito. Se você jogou os títulos clássicos há pouco tempo, vai passar por um choque básico ao ver Ryo sendo mostrado de uma forma um pouco mais "bonita". Os cenários nunca foram tão belos, dando até vontade de ignorar o relógio correndo no canto da tela e só parar um momentinho para admirar a beleza dos ambientes. Mas falando de uma forma geral, a sensação que temos é que esse jogo poderia muito bem ter saído no PlayStation 3.
Os personagens parecem ter sempre a mesma expressão facial, passando pouca emoção, e a câmera durante alguns diálogos pode ser bem esquisita. Em alguns momentos em que Ryo e Shenhua são vistos conversando enquanto caminham, por exemplo, a tela escurece, a câmera muda de ângulo, depois volta para o ângulo anterior, como se fosse a mesma cena se repetindo de novo e de novo, mas com falas diferentes. E isso se repete até os dois terem terminado o assunto.
Contudo, devemos lembrar que este é um jogo financiado via Kickstarter, sem um orçamento de dezenas de milhões de dólares de estúdios AAA por trás. Então, há de se pedir um pouco de compreensão quando falamos de qualidade gráfica em Shenmue III.
Mas agora vamos ao que interessa: o que mudou de lá para cá?
Mudanças mil
A primeira coisa que um fã de longa data de Shenmue nota ao experimentar o novo game são mudanças sutis nas opções e nos controles. Antes mesmo de o jogo começar, você pode escolher entre vários níveis de dificuldade, algo ausente nos jogos antigos. Essa dificuldade pode ser mudada a qualquer momento durante o jogo.
Outra novidade é a possibilidade de trocar de personagens durante a partida, algo que vai do interessante ao indispensável em alguns momentos da jogatina. Afinal, Shenhua é uma conhecida no vilarejo e Ryo não, então controlar a garota pode deixar a tarefa de coletar informações mais fácil.
Ryo, aliás, não precisa mais usar aquela jaqueta de couro 24 horas por dia. Agora os jogadores podem customizar o visual do personagem comprando uma nova jaqueta, camiseta ou tênis nas lojas.
A passagem do tempo, algo revolucionário quando o primeiro Shenmue foi lançado em 1999, também está aqui, com uma novidade que pode ser tanto uma chateação quanto aproximar mais o mundo do jogo do mundo real: conforme o dia passa, a energia de Ryo vai diminuindo, então é preciso alimentar seu personagem. Sim, itens de cura agora fazem parte da aventura, mas eles não podem ser usados durante os combates, apenas quando o protagonista estiver de bobeira por aí. E nem pense em não alimentar Ryo: se você correr com a energia em amarelo, já era.
Caindo na porrada
Os combates em Shenmue III são um misto de tradição e modernidade. Controlar Ryo durante uma luta é essencialmente igual aos outros dois jogos, o que é bom e ruim na mesma medida. A movimentação parece um tanto travada, dando para "sentir o peso" do personagem enquanto você tenta executar os comandos, que são atrapalhados pela perspectiva em 360 graus da câmera. Em alguns momentos, é como jogar Virtua Fighter, mas em outros, tudo o que dá para fazer é apertar botões e esperar que algo saia disso, ficando bem longe de fluidez de um Judgement, por exemplo.
Mas há novidades interessantes que tornam o ato de lutar um pouco mais proveitoso. Agora é possível atribuir golpes em botões de atalho no controle, não sendo necessário realizar um comando complicado para que Ryo execute uma técnica mais avançada. Suas técnicas, aliás, podem se tornar mais poderosas, a partir de um inédito sistema de níveis.
No dojo de Bailu, você pode treinar com bonecos de madeira, que fortalecem seu ataque, sua resistência e seu Kung Fu, algo essencial para seguir em frente já bem no comecinho da história. No dojo, você também pode treinar com monges guerreiros, aumentando o nível de suas técnicas avançadas para tirar mais energia de seus adversários. Também dá para desafiar os monges para lutas reais, te fazendo subir de nível entre os lutadores do local.
Isso traz uma sensação real de evolução que faltava nos jogos anteriores. É muito legal voltar para uma revanche contra alguém que te derrotou antes sabendo que agora você é muito mais forte do que era quando teve sua bunda chutada sem piedade.
Pequenas grandes novidades
Shenmue III traz algumas novidades pensadas para facilitar um pouco mais a vida dos jogadores na progressão da história. Além dos já mencionados itens de cura, que podem ser adquiridos em lojas, dá para colher várias ervas por aí, que quando misturadas, podem criar elixires e remédios com efeitos diversos.
Após ouvir uma informação importante sobre uma localização específica onde você encontrará um personagem importante para a narrativa, não é mais preciso procurar onde é ou percorrer longas distâncias, tampouco esperar a hora certa do dia para ativar o gatilho do encontro. Com o apertar de um botão, o protagonista é transportado imediatamente para o local e o horário exatos, poupando tempo – e paciência – do jogador.
A noite caiu e você já fez tudo o que tinha que fazer? Não precisa ser o fim: você pode ir até o barzinho local trocar uma ideia com a galera ou jogar conversa fora com a Shenhua em casa, descobrindo mais sobre a garota e sua vida simples no interior da China, fortalecendo ainda mais seus laços com ela.
No frigir dos ovos
Para os fãs hardcore da série, que esperaram pacientemente por quase duas décadas até verem a história continuar, Shenmue III é uma experiência plenamente satisfatória. O game carrega o mesmo feeling dos títulos clássicos, repetindo o que deu certo na época e apresentando pequenas evoluções no gameplay.
O problema é que o que funcionava antes, hoje envelheceu mal, tornando difícil a sempre complicada tarefa de renovar a base de fãs. Até há uma recapitulação dos eventos passados para situar os marinheiros de primeira viagem, mas é este apego ao passado que torna difícil o apelo do game para novas gerações que só ouviram falar dos feitos do saudoso Dreamcast. Desse modo, é seguro dizer que Shenmue III é um bom jogo – mas só para quem gosta de Shenmue.
Só resta aos fãs esperarem que o jogo venda bem e que não seja preciso aguardar mais vinte anos até o próximo título, isso se ele vier. Afinal, Yu Suzuki já mandou avisar que a saga não termina aqui e seria bem frustrante amargar mais uma espera por tempo indeterminado. A sorte está, mais uma vez, lançada.
Shenmue III foi gentilmente cedido pela Sega para a realização desta análise.
Fontes
- Uma continuação satisfatória de onde a aventura anterior terminou
- Ryo e o mundo que o cerca são mostrados pela primeira vez com gráficos um pouco mais atuais
- Belos cenários dignos de se admirar
- NPCs interessantes
- Novidades muito bem-vindas para os fãs de longa data
- Um botão de atalho para as técnicas de luta mais complicadas
- Sensação real de evolução e fortalecimento de seu personagem
- Gráficos ultrapassados para os padrões de hoje
- Jogabilidade muito pautada nos títulos clássicos, que envelheceram mal
- Narrativa arrastada
- Pouco apelo para a nova geração de jogadores
Nota do Voxel