Nioh 2 é uma carta de amor aos fãs do 1 e convite do diabo aos novatos
Numa indústria em que o intervalo de lançamento entre os jogos de uma franquia costuma ser enorme, podendo levar oito anos ou mais para uma sequência sair do forno – tal qual Red Dead Redemption 2, de 2018, em relação ao primeiro, de 2010 –, Nioh 2 resolveu o soluço de muita gente com um susto: o jogo foi anunciado na última E3 da Sony, lá em 2018, apenas um ano após o original, que é de 2017.
A minha história com Nioh se resume a uma epifania: foi o título responsável por me abrir a porteira à fórmula Souls, conforme relatado na análise colaborativa junto ao Vinícius Munhoz. Após idas e vindas nessa empreitada masoquista, só Nioh liberou minha endorfina.
Assim como culinária japonesa, tive de aprender a gostar. E, como tal, passei a amar. Só depois dele que me debrucei em Dark Souls e Bloodborne, com direito a algumas gratas surpresas pelo caminho, como The Surge 1 e 2, Code Vein, Salt and Sanctuary, entre outros.
Confira a videoanálise completa:
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O mistério desse encanto pelo simples e pelo acaso se explica por alguns sinais. Embora eu tenha Nioh como um xodó pessoal, há que se reconhecer que a From Software, precursora, oferece títulos tecnicamente melhores. Mas Nioh sabe elucidar seus diferenciais.
Talvez essa cara de Onimusha que ele tem ou o semblante de Tenchu ou, ainda, o carimbo de Ninja Gaiden e Ninja Blade, presente nas finalizações brutais, sempre capturadas em ângulos vistosos: o fato é que eu vi um pouco disso tudo no primeiro Nioh e talvez não fizesse ideia do quanto estava carente desses jogos.
Uma boa beliscada de hack’n’slash, movimentação muito mais veloz do que o ritmo cadenciado dos Soulsborne...além, é claro, da roupagem do folclore japonês, que é uma das minhas temáticas favoritas. Nioh 2 carregou a responsabilidade de ampliar tudo que eu vi no primeiro e que me fez ficar apaixonado pela fórmula. Essa foi a tônica da minha expectativa, partindo do anúncio, em 2018, até aqui.
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Enredo: fiel, mas diminuto
Os eventos de Nioh 2 se passam antes da primeira aventura, que apresentou o final da era Sengoku, em 1600, um dos períodos mais violentos do Japão antigo, mas envelopado com muito folclore de lendas, mitos e tradições japonesas. É quase que uma visita ao bairro da Liberdade, em São Paulo, com todas aquelas superstições orientais, tipo sapo da sorte, gatos com visões e sentidos clarividentes, conhecidos como Bakenekos, o simbolismo de cada animal, o respiro de fauna e flora japonesas...Nioh basicamente cutuca em tudo isso, com a vara bem curta.
Some a esse contexto toda a atmosfera sombria dos Yokai, que é a classe de demônios da mitologia japonesa, representados de maneira visceral e surrealista, que elogia o grotesco e idolatra o aberrante. Acrescente à receita um balde da fórmula Souls, Onimusha na cobertura, Tenchu e Ninja Gaiden no recheio, farofinha doce de Okami, cereja de Castlevania, loot e uma pitada de hack’n’slash: o resultado desses ingredientes é, basicamente, a concepção de gameplay de Nioh.
Você se lembra de William, protagonista do original, certo? Pois bem: diferentemente do anterior, Nioh 2 resolveu vestir a carapuça do RPG mais raiz e colocou um criador de personagem, sem nome, escolha que já grita para a primeira ressalva do jogo: a narrativa, por não ter um protagonista pré-definido, com uma jornada própria, ficou muito mais impessoal do que antes, inserida num plano mais secundário.
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Isso não significa que o enredo de Nioh 2 é ruim, longe disso: as figuras japonesas históricas estão ali, dentro de pergaminhos que, embora retratem fatos documentados do Japão, flertam com a fantasia, mais ou menos como Quentin Tarantino faz em seus filmes ao recontar temas reais com seu próprio revisionismo.
Nioh e Nioh 2 são, de certa forma, revisionistas: eles mostram figuras ilustres, incluindo Nobunaga, em cinemáticas reproduzidas com muita fidelidade, só que, no caso do segundo, tudo isso serve muito mais como pretexto ao gameplay do que como profundidade de narrativa, que é, sim, um ponto alto do primeiro jogo.
Onimusha com esteroides
Abstraída a leviana história, o gameplay de Nioh 2 é onde você chora e o capiroto não vê. Ou melhor, vê tudo: dessa vez, o jogador é muito mais demônio do que no primeiro Nioh, podendo assumir uma forma Yokai que oferece complementos bem-vindos à experiência. Nem Rampage, nem Godzilla: quase um Onimusha com esteroides.
Além de você ativar a transformação completa com os botões triângulo e círculo, existem auxílios que podem acontecer durante sua forma humana, funcionando como uma espécie de chamada ao seu monstro, com R2 + quadrado e R2 + triângulo.
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Aliás, o revide ganhou mais sentido e tem papel substancial para você ter sucesso nas batalhas: ao pressionar R2 + círculo, o seu personagem contra-ataca golpes carregados dos inimigos – aquelas investidas que brilham em vermelho. É o costumeiro parry, que tem um timing bem específico para você pressionar os botões na hora certa.
Lembra que eu falei da cereja do Castlevania, agora há pouco? Nioh 2 tem um elemento novo chamado “almessência”, habilidades herdadas de inimigos que podem ser usadas de maneira limitada por meio de uma inédita barra Yokai, que é uma equivalência da barra de magia, ali embaixo da barra de Ki, a stamina.
Você pode, inclusive, vincular almessências aos seus espíritos-guardiões e fazer junção delas para criar experimentações mirabolantes – consiste, basicamente, em mesclar a habilidade herdada de um inimigo com a de outro. Mecânica que a gente encontra de sobra em Castlevania e Kirby, da Nintendo. Longe de ser inédita, essa absorção é vista em vários títulos correlatos, na verdade, e também se mostra bem-vinda à fórmula de Nioh 2.
Galeria 1
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Cutuca o diabo com a vara curta, vai
A seleção de armas brancas aumentou e inclui novidades como a foice-borboleta, machadinhas e versões aprimoradas das lâminas do primeiro jogo, como a kusarigama, katana, tonfas e minha combinação favorita: lança e machado. Mas, mas na lei do retorno, o jogo tem uma razão para entregar esse arsenal maior: a dificuldade também foi turbinada.
A Koei Tecmo subiu a barra de masoquismo de Nioh 2 a uma escala que certamente não será nada convidativa a novatos no gênero. E eu digo isso como alguém que platinou o primeiro Nioh – com mais de 200 horas de jogo – e se tornou fã da fórmula Souls, inveterado por observar cada intersecção de design que deixe um rastro de poeira em outros títulos e nos faça pensar sobre a importância da curva de aprendizado em jogos eletrônicos.
Nioh 2 é mais difícil que o primeiro em vários sentidos:
- Os inimigos são mais fortes;
- Você é mais fraco;
- O nivelamento é muito mais guiado para a camada de cima do que a do meio ou a inferior, ou seja, se você estiver no mesmo nível que os inimigos ou pouco além disso, bastam dois ou três golpes deles que a morte lhe acena sem aviso.
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Outro elemento inédito para enriquecer essa premissa é o reino Yokai. As fases têm portais que, quando atravessados, mudam completamente a atmosfera, deixando tudo mais sombrio e favorável aos monstros, com direito a efeitos de blurring na tela, mudança na paleta de cores e no design de algumas criaturas.
Baús não podem ser abertos e santuários não são ativados no interior desses crepúsculos. Você precisa aniquilar uma criatura específica ali dentro para purificar o local. Além disso, as barras de vida e Ki ficam limitadas nesses reinos da escuridão. Nioh 2 é mais “raçudo” que o primeiro. Abuse da técnica e da inteligência, sim, mas não seja tão preciosista; força bruta, numa jogada “feia”, vai salvar sua pele em vários momentos da jornada. Em outras palavras, esmague o quadrado e o triângulo quando a situação apertar e não deixe de acreditar.
Não desperdice nenhum auxílio de NPCs encontrados ao longo de algumas fases. Também busque os Kodamas, colecionáveis do primeiro título que estão de volta aqui, pois oferecem benefícios no combate e na exploração. Dica clássica que os calejados já conhecem: OLHE OS TETOS, porque as armadilhas, marca registrada de um bom Soulslike, estão ansiosas para ver você morrer. O susto será o menor dos seus problemas; é com o dano que você deve se preocupar.
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Deja vu...
O level design, que também é outro pilar da fórmula Souls, continua oferecendo atalhos que cortam um enorme trecho de inimigos e conectam o jogador a áreas já visitadas, mas já não tem o mesmo brilho que o primeiro Nioh.
Eu diria que a Koei Tecmo gastou muito desse cartucho no anterior, então Nioh 2 traz aquela sensação de deja vu em doses ácidas de vez em quando. Algumas fases são recicladas; outras, por sua vez, exibem pelo menos três ou quatro rotas ramificadas, mas sem a mesma conexão de outrora. Há trechos que só estão ali para preencher o cenário gratuitamente, na tentativa de tapar o sol com peneira. A cartilha de um level design impecável, tal qual a usada pela From Software, faz com que o jogador saboreie cada esquina com temor. Isso acontece em Nioh 2, sim, só não com o mesmo glamour.
Menus, movimentação, animações dos inimigos, disposição de armas: tudo isso está idêntico ao primeiro jogo, o que é bom, logicamente, uma vez que o veterano se localiza de bate-pronto, embora corra o risco de sentir falta de sal num prato já conhecido. Os chefes e inimigos novos, vale destacar, têm design que é colírio aos olhos. Você vai revê-los dezenas de vezes nas missões opcionais – inclusive as crepusculares, que intensificam a dificuldade em locais já visitados. Assim como o primeiro, Nioh 2 oferece um banquete de conteúdo.
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Veredito
Nioh 2 é muito mais atraente aos fãs do original do que ao marinheiro de primeira viagem: ele escalou tudo que o anterior implementou, incluindo a dificuldade, e, dependendo do ponto de vista, inclusive do meu, esse é um viés positivo.
Fica claro que a narrativa, inferior à jornada de William (do Nioh original), serve como pretexto para apresentar as fases e um gameplay incrível, que mistura, em bom equilíbrio, as coisas que funcionaram no primeiro e as novidades do segundo, incluindo dar ao jogador o poder de assumir uma forma Yokai transcendental e vistosa aos olhos.
Nioh 2 é tipo lanche do McDonald’s: você já sabe o que esperar, mas é sempre ótimo e tem hora que só consumindo aquilo para saciar aquela vontade específica. Prepare sua disposição psicológica, ligue o modo masoquista e sente no colo do tinhoso. A glamourosa sensação de recompensa você já conhece.
Nioh 2 foi gentilmente cedido pela Sony para a realização desta análise.
Fontes
- Gameplay continua visceral e oferece ótimas adições com as transformações Yokai
- Progressão viciante, baseada em níveis, é prato cheio para quem curte farmar, assim como o primeiro
- Lotado de conteúdo, tal como o primeiro: é fácil ficar aqui por uma centena de horas
- Os reinos Yokai trazem uma nova camada de pimenta para ampliar a dificuldade da experiência
- Armas novas e poder de herdar habilidades de inimigos com as almessências
- Deja vu de fases recicladas e level design menos brilhante que o primeiro
- Sem William, a narrativa foi colocada em segundo plano
Nota do Voxel