Finalmente um “Metroidvania” lindo e poético nessa indústria repetitiva!
O fator replay é um dos quesitos mais debatidos no atual modelo da indústria de video games. Talvez The Order: 1886 tenha enaltecido a questão, que na verdade permeia esse mercado desde sempre. Uma experiência de 10 horas pode ser muito mais gratificante do que uma jornada de 50. É o velho embate entre qualidade e quantidade.
Não é fácil enumerar jogos que bebam dessa fonte. Mesclar os dois conceitos geralmente costuma resultar na experiência definitiva e, atualmente, os jogadores carecem disso. Como sair da mesmice quando há um padrão formulado, com a receita prontinha para ser consumida por marinheiros de primeira viagem ou veteranos de plantão? Ori and the Blind Forest consegue a proeza de dar algumas respostas.
O título nasceu da Moon Studios, desenvolvedora independente que trabalha sob a tutela da Microsoft Studios, com subsídio total da empresa de Bill Gates. Concebido como um dos principais projetos das primeiras safras da família Xbox/PC, Ori and the Blind Forest escapa do rol de clichês por flertar com os refinados conceitos de arte e chamou a atenção de todo mundo desde que foi apresentado lá atrás, em 2013.
O gênero plataforma é um pioneiro na indústria e existe praticamente desde que os video games nasceram. Ele sobreviveu por décadas, se reformulou, se reinventou e, hoje, continua a representar a forma pela qual paradigmas podem ser quebrados: minimalismo, simplicidade e diversão. Todos esses conceitos são executados de forma majestosa em Ori and the Blind Forest – e com espaço para muito mais.
O poder da narrativa e o voto à simplicidade
Conceitos minimalistas não são adotados a esmo pelos desenvolvedores. Quando optam por essa escolha, eles sabem exatamente o que estão fazendo. Fumito Ueda adorou brincar com essa ideia em Ico e Shadow of The Colossus, da mesma forma que Phil Fish o fez no famigerado FEZ e que os caras por trás de To the Moon fizeram. Isso só para citar alguns que vieram à tona na minha memória enquanto redigi esta análise.
Reflexões não faltam para o balanço disso tudo. Uma história bem apresentada não requer complexidades, complicações ou densidade. Às vezes, um toque de fantasia dado com carinho, poesia e criatividade – igual ao de filmes “Narnia” ou “História Sem Fim” – é tudo de que a gente precisa.
Assim é a proposta de Ori and the Blind Forest, uma jornada sobre autoconhecimento, responsabilidade, coragem, devoção e sacrifício. O game conta a história de um jovem órfão, Ori, um espírito da floresta que foi exilado de sua terra-natal e adotado por Naru, a “madrasta” a quem ele se reporta e de quem se considera filho.
Mas a floresta de Nibel é cercada de seres maléficos, e Naru pode ser classificada como uma excelente protetora de Ori, que, naturalmente, tem muita devoção à adotante. O local é tomado por um mal após uma série de eventos e Naru adoece, deixando poucas esperanças na mão de Ori. O pequeno ser branco de caudas, então, parte em uma jornada que envolve sacrifícios por aqueles que ama – neste caso, a relação entre um filho e a mãe, uma alegoria comum em narrativas infanto-juvenis e adultas. Na verdade, essa é uma narrativa para qualquer idade.
Uma carta de amor aos amantes de plataforma e de arte
Ori and the Blind Forest foi concebido como um “Metroidvania” desde que foi anunciado e exatamente assim ele é: bebe das melhores fontes de games como Super Metroid e qualquer Castlevania que não seja 3D. Castlevania 4 e Symphony of the Night podem ser especialmente lembrados nessa ocasião.
A equipe se preocupou piamente em criar um mundo crível, colorido, vivo e artístico, abertamente inspirado nos tons de Rayman Origins ou Rayman Legends, com cores que se misturam em camadas e pinturas feitas à mão. Aliás, Thomas Mahler, chefão da Moon Studios, já disse que o time de fato se inspirou na consagrada franquia da Ubisoft.
Os primeiros cinco minutos de Ori and the Blind Forest já mostram a força da estética aliada à arte e ao poder da narrativa. Só por isso, só por constatar esse início poético e as frases que brotam na tela como pinceladas num quadro, a experiência já é gratificante. Não é modo de dizer nem exageros: é um colírio para os olhos e um remédio para o coração.
Minimalismo e excelentes inspirações
A trama, minimalista e tocante, tem algumas belíssimas inspirações em sua elaboração. Até mesmo Shadow of the Colossus, que nada tem a ver com o gênero ao qual Ori and the Blind Forest pertence, certamente influenciou a equipe em algumas escolhas. A voz de uma entidade divina com alfabeto desconhecido, por exemplo, vai fazer os guardadores de bons momentos se lembrarem do vozeirão proferido no game de Fumito Ueda.
Após assumir o controle de Ori, o jogador e sagaz conhecedor do gênero plataforma vai sacar a proposta Metroidvania: adquirir XP, desbloquear habilidades, coletar upgrades e retornar a pontos que antes estavam inacessíveis.
O combate, apesar de simples, exige alguns trejeitos. Logo no começo, Ori conhece Sein, uma criaturinha esférica que exerce o mesmo papel de Navi em Ocarina of Time: ser a “fada-guia” do herói. Só que com um plus: é ela quem golpeia os inimigos. Para isso, ela dispara raios curtos que requerem um certo timing ao pressionar os botões e que podem ganhar upgrades para infligir mais dano.
XP fácil – até demais
O título trabalha com o bom e velho sistema que flerta com um ou outro conceito de RPG: adquirir XP ao matar inimigos, explorar um mapa que é expansível conforme você coleta upgrades e fazer bom uso das habilidades que Ori aprende ao longo da jornada.
A mecânica, adotada de forma exímia pelo competente reboot Strider, por exemplo, funciona de forma exemplar em Ori and the Blind Forest, mas com uma ressalva: dar um bom mamão com açúcar para o jogador. Os inimigos, por exemplo, renascem toda hora e a maioria é relativamente fácil de matar. Como o jogo é um side-scrolling, basta avançar a tela e retroceder a um mesmo ponto para que aquele inimigo esteja ali novamente. A grande questão: matá-lo de novo, alguns segundos depois, rende a mesma quantia de XP.
Isso não é um defeito, apenas uma característica do jogo, que tem uma curva de aprendizado progressiva e com momentos que, não se enganem, são bastante “Dark Soulszísticos” – você vai repetir o mesmo trecho diversas vezes. Ainda assim, o desafio acaba sendo ofuscado pela considerável facilidade e relativa rapidez com que você pode ganhar XP.
Até aí eu posso pensar: “Metroid e Castlevania funcionam da mesma maneira”. Sim, mas os inimigos nascem de forma mais esporádica e em pontos diferentes. Aqui, eles voltam ao mesmo local segundos depois de você ter saído de lá. Portanto, quem levar o macete ao pé da letra pode desbloquear uma avalanche de habilidades logo de cara porque vai ganhar muito XP facilmente – mas a progressão é necessária porque várias delas só são liberadas em determinados momentos do jogo.
Timing e precisão
Nada dessa relativa “facilidade”, ressalte-se, ofusca a experiência. Ela apenas é amenizada, mas jamais posta em xeque. Os setores acrobáticos, por exemplo, exigem mais rapidez do que um Rayman Legends ou Shinobi da vida. Todos eles foram estrategicamente alocados para equilibrar a diversidade no gameplay, uma vez que poucas são as variações no combate.
Já nos trechos performáticos, a coisa vai longe. Pulo simples, pulo duplo e até pulo triplo são desbloqueados aos poucos para você escalar paredes que se colidem, pular por desfiladeiros e atravessar outras superfícies perigosas – tudo isso banhado a pincéis que servem como colírio aos olhos e jamais deixam brechas para você enjoar de alguma coisa.
Viajar pelos ambientes é tão natural quanto um passeio no parque aos domingos resplandecentes: uma atividade rápida, porém memorável e esteticamente bonita, com requintes e capacidade de renovar nossas cabeças, trituradas por shooters e coisas viscerais – que também amo, mas enjoam em excesso.
Quer checkpoint? Quer? Então crie um – mas há limites
Uma das grandes sacadas de Ori and the Blind Forest foi o sistema de saves. Nada é feito automaticamente. A equipe colocou os checkpoints diretamente no controle do jogador, que deve criar pontos através de orbs azuis deixadas por inimigos ou coletadas nos cenários.
Ou seja, você adota sua própria preferência para os momentos em que deseja salvar e, com isso, monta sua própria logística, mas lembre-se: é preciso ter orbs azuis. Se você estiver perto de um ponto que cheira a perigo e não tem orbs azuis, se vire. Morrer significa voltar ao último ponto salvo, e isso pode ser frustrante – “frustrante”, aqui, é um elogio, pois isso faz parte da experiência e foi uma sacada genial.
Com tempo e sobriedade, você aprende a domar a técnica rapidamente, que decerto será adotada por muitos games do gênero daqui para frente – lembrando que influências como Metroid, Castlevania ou Rayman também não dão massagem alguma.
Trilha sonora épica e tocante
Um elemento majoritário de qualquer produto de entretenimento é a trilha sonora. Totalmente orquestradas, as músicas de Ori and the Blind Forest trazem sinfonias adequadas para a narrativa tocante e combinantes com os momentos de combate e de acrobacias.
Gravada no auditório da Ocean Way, em Nashville, nos EUA, a orquestra acentua algumas de nossas emoções nos momentos certos. Parafraseando a própria descrição do material de jogo fornecido a nós: não há problema algum em chorar. Sério.
Não é uma questão de valer a pena não. É uma questão de obrigatoriedade!
Assim eu defino a experiência que tive com Ori and the Blind Forest: magnífica. A jornada, que dura cerca de 10 horas, vale cada centavo gasto, cada minuto investido, cada som escutado, cada visual deslumbrado.
Cada vez mais esporádicos no mercado atual, games de plataforma têm potencial de encanto – vide Rayman, Strider, Super Metroid, Castlevania: Symphony of the Night, Super Mario World, Donkey Kong Country, entre tantos zilhões de outros –, e Ori and the Blind Forest pode não necessariamente inovar, mas traz tudo o que existe de bom na fórmula Metroidvania e alia a receita a uma narrativa tocante pincelada “a ouro”.
O game da Moon Studios vale muito mais que R$ 40 e já adquire seu lugar no pódio dos melhores exclusivos de console (pois também saiu para PC). Donos da plataforma Windows e da família Xbox não poderiam estar mais felizes, pois Ori and the Blind Forest faz valer seu dinheiro já nos primeiros 10 minutos de jogo.
Eis um novo clássico desse gênero tão saudosista. E novamente: não há problema algum em chorar. Sério.
Categorias
- História minimalista e tocante
- Gameplay viciante
- Belo acervo de habilidades e upgrades
- Trilha sonora fantástica
- Visual pintado à mão: um colírio para os olhos
- Plataforma autêntico, com boa mesclagem de combate e momentos acrobáticos
- Nada relevante, mas eu diria que o surgimento dos inimigos e o ganho de XP poderiam ser mais difíceis
Nota do Voxel