Bagunçado, mas tão estrelado e com uma trilha que dá orgulho a Pink Floyd
A ficção científica é um gênero que costuma ter forte apelo futurista, até mesmo pela natureza de seu tema, especialmente se estiver embalada com uma generosa dose de terror. Com Prey, o sabor não é diferente, mas traz uma montanha-russa de emoções. Ora amargo, ora doce, ora salgado: após mais reviravoltas do que novela mexicana, com direito a mudanças de nome e de equipe, o jogo finalmente saiu do forno sob a discreta promessa de entregar uma experiência que misture vários ingredientes conhecidos e, dentro dos clichês, consiga se destacar.
Bote aí no liquidificador uma pitada de Dead Space, uma colher bem polpuda de Alien e, na cobertura do bolo, a cerejinha de System Shock: Prey é, essencialmente, um pouco de tudo e muito de si próprio, para bem ou para mal, desde as inspirações filosóficas até as mecânicas que escapam do tradicional – ainda que clichês sejam inevitáveis.
A Bethesda vem em uma ascendente curva de desempenho nos últimos anos: The Evil Within, Wolfenstein: The New Order, Fallout 4 e Dishonored 2 são todos aclamados e exemplos de uma Bethesda reformulada, sólida no mercado, a fim de entregar experiências honestas regularmente.
A Arkane Studios aproveitou a vasta experiência em Dishonored e foi escalada para usar seu talento numa ambientação sci-fi que belisca mais com o terror e menos com a ação. Prey não se satisfaz com pouco: ele quer uma pontinha de tudo. E essa mistura é boa e ruim ao mesmo tempo – com uma proporção um pouco mais favorável ao lado positivo da polaridade.
Ah, o “mindf*ck”...
Assim como em outros jogos que usam a fórmula da reviravolta, Prey consegue dar nós no cérebro logo nos primeiros minutos de jogatina. Acima de tudo, a aventura espacial do protagonista Morgan Yu é uma jornada sobre autodescoberta que aposta na receita do "quem sou eu?", em que a perda de memória, tão bem aplicada em filmes como “Amnésia” e a saga Jason Bourne, é o cerne dos problemas.
De cara, a estação espacial Talos I parece uma versão sci-fi de Rapture, a cidade submersa de BioShock
Para entregar a visão ambicionada pela Arkane, Prey usa o bom e velho clichê que sempre funciona para o ritmo da narrativa engrenar com rapidez: é apenas mais um dia de rotina do pesquisador Morgan Yu, que se submete a testes com potencial de revolucionar a ciência humana. De cara, a estação espacial Talos I parece uma versão sci-fi de Rapture, a cidade submersa de BioShock. A exploração remete aos corredores claustrofóbicos de System Shock e de Dead Space, e essa sensação é deliciosa. Eu estava morrendo de saudades dessa atmosfera específica, da qual a indústria tanto carece.
É claro que "algo dá errado", os alienígenas Typhon escapam do confinamento e se espalham por toda a estação espacial, que é colossal, sombria e tem um clima que acoberta você em um crepúsculo do mal. Explorar cada ambiente e cada cômodo requer um olhar cirúrgico: Prey tem um looting impressionante, com milhares de itens escondidos em armários, gavetas, escrivaninhas, mesas e afins.
O cérebro da narrativa e aquela patinada no gameplay
A partir do momento em que ocorre o primeiro plot twist (ou reviravolta, em bom português), o enredo engata na terceira marcha e deixa um tentador gancho na mão do jogador, que fica sedento de curiosidade. E isso, por si só, é capaz de sustentar toda a experiência; a aposta na narrativa, que funciona tão bem em shooters modernos desde a divisão de águas promovida por Half-Life, é sempre bem-vinda, e há muito mais cérebro nos jogos de tiro atuais do que nos noventistas – e olha que, por vezes, é difícil categorizar Prey como um shooter. Tradicional, definitivamente, ele não é.
A estrutura narrativa é piamente inspirada no primeiro BioShock. Lá em Rapture, para quem não se lembra, o personagem Atlas conduzia o jogador pelos subúrbios submersos da cidade nessa mesma pegada do "quem sou eu?", que depois da metade do jogo se transforma no principal fator motivacional para concluir a aventura, com um texto de estourar miolos e diálogos intrincados, por vezes desconexos – só não com tantos nós quanto BioShock Infinite.
Em Prey, isso acontece desde o começo, e existe até um Atlas aqui: January é o nome da inteligência artificial que guia Morgan para o suposto oásis do lugar. A busca de uma explicação mínima de tudo que está acontecendo ali é uma receita que dificilmente enjoa, quando bem aplicada. A tentativa de escapar “fisicamente” daquela estação espacial é o menor dos problemas – mas a fuga da realidade é o maior deles.
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Isso não necessariamente se traduz em um gameplay que funciona com o mesmo brilho. O intuito de mesclar um monte de coisas em um só pacote é ótimo na intenção, mas razoável na execução. O level design é bastante capcioso; não que ele não seja criativo, mas nem sempre favorece aquilo que o jogo quer empurrar goela abaixo em determinadas situações.
Como não há muitos lugares para se esconder, o stealth, por exemplo, raramente vai ser sua opção. Apesar de o jogo adotar o discurso de "siga o caminho que preferir" e até oferecer alternativas para que isso aconteça, assim como em Dishonored, sempre há um jeito mais óbvio de avançar, e nem sempre é o melhor.
Apesar de haver o discurso 'siga o caminho que preferir' e alternativas para que isso aconteça, sempre há um jeito mais óbvio de avançar, e nem sempre é o melhor
Se você optar pela abordagem sorrateira, prepare-se para uma sucessão de tentativas e erros – e nada de se aproximar de um alien por trás e golpeá-lo, pois isso só funciona uma a cada dez vezes. Esse incentivo, portanto, que a Arkane tão bem implementou em Dishonored, está um pouco disfuncional em Prey. Mas o contrapeso existe: você tem um baita arsenal à sua disposição. Prey está imbuído de um bom Metroidvania, ou seja, quanto mais você explora Talos I e traça rotas que não sejam as principais, mais armas e habilidades Morgan adquire.
Este, sim, é o verdadeiro trunfo do jogo: oferecer uma variedade de técnicas que interferem diretamente no seu poder de escolha. Assim como em BioShock e Half-Life, que consagrou a narrativa da ficção científica nos video games disfarçada em shooter, Prey dá a você uma chave inglesa logo no início, e jamais a subestime: é sua melhor companheira.
Vai e vem, vem e vai...
Depois de um começo estrondoso, fica evidente aquele que talvez seja o maior deslize de Prey: perda de ritmo. A busca da verdade segue eficiente até o final, mas sem a mesma injeção de adrenalina do início. Quando o efeito dessa dose começa a passar, você se vê realizando aquelas atividades triviais, clichês, que tanto entortam nosso impacto – do tipo buscar um cartão de acesso no bolso de um cadáver, restaurar a conexão de um servidor, reativar a energia, coisa e tal. O vai e vem, o vem e vai – mas com uma chacoalhão no jogador em alguns momentos oportunos, novamente graças à narrativa, capaz de salvar esses momentos de tédio nas 25 a 30 horas de campanha.
Além de uma pistola 9 milímetros e uma escopeta, Morgan carrega armas pitorescas, como a GLOO, que atira projéteis redondos, com uma espécie de gesso, capazes de paralisar inimigos. Já que o stealth não funciona tão bem, apele para o lado Rambo – que tem barba, cabelo e bigode bem old-school, com medkits para cura e colete, sem essa de regeneração automática de vida.
Quase um tofu!
Os Typhon, por sua vez, dão uma preguiça danada. No começo, é muito legal cruzar com os mímicos em cada esquina, disfarçados de cadeiras, caixas ou o que for. O ar da novidade enche o saco depois de um tempo. Quando você enfrenta os Fantasmas, que mais parecem subchefes, é comum esvaziar o pente da sua 9 milímetros ou deixar sua GLOO quase esgotada.
Após um caloroso combate, outro mímico aparece na sua cara, e geralmente você vai drenar toda sua stamina com a chave inglesa em pontos cegos. Se por um lado esses inimigos dão ao jogador aquela sensação de estar sendo observado o tempo todo, por outro eles quebram o ritmo o tempo inteiro. Em matéria de ameaças, há humanos, robôs e uma pequena seleção de outros Typhons também.
A sorte é que você absorve algumas habilidades de nossos amigos alienígenas – delas, sem sombra de dúvidas, ser um mímico e possuir outros objetos é a mais legal
Prey se constrói a partir de sua atmosfera, que eventualmente tem a magia cortada por outro maldito mímico que pulou na sua cara. A sorte é que, após algum tempo, você absorve algumas habilidades de nossos amigos alienígenas – delas, sem sombra de dúvidas, ser um mímico e possuir outros objetos é a mais legal. Você pode assumir a forma de cadeiras, caixas e até mesmo torretas para sair metralhando tudo.
É mais RPG do que você imagina
O fator RPG é latente em Prey. Além da árvore de habilidades que você tem à disposição, é possível escanear os inimigos com o Psicoscópio, um aparato que detecta as fraquezas e fortalezas dos oponentes – e cuja função é idêntica à da câmera fotográfica de BioShock ou à do equipamento que Aloy usa em Horizon: Zero Dawn. Esta, sim, é uma quebra de ritmo bem-vinda.
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É gostoso explorar Talos I, na verdade: você pode consultar e hackear computadores e terminais para coletar informações sobre as histórias passadas da estação espacial, o que dá asas à sua imaginação, deixa você livre e liberto para pensar no que pode ter acontecido ali em dias pacíficos. A ciência de outrora respondeu à humanidade de um jeito nefasto e com uma belíssima trilha sonora, brilhantemente composta por Mick Gordon, que já trabalhou em DOOM e em outras produções da Bethesda.
Outra mudança de perspectiva, abertamente inspirada em Dead Space, acontece quando você acessa as áreas externas da estação, ou seja, o próprio espaço sideral. Seu uniforme, que é gravitacional, é capaz de se deslocar pelas estrelas tão bem quanto o mochileiro das galáxias, e com uma dose de filosofia parecida. É gostoso contemplar esses momentos imerso em sintetizadores que fizeram escola em bandas como Pink Floyd, Genesis (antigo), Yes e afins. Gosto de experimentar ângulos diferentes em experiências que poderiam ser clichês. Cadáveres e sangue estão espalhados no chão e ali também, dispersos ao ar. Ridley Scott e seu “Alien: O Oitavo Passageiro” teriam orgulho.
A munição é escassa, mas não se preocupe com isso: você pode fabricar seu próprio arsenal graças a duas invenções engenhosas de Prey, o reciclador e o construtor. Toda a sucata que você coleta por Talos I pode ser convertida em materiais orgânicos usados para fabricar munição, itens e até armas. É uma mecânica que faz uso inteligente do seu inventário, que tem um espaço limitado e deve ser gerenciado aos moldes da maleta de Resident Evil 4.
No geral, um sci-fi inteligente
Claro que é sempre saudável deixar o reforço da subjetividade: o impacto que Prey deu em mim pode ser diferente com você. É sempre difícil aplicar uma nota numérica a uma experiência tão particular a cada um de nós. O que é um 82 para mim pode ser um 70, 90 ou até mais a outros jogadores.
O único ponto em comum do Prey de 2017 com o de 2006 é o fato de você estar sendo perseguido por alienígenas e todo o tempero sci-fi, além da perspectiva em primeira pessoa. A própria Bethesda afirma que o novo game não é um remake, mas sim uma "reimaginação da franquia". Dito isso, o Prey que você joga agora é completamente desprendido das raízes do passado após uma turbulenta produção, que passou de Prey 2 para um Prey Remaster e, finalmente, nas mãos da Bethesda, apenas Prey, designado ao pessoal da Arkane Studios. Aliás, ficou muito bem localizado ao português brasileiro, tanto nas vozes quanto nos textos.
A grande sacada dessa experiência é a versatilidade. Prey quer ser um pouco de tudo e, nessa ousada tentativa, brilha em ter competência técnica, mas se bagunça um pouco no caminho. A variedade no gameplay atinge aquele ponto raro de convergência: ao mesmo tempo, isso é bom e ruim. Enquanto um RPG de exploração em primeira pessoa, é um título inteligente; enquanto um shooter ou um jogo que precisa de mecânicas de ação, patina no gelo. Não oferece um stealth tão eficiente quanto o de Dishonored, tampouco um tiroteio tão arcade quanto o de BioShock.
Prey oferece Prey, inspirado em outras obras e em si próprio, com mais acertos do que erros e uma trilha sonora inesquecível, com aquela sinfonia eletrônica que martela nos ouvidos e sintetizadores à la Mirror's Edge, coisas que criam um p*ta elo com o jogador. Às vezes, esse elo é enfraquecido pelas constantes quebras de ritmo no gameplay; mas, na maior parte do tempo, a narrativa tem uma vista deslumbrante.
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- Atmosfera envolvente, intimidadora, com suspense na medida certa
- Visual polido, construído com atenção e esmero aos mínimos detalhes
- Interação natural com quase tudo ao seu redor
- Trilha sonora brilhante, memorável, digna de ser favoritada no seu Spotify
- Narrativa cheia de ganchos e reviravoltas, que se conduz de maneira orgânica e se sustenta até o final
- Ótima localização para o nosso idioma, tanto na dublagem quanto nos textos
- Excelente variedade no gameplay, mas...
- ...mas essa mesma variedade no gameplay faz com que as opções conflitem uma com a outra
- Ritmo oscilante, constantemente quebrado por repetições de inimigos (mímicos especialmente) em momentos inoportunos, que dão “preguiça” com o tempo
- Alguns objetivos são desinteressantes, clichês, que também prejudicam o ritmo
- Depois da injeção de adrenalina inicial, a experiência demora para engrenar de novo e pode desanimar alguns
Nota do Voxel